Não temos razão nenhuma, absolutamente nenhuma, para duvidarmos de Mário Soares quando afirmou que “o Dr. Fernando Nobre é um homem excepcional”. Nem de José Manuel Barata-Feyo, que, no mesmo ensejo, exclamou: “Fernando Nobre é o homem que mais admiro à face da Terra, de entre todos os que conheci durante a minha vida de jornalista.”
Depoimentos prestados, à laia de prefácio, na obra Viagens Contra a Indiferença, de 2004, a que o Nobre-autor juntaria Gritos Contra a Indiferença, três anos depois, e, em 2008, Imagens Contra a Indiferença, podendo dizer-se que, nesta sua luta contra o indiferentismo, o presidente da AMI não tem deixado ninguém indiferente: para uns, o dr. Fernando é o último dos grandes humanistas, a encarnação viva do espírito de Albert Schweitzer, sua figura de referência, com a qual gosta veladamente de se irmanar; para outros, Nobre não passa de um vaidosão, sedento de palco e ribalta, sempre desejoso de marcar posição e presença junto das luzes e dos holofotes. Não é improvável, contudo, que seja um pouco das duas coisas, pois a alma humana, como sabemos, é complexa e contraditória, capaz de tudo e do seu avesso, e como tal avessa a leituras de preto ou branco.
Outrora uma figura pública de primeiro plano, colocado em 25.º lugar dos Grandes Portugueses do Século, o controverso programa da RTP de 2006-2007, Fernando Nobre abalançou-se às duas maiores presidências deste regime, e logo no mesmo ano: em Janeiro de 2011, ficou em 3.º lugar, com quase 600 mil votos e 14,10%, no sufrágio para a chefia do Estado; escassos meses depois, em Junho, viu rejeitada à segunda volta a sua candidatura à liderança do Parlamento, o que o fez desistir da mesma, dizendo que iria manter-se como deputado enquanto entendesse que tal era “útil ao país”. Utilidade que se esfumou ao fim de poucos dias, já que, em 1 de Julho de 2011, renunciou ao mandato parlamentar e, desde então, dele há a registar apenas uma saída do armário maçónico (em Janeiro de 2012, em entrevista à SIC, disse pertencer à Grande Loja do Oriente Lusitano, afirmando que todos os maçons deveriam assumir-se como tal) e diversas declarações polémicas aquando da pandemia da covid-19, que o envolveram, e à Ordem dos Médicos, numa embrulhada danada - em 16 de Setembro de 2021, o bastonário Miguel Guimarães desmentiu uma notícia da SIC segundo a qual fora aberto um processo disciplinar contra Nobre por este ter feito afirmações anti-científicas numa manifestação de negacionistas em frente à Assembleia, que desembocaria, momentos depois, em bullying verbal a Ferro Rodrigues e senhora, quando estes almoçavam pacatamente num restaurante de São Bento; dias volvidos, a 21 de Setembro, o Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos veio confirmar, afinal, a abertura de um processo disciplinar ao presidente da AMI, com base na existência de queixas várias: pela sua oposição à vacinação contra a covid; por ter contestado os testes de detecção do SARS-CoV-2; por ter questionado a utilização das máscaras sanitárias; por ter dito que foi curado com medicamentos de eficácia não-comprovada, como a malfadada hidroxicloriquina, tão do agrado de Maduro, Trump e Bolsonaro. Depois disso, soube-se que diversos médicos negacionistas, com destaque para a anestesiologista Maria Margarida Oliveira, foram punidos pela Ordem. Quanto a Nobre, porém, não há notícia alguma sobre sanções, nem sobre o que terá sucedido ao processo que lhe foi instaurado.
Em contrapartida, sabe-se que, em Janeiro de 2022, Fernando Nobre apareceu como mandatário eleitoral, sem pelouro definido, da Alternativa Democrática Nacional (ADN), ao lado de alguns dos rostos mais conhecidos do Médicos pela Verdade, movimento a que a Entidade Reguladora da Saúde aplicou uma coima de 15 mil euros por várias infracções na “concepção e difusão de práticas de publicidade em saúde”.
Não foi a primeira experiência política de Nobre, longe disso: nas legislativas de 2002, apoiou Durão Barroso (depois, disse estar arrependido); foi membro da comissão política de Soares nas presidenciais de 2006; foi mandatário nacional do Bloco de Esquerda nas europeias de 2009 e, nesse mesmo ano, membro da comissão de honra da candidatura de António Capucho à Câmara de Cascais; e foi, como vimos, candidato presidencial em 2011 e, nesse mesmo ano, deputado pelo PSD e candidato à presidência da Assembleia da República. Para alguém que afirma ter aprendido com o seu pai que “a política é uma porcaria”, é, no mínimo, singular e bizarra tão frequente atracção pela escória, na qual Nobre mergulha e se afunda com o mesmo espírito missionário que outrora o levou aos piores cenários de guerra deste planeta.
