Por alegado abuso e assédio
04 fevereiro 2024 às 10h08
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Investigação a Boaventura Sousa Santos regista novo atraso

Prazo foi alargado até 15 de fevereiro, mas não será suficiente para concluir averiguações a alegado abuso e assédio que envolve Boaventura de Sousa Santos e responsáveis do Centro de Estudos Sociais. Advogada de queixosas diz ao DN que elas “não ficarão silenciadas caso os acusados não tenham processos disciplinares”.

A equipa de cinco pessoas que está a analisar queixas de abuso e de assédio sexual e moral contra o sociólogo Boaventura de Sousa Santos e o antropólogo Bruno Sena Martins, ambos do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, deverá falhar o prazo de 15 de fevereiro para entrega do relatório final. É o segundo atraso depois de a equipa ter pedido a 15 de dezembro um adiamento por dois meses.

A “Comissão Independente do CES para o Esclarecimento de Eventuais Situações de Assédio” iniciou funções a 1 de agosto do ano passado, por iniciativa da direção do CES, e recebeu denúncias até 30 de setembro, estando a analisá-las desde então. O novo prazo previsto para conclusão dos trabalhos é 29 de fevereiro. A data não consta do site oficial do CES, que tem uma página especialmente dedicada à comissão, mas surge em e-mails automáticos que a comissão remete a quem a contacta por escrito. “Neste momento os membros da Comissão Independente estão a elaborar o relatório a ser entregue ao CES até dia 29 de fevereiro”, lê-se.

A comissão não respondeu ao contacto do DN. Um funcionário do CES disse que não há tutela direta da direção da instituição sobre a equipa da comissão, para que ambas mantenham a sua independência, e acrescentou que dificilmente algum membro da comissão falará em público sobre este assunto até que o relatório esteja pronto.

Note-se que a entrega do relatório não significa que o conteúdo seja imediatamente divulgado. O próprio CES estabelece com subtileza essa diferença, ao referir no site que “após a conclusão e análise do relatório final destes trabalhos, a direção do CES e a Comissão Independente mantêm o seu compromisso com a apresentação pública dos resultados, em data a confirmar tão cedo quanto possível”.

Questionada sobre a data da divulgação pública, se esta consistirá numa sessão aberta e se será apresentada uma síntese dos resultados ou o relatório completo, a direção do CES, liderada pelo investigador Tiago Santos Pereira, preferiu não entrar em detalhes. “A data de apresentação pública dos resultados será comunicada tão cedo quanto possível”, transmitiu a direção do CES.

Os supostos atos de assédio sexual e moral por parte de Boaventura de Sousa Santos terão ocorrido ao longo de mais de duas décadas e eram comentados há anos, mas só se tornaram notícia, avançada pelo DN, a partir de março do ano passado. Foi quando a conhecida editora britânica Routledge publicou o livro “Sexual Misconduct in Academia”, onde consta um capítulo que descreve abusos e refere nomes e locais sob forma de ficção. O capítulo é das investigadoras de ciências sociais Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Myie Nadya Tom. A venda do livro foi suspensa dois meses depois do lançamento e assim se mantém, o que tem motivado acusações de censura à editora.

Depois do livro, surgiram outros relatos, incluindo da argentina Moira Ivana Millán, que já havia falado anos antes, sem repercussão, para descrever o sociólogo como um “machista violento” que a agrediu sexualmente em sua casa, em Coimbra. O visado disse que a alegação é “absolutamente caluniosa”. 

O caso teve eco internacional, uma vez Boaventura de Sousa Santos é considerado uma figura tutelar das ciências sociais em Portugal e na América do Sul e tido como um dos gurus do pensamento da esquerda política. Além do sociólogo, de 83 anos, que ajudou a fundar o CES em 1978 e que era até ao ano passado diretor emérito da instituição, também o antropólogo do CES Bruno Sena Martins, de 45 anos, é alvo de acusações de assédio e abuso sexual de mulheres. Ambos os investigadores pediram a suspensão de funções em abril último e assim se mantêm. Há também queixas de “extrativismo intelectual” e de presumível cumplicidade da investigadora-coordenadora do CES Maria Paula Meneses.

Contactado pelo DN, Boaventura de Sousa Santos disse que não faz declarações antes de a comissão apresentar o relatório. O sociólogo já foi ouvido pela comissão, numa reunião “extensa e cordial”, e terá sido confrontado com factos detalhados sobre os casos de que já tinha tido conhecimento pela comunicação social, apurou o DN.

A comissão recebeu pelo menos 10 queixas até setembro vindas de mulheres de várias nacionalidades, noticiou o Público em outubro. Uma das queixas será de Moira Ivana Millán. As outras foram apresentadas em conjunto através da advogada brasileira Daniela Félix.

A jurista disse esta semana ao DN que espera ter “acesso ao relatório no fim de fevereiro”, admitindo assim que o prazo de 15 de fevereiro não será cumprido. Em nome das nove alegadas vítimas, sublinhou que estas irão dar a cara no fim do processo. “Tenho sido o rosto de um coletivo internacional de mulheres que [quase todas] se mantiveram sob anonimato pela vulnerabilização a que estão sujeitas enquanto decorre o processo”, mas “quando a investigação terminar o coletivo não dependerá exclusivamente da minha voz”, afirmou.

No dizer de Daniela Félix, as nove mulheres esperam que através do relatório da comissão seja revelado aquilo que descrevem como uma “estrutura de abuso normalizada” dentro do CES. Esperam que os supostos agressores “sejam identificados e responsabilizados e que seja reconhecido que o assédio moral e o assédio sexual não são violências que moram no passado, pois os danos fazem sentir-se no presente”.

“Não vamos abdicar de um resultado final justo”, disse a advogada. “Até ao momento, nada garante que a luta destas mulheres possa terminar com a divulgação do relatório”, pelo que “o coletivo não ficará silenciado caso os acusados não tenham processos disciplinares”.

A “Comissão Independente do CES para o Esclarecimento de Eventuais Situações de Assédio” é composta por quatro mulheres e um homem: Catarina Isabel Reis Neves, Cristina Ayoub Riche, Jorge António Ribeiro Pereira, Maria Eduarda Proença de Carvalho e Michaela Antonín Malaníková.