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Ciência Vintage
25 novembro 2024 às 01h29
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No século XIX, Lisboa rendeu-se às maravilhas acústicas do teatrofone

A Lisboa da década de 1880 acolheu as maravilhas do telefone e, com este, os prodígios de um serviço que permitia ‘assistir’ à distância a espetáculos operáticos e teatrais. O teatrofone nascera anos antes, em França, um precursor das atuais transmissões em direto de espetáculos diversos.

Em 1880, o lisboeta Teatro da Trindade estreava a ode sinfónica Camões e os Lusíadas. A peça musical em quatro atos celebrava os 300 anos sobre a morte do poeta, em 1580, e trazia a assinatura do compositor português Augusto Machado. Nascido na capital em 1845, aquele que seria diretor e professor de canto na Escola de Música do Conservatório Nacional, estudou em Paris e privou com ilustres da grande música gaulesa, como Adolphe-Léopold Danhauser. Em França, Augusto Machado estreou em palco, no ano de 1883, a ópera Lauriana. Da Ópera de Marselha a obra musical viajou, em março de 1884, em direção ao Teatro São Carlos, na meridional Lisboa para, depois, atravessar a linha do equador e contar com apresentação no Rio de Janeiro.

Lauriana  é uma peça de homenagem ao rei D. Luís I. Um trabalho que nos idos de oitocentos convocava a presença do monarca ao camarote real na estreia lusa da ópera. Contudo, D. Luís I estava de luto pela morte da princesa Maria Ana, sua irmã. Um período de nojo do monarca que não compactuava com a presença régia em atos públicos. Quiseram as maravilhas tecnológicas do século XIX ligar os cinco quilómetros a mediar entre os aposentos reais do Palácio da Ajuda e o palco do Teatro São Carlos.

Naquela noite de março de 1884, D. Luís I escutou à distância e em direto, a partir da sala de espetáculos, no coração da capital, as vozes poderosas dos intérpretes da ópera Lauriana. Horas antes, uma equipa da Edison Gower-Bell Telephone Company of Europe, atarefara-se a instalar, na Ajuda e frente ao palco do São Carlos, uma parafernália de equipamentos de apoio ao sistema que materializava a primeira linha telefónica europeia de distribuição de conteúdos operáticos e teatrais. D. Luís I entregou os seus ouvidos reais à melodia difundida através do Teatrofone, aportuguesamento do termo gaulês Théâtrophone.

Um 'poster' que anunciava o Teatrofone. FOTO: D.R. / Arquivo

Desde a década de 1870 que Portugal experimentava os prodígios das ligações telefónicas. Em 1878, o rei assistira a uma experiência telefónica entre o Observatório Astronómico da Tapada da Ajuda e o Observatório Meteorológico da Escola Politécnica. Apenas dois anos antes, Alexandre Graham-Bell patenteara o telefone.
Em 1882, aquando da inauguração oficial da rede telefónica na capital, a Edison Gower-Bell Telephone Company promovera a difusão de um concerto na sua sede na Rua do Alecrim e escutado na Rua do Carmo. Na época, a modesta lista telefónica, com 22 assinantes, incluía ilustres como o dr. Sousa Martins.

A transmissão da ópera Lauriana exponenciava, contudo, a experiência acústica nestes primórdios do telefone. O ouvinte escutava a música através de dois canais sonoros separados, o que permitia o efeito estereofónico. Frente ao palco, fonte da transmissão musical, instalavam-se dezenas de transmissores telefónicos.

Em 1885, Lisboa rendeu-se ao teatrofone. Ganhava com esta afeição a temporada musical no Teatro São Carlos, com as assinaturas do serviço a permitirem o acesso a 90 apresentações.

Uma caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro mostrando o rei D. Luís I a ouvir ópera utilizando a linha telefónica e, a cima, uma graviura anunciado a ópera 'Laureana'.  FOTO: D.R. / Arquivo

A nova experiência musical propiciada pelo teatrofone nascera em 1881 pelas mãos do engenheiro francês Clément Ader, precursor da aviação, empresário e comercializador em França do sistema telefónico inventado por Graham-Bell para ali instalar, em 1879, os primeiros telefones. Ader, um espírito inventivo, olhou para o potencial do sistema telefónico e viu-lhe mais do que a comunicação entre dois sujeitos, encarou-o como um meio de disseminação pública de arte e informação.

Em 1881, a capital francesa acolheu a Exposição Internacional de Eletricidade. Para além do primeiro congresso de eletricistas, a mostra fez pompa das lâmpadas incandescentes e espantou com um modelo de carro elétrico. O momento permitiu à Société Générale des Telephones brilhar com a invenção de Ader e alardear o sistema de difusão de som. Uma apresentação que contou com uma figura de peso, a do presidente francês Jules Grévy. Ainda em 1881, o teatrofone trocou os salões da Exposição de Eletricidade pela opulência da Ópera de Paris. Ouvintes a três quilómetros daquela sala de espetáculos escutaram, em direto, a ópera do compositor francês Charles Gounod, Le Tribut de Zamora.

A partir de 1890, o bem-sucedido sistema teatrofone passou a ser comercializado pela Compagnie du Théâtrophone, com a instalação de aparelhos públicos em hotéis, cafés e clubes. O sistema operava com a introdução de moedas.

O teatrofone dobrou a fronteira do século XIX com o século XX. O escritor Marcel Proust não escondia a sua afeição àquele engenho, que lhe entregava aos ouvidos as óperas do germânico Richard Wagner.

O sistema de difusão de som criado por Clément Ader sucumbiria às novas tecnologias do século XX, nomeadamente à radiodifusão e ao fonógrafo. Ainda no nosso país, o teatrofone deixara afeições e referências literárias. Em 1901, escrevia Eça de Queirós na sua novela A Cidade e as Serras: “Amanhã, Zé Fernandes, tu vens antes de almoço, com as tuas malas dentro de um fiacre, para te instalares no 202, no teu quarto. No hotel são embaraços, privações. Aqui tens o telefone, o teatrofone, livros...” O mesmo Eça a quem se diz ter nutrido inspiração em Augusto Machado para criar a personagem do pianista Cruges, em Os Maias.