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Sociedade
14 dezembro 2024 às 00h02
Leitura: 16 min

Professores formados no estrangeiro não podem dar aulas pela via das habilitações próprias

Direção-Geral da Administração Escolar manda anular contratos a oito professores, em pouco mais de dois meses, seguindo uma portaria em vigor desde 2007 que impede licenciados no exterior de aceder a vagas pela via das habilitações próprias. Casos ouvidos pelo DN são de docentes brasileiros que já davam aulas há anos.

A Direção-Geral da Administração Escolar (DGAE) está a invocar uma portaria de 2007 para impedir licenciados com cursos tirados no estrangeiro, ainda que reconhecidos por universidades nacionais, de ocupar vagas no Ensino. Tudo porque se estão a candidatar pela via das “habilitações próprias”. O DN falou com vários destes professores, nomeadamente cidadãos brasileiros. Os relatos são de, pelo menos, oito casos desde meados do mês de outubro, com a mesma situação: a DGAE entra em contacto com os diretores das escolas, que desconhecem a portaria, a exigir a nulidade dos contratos com esses profissionais.

Todos os profissionais ouvidos pelo DN preferiram não ser identificados. Uma das professoras ia todos os dias da região de Coimbra para dar aulas na Margem Sul. A brasileira saia de casa às 04:00 da madrugada, percorria uma hora de carro até a estação Coimbra-A e apanhava o primeiro comboio regional do serviço. “Eu pegava às 05:09h. Descia na Lamarosa ou no Entroncamento e pegava outro, inter-regional, para Lisboa. Descia no Oriente e apanhava outro comboio para Entrecampos. De Entrecampos apanhava um Fertagus e descia em Foros de Amora. Chegava umas 09:00 à escola”. A peregrinação durou cerca de 15 dias, tempo em que a professora esteve em funções como docente de Física na escola, para duas turmas do 8.º e uma do 9.º ano.

Esta docente, licenciada em Física no Brasil, lecionou durante cinco anos em escolas naquele país. Em Portugal, obteve o reconhecimento específico do seu diploma pela Universidade de Aveiro. Na Certidão de Registo de Reconhecimento, a instituição portuguesa declara que “confere ao seu titular os direitos inerentes ao grau académico português de Licenciado, em Física, ramo de conhecimento ou especialidade Física”. Após o reconhecimento, a professora candidatou-se, pelo próprio sistema da DGAE, a uma vaga numa escola em Leiria com “habilitação própria”. Este recurso confere a licenciados que não são da área do ensino a possibilidade de dar aulas em Portugal. Qualquer cidadão, nacional ou estrangeiro, desde que reúna a documentação exigida, pode apresentar a sua candidatura. A professora foi selecionada e cumpriu contrato de março a agosto. Com o início deste ano letivo em setembro, concorreu à vaga na escola da Margem Sul do mesmo modo, com a mesma documentação. Foi selecionada, iniciou a função em meados de novembro até que, duas semanas depois, foi notificada da nulidade do contrato. “Estava em sala de aula e o diretor ligou. Fui à sala dele, e ele disse ‘não tenho boas notícias. Recebi uma mensagem da DGAE de que você não pode dar aula com esta documentação’. Ele disse que desconhecia essa portaria”, conta a professora.

Justificação

A DGAE justifica a exigência pelo fim do contrato da professora com o artigo 8.º da Portaria 254/2007. O texto revoga o ponto n.º 3 do Despacho Normativo n.º 32/84, de 9 de Fevereiro, “no que se refere ao reconhecimento de cursos superiores estrangeiros como conferentes de habilitação própria ou suficiente para a docência”. O despacho mencionado diz, no ponto revogado pela portaria, que “os titulares de cursos superiores estrangeiros poderão ser declarados como portadores de habilitações próprias ou suficientes para a leccionação nos ensinos secundário e ou preparatório” desde que, entre outros requisitos, possuam “equiparação a um curso superior”em Portugal, como é o caso dos professores ouvidos pelo DN. “A DGAE tem um entendimento de diploma estrangeiro. Quando eu faço um reconhecimento, o meu diploma não é mais estrangeiro, é um diploma de Portugal”, diz a professora.

A questão que se coloca, na opinião desta profissional, passa ainda por um Decreto-Lei posterior, de 2018, que dá aos titulares de graus ou diplomas estrangeiros “cujo nível, duração e conteúdo programático sejam idênticos ao de graus ou diplomas conferidos por instituição de ensino superior portuguesa” os mesmos “direitos inerentes à titularidade do grau académico ou diploma de ensino superior português correspondente”, conforme lê-se no texto. “Além disso, o sistema deixa-me concorrer. Tem a plataforma, você coloca os seus dados, os seu diploma, o seu reconhecimento específico, e ela deixa você se candidatar. Se deixa, é porque você está apta a fazer aquilo. Era para a DGAE então barrar dali”, diz a professora que, inclusive, concorreu num dos últimos concursos extraordinários para vincular docentes. Ela não foi aprovada, mas recebeu da própria DGAE, conforme e-mail ao qual o DN teve acesso, a notificação de que ficava a integrar as reservas de recrutamento. “Se eu tivesse sido vinculada neste concurso, como seria? Iriam tirar-me da escola em que momento?”, questiona.