É possível que tal versatilidade se deva a uma “expressão muito significativa de cidadania”, para usar as palavras de Passos Coelho no Facebook, quando em 2011 o apresentou à massa associativa laranja, dizendo ainda o líder do PSD que Nobre era uma “voz respeitada” e que representava a sociedade civil portuguesa ao “mais alto nível”. Assim não o entenderam os deputados da nação, que, por duas vezes, lhe negaram o acesso ao cadeiral mais alto de São Bento, fazendo eco das críticas quanto à escolha do seu nome então suscitadas por muitos barões do PSD, como Morais Sarmento, Santana Lopes, Marques Mendes ou Pacheco Pereira (no seu blogue Abrupto, este último falou de “uma mistura de vaidade e aproveitamento biográfico sem pudor, populismo e ignorância” e acusou o médico e activista de fazer “política do pior”). Quando foi convidado por Passos, estava no Sri Lanka, em labor humanitário, mas não deixou de revelar que também tinha sido convidado para integrar as listas do PS e que optara pela melhor oferta de Passos pois este garantira-lhe a presidência da Assembleia, caso o PSD ganhasse. Mais disse que não lera sequer o programa eleitoral dos sociais-democratas, mas que confiava inteiramente no líder e no valor da sua palavra (cf. Público, de 16/4/2011).
Quando se candidatou a Belém, Fernando Nobre afirmou que o fazia por “um dever de cidadania”, falando na necessidade de “credibilizar o mundo da política”. Tratou-se “das decisões mais heróicas que tomou até hoje”, considerou na altura o seu amigo e incondicional apoiante José Manuel Barata-Feyo, o principal responsável pelo seu regresso a Portugal nos Anos 1980.
Outro dos seus admiradores, Miguel Sousa Tavares, classificou-o como “um português notável” e sustentou, inclusive, que, se acaso Nobre fosse eleito Presidente da República, tal seria “um desperdício”, porque o fundador da AMI iria “morrer de tédio” no Palácio de Belém. “É um homem excepcional, com uma vida de altruísmo, de generosidade. Não deveria ter jogado todo o seu prestígio e esforço nesta campanha”, opinou Sousa Tavares. Nobre, de seu lado, desmentia a pés juntos ter-se candidatado a instâncias de Mário Soares (“Isso é insultuoso, eu penso pela minha própria cabeça”), o qual, todavia, foi dizendo que o médico daria um bom Presidente (“é uma pessoa que admiro e que todos nós admiramos, porque dedicou toda a sua vida aos outros sem pedir nada em troca,e isso não tem paralelo”).
A campanha presidencial enfrentou alguns percalços: o senhorio da sua sede de candidatura, em Lisboa, queixou-se nos jornais de que Nobre lhe devia mais de 100 mil euros de renda e vedou-lhe o acesso ao edifício; o candidato proclamou que não era nem de esquerda, nem de direita, mobilizando as críticas de uma e de outra, enquanto fazia promessas populistas contrárias à Constituição, como reduzir os deputados de 230 para 100, e puxava pelos galões do seu altruísmo humanitário - “Estou acostumado a meter a cabeça na boca do lobo”; “Já vi muita gente morrer. Naquele instante derradeiro, apercebemo-nos de que somos efémeros, uma poeirinha.”
Sob o lema Recomeçar Portugal, a sua candidatura dizia que “o que é preciso para recomeçar e mudar o que está mal em Portugal é trabalho, honestidade e exemplo”. Nobre, de seu lado, bradou que se candidatava por “um chamamento ético e idealístico”, prometeu que iria ser “um motor da mudança” e que não iria “para Belém para se sentar numa cadeira” (“a Presidência da República não pode ser uma cadeira para reformados”), entre outras vacuidades várias, como as suas máximas de vida, que são três, todas belas: “1.ª - Não há montanha inacessível; 2.ª - Não há fortaleza inexpugnável; 3.ª - Não há obstáculo inultrapassável.”
Depois, no calor da contenda, defendeu-se como pôde e não pôde das revelações que iam sendo feitas na imprensa. Aos que lhe apontaram o facto de ter apoiado sucessivamente Durão Barroso (PSD), Mário Soares (PS), António Capucho (PSD) e Miguel Portas (BE), replicou que tal demonstrava que era “um espírito livre” e “não sectário”. Quando se soube que no passado se inscrevera na Causa Monárquica, reagiu dizendo que “preencheu uma ficha em 1992”, que “nunca pagou quotas” e, enfim, que “a nossa História tem perto de nove séculos e oito são de monarquia. Não estou para gastar tempo em discussões infantis”.