E-mail da DGAE que confirma que professora posteriormente demitida ficava nas reservas do concurso extraordinário.

Um outro professor tem trabalhado em Portugal desde 2022, em agrupamentos na região do Algarve, desde que teve a sua licenciatura reconhecida pela Universidade do Porto. No Brasil, este professor acumulou 20 anos de experiência a lecionar História em turmas do 3.º ciclo e no Ensino Secundário. “Todos os diretores dos agrupamentos aqui entendem que a minha habilitação é uma habilitação própria. Sempre trabalhei com o reconhecimento que obtive na Universidade do Porto”, conta o brasileiro. No final do mês de outubro, este professor foi chamado pela direção da escola para ser informado de que a DGAE tinha pedido a nulidade do seu contrato. Ao procurar informações junto da Direção-Geral, recebeu a mesma justificação em relação à portaria de 2007. No e-mail, ao qual o DN teve acesso, a DGAE informa que “tudo parece indicar” que o brasileiro em questão “não poderia ter sido candidato aos Concursos de Contratação de Escola” dos quais participou por não ter “qualificações para a docência em Portugal”.

Num outro caso, um professor com mais de 30 anos de experiência no Ensino no Brasil começou a concorrer pela oferta de vagas da DGAE depois de obter o reconhecimento específico da licenciatura em português e inglês pela Universidade de Coimbra. Esteve colocado num agrupamento em Lisboa de dezembro de 2023 até agosto deste ano, a trabalhar normalmente até ao final do contrato. Em novembro, concorreu para uma escola num agrupamento na Margem Sul e foi, mais uma vez, selecionado. Trabalhou por quatro dias até que foi informado pelo diretor sobre a exigência do fim do contrato. “Questionei o motivo. Ele disse que uma outra professora que prestou concurso extraordinário teve problema com a documentação e a DGAE perguntou se havia mais alguém na mesma situação”, conta o professor, ao que o diretor terá relatado sobre o seu caso e o de mais um colega, os três brasileiros. “Questionei o motivo, disse que tinha o reconhecimento específico, e ele respondeu: ‘a DGAE mandou desligar, querem só quem tenha universidade portuguesa, não é para ficar com nenhum estrangeiro”, completa. 

Rsposta da DGAE a um professor brasileiro aponta portaria de 2007 para a impossibilidade de lecionar por habilitações próprias.

Diretores desconhecem

Em todos os relatos ao DN, os professores realçam a surpresa dos diretores das escolas ao serem confrontados com o contacto da DGAE. “Estamos a ser demitidos, de forma abrupta, mesmo tendo formação de excelência, devido a uma portaria de 2007. O diretor estava bastante pesaroso, disse que tinha uma péssima notícia para me dar. Perguntou se eu conhecia tal portaria, eu disse que desconhecia”, conta outra brasileira, que já trabalha em Portugal há quatro anos, com passagens por diversos agrupamentos. Neste mais recente, estava colocada desde o final de setembro, quando, no início deste mês, foi demitida. Ela tem o seu reconhecimento específico da licenciatura em História no Brasil feito pela Universidade Nova de Lisboa. “O diretor tentou argumentar com a DGAE, mas foi em vão. Elogiou o meu trabalho, a interação com os alunos. É uma escola multicultural”, diz, lamentando, ainda, que os alunos fiquem sem aulas. “É uma escola muito carenciada, eu já era diretora de turma”.

O presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (Andaep) afirma ao DN não ter conhecimento das demissões dos professores brasileiros ou de outros profissionais com formação estrangeira. No entanto, também não tem informações sobre a atuação da DGAE neste casos. “É uma portaria de 2007 que se mantém em vigor, é isso?”, reage Filinto Lima ao ser questionado.

“Não temos conhecimento disso. O que me parece que é um problema eminentemente legislativo que tem que ser clarificado. A DGAE não tem interesse nenhum em não reconhecer uma habilitação profissional só porque lhe apetece, a DGAE tem que fundamentar os seus atos. Eventualmente, até porque me diz que as universidades reconhecem a formação destas pessoas, há que ter aqui uma alteração legislativa”, completa o dirigente. Na opinião de Filinto Lima “a decisão se calhar seria, se a DGAE mantiver essa posição, o professor nem sequer poder concorrer. Agora, concorreu, entrou e depois teve de sair, é claro que isto não fica bem ao sistema educativo nacional. Isto devia ter sido evitado”, afirma.

Filinto Lima avalia que a portaria de 2007 já é “muito antiga, eventualmente carece de ser atualizada. Durante este período, as coisas mudaram muito”, ressaltando que “vai chegar uma nova pandemia a Portugal nos próximos dias. O vírus, que é a falta de professores, vai chegar a todo o país”.

DGAE responde

Em resposta a questões enviadas por e-mail pelo DN, a DGAE diz que os casos descritos “poderão decorrer das seguintes situações que a seguir se exemplificam: na fase de validação, pelos diretores, dos documentos apresentados pelos candidatos estes não estão em conformidade com o enquadramento legal aplicável; os candidatos são denunciados pelos seus pares comprovando-se a inconformidade; os candidatos assumem concorrer para o exercício de funções docentes, sem o necessário reconhecimento da qualificação profissional; os candidatos solicitam à DGAE o reconhecimento, já estando inclusive a lecionar e constata-se que o mesmo ainda não tem os documentos necessários para o efeito”.

Todos os depoimentos recolhidos pelo DN relatam situações em que a documentação dos professores tinha sido validada no Sistema Interativo de Gestão de Recursos Humanos da Educação (SIGRHE), através do qual concorreram às vagas, e analisados pelos diretores, com os contratos já assinados ou prontos a serem assinados, e nos quais o contacto com as escolas para o fim das funções dos profissionais partiu da DGAE.

Segundo a direção-geral, há 29 docentes estrangeiros com habilitação profissional reconhecida em Portugal. Do total, 22 são brasileiros. Há ainda 12 processos de candidatos com formação no Brasil em fase de análise e verificação. Estes dados são relativos ao ano letivo de 2022/2023, os mais atualizados até o momento. Os números refletem os profissionais que passaram pela “profissionalização”, como é chamado o procedimento feito junto da DGAE destinado “aos cidadãos da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu que tenham adquirido uma qualificação profissional para a docência noutro estado membro, aos cidadãos nacionais de Estado membro que tenham obtido a sua qualificação profissional fora da União Europeia e ainda aos cidadãos brasileiros que tenham obtido uma qualificação profissional para a docência no Brasil”, conforme explica a direção em seu site. No caso de quem concorre com habilitações próprias, a profissionalização não é necessária.

Brasileiros pedem transparência

Especificamente sobre o reconhecimento de habilitações dos professores brasileiros, a DGAE diz que segue o artigo 47 do Tratado de Amizade assinado entre Brasil e Portugal. O texto diz que quando uma profissão for regulamentada pela participação de um dos países “em um processo de integração regional”, caso de Portugal na União Europeia, os cidadãos podem exercer aquela atividade “em condições idênticas às prescritas para os nacionais dos outros Estados participantes nesse processo de integração regional”. A DGAE explica que como existe uma regulamentação para os nacionais dos Estados-Membros da UE exercerem a docência no país, “então essas mesmas disposições terão de ser aplicáveis ao reconhecimento de qualificações profissionais para a docência adquiridas por nacionais da República Federativa do Brasil, de modo que possam aceder à profissão e exercê-la em condições idênticas às prescritas para os nacionais dos Estados-Membros da União Europeia”.

No entanto, segundo o professor brasileiro Daniel Aleixo, o procedimento europeu prejudica os brasileiros. “Um cidadão italiano ou espanhol que vai à DGAE e pede o reconhecimento, já tem automaticamente o reconhecimento específico. Existe uma facilitação a nível europeu, já que o sistema de ensino é o mesmo. Existem documentos solicitados aos brasileiros que não existem no Brasil. Se é para ser tratado de forma idêntica, deveria ser em todos os aspetos”, diz ao DN. Além disso, acredita que, no caso dos brasileiros com reconhecimento específico dos diplomas e que concorrem por habilitações próprias “não deveria haver a diferenciação, porque já passaram por uma universidade portuguesa, ela fez a análise que deveria fazer, julgou e concedeu um documento que garante os mesmos direitos de quem se licenciou nela”.

O professor é o autor de uma petição ao Parlamento que pede a criação de uma regulamentação específica para quem obteve formação no Brasil poder lecionar em Portugal. A petição reuniu 615 assinaturas e foi discutida esta quinta-feira (12) na Comissão de Educação e Ciência, na qual os grupos parlamentares do PSD, PS e Livre reconheceram a necessidade de avaliação da situação. O Bloco de Esquerda prometeu a criação de um projeto de resolução a ser apresentado ao Governo em favor dos peticionários. Já o Chega manifestou-se contra qualquer proposta.

caroline.ribeiro@dn.pt