Premium
Sociedade
11 novembro 2024 às 00h27
Leitura: 22 min

Hugo Guinote: "Infelizmente, em alguns bairros temos de, permanentemente, garantir a ordem pública"

É Intendente da PSP e chefia a Divisão de Prevenção Criminal e Policiamento de Proximidade. Revela que tem 850 polícias afetos a programas de proximidade, mas nenhum deles pensado para bairros onde a relação com a polícia está mais tensa. Garante que a PSP está disposta a procurar pontos de ligação.

Na sequência da morte de Odair Moniz e dos tumultos na Grande Lisboa, falou-se muito em policiamento de proximidade. Mas concretamente à perceção da população da falta desse policiamento, especificamente direcionado para alguns bairros da periferia, onde a relação com a polícia está mais tensa. Qual é a visão que a PSP tem em relação a isso. Há ou não falta de policiamento? O que é que é preciso fazer mais?
Não há falta de policiamento de proximidade. Desde 2006 que é uma estratégia implementada na Polícia de Segurança Pública (PSP) oficialmente, desde a definição prioritária que foi inscrita no programa do Governo até à sua concretização a nível tático. Os polícias sabem que desde 2006 têm de cumprir funções do policiamento de proximidade. Isto começou há, sensivelmente, 20 anos e desde então tem evoluído bastante. Temos cada vez polícias com mais formação técnica, com uma maior exigência por parte da população para que diversifiquemos a atenção que é dada aos diferentes públicos, especialmente vulneráveis, sem distinção consoante as áreas geográficas.

Sabe que uma das coisas que foram ditas depois da morte do Odair, foi precisamente que, desde 2006 deixou de haver policiamento de proximidade, especificamente relacionado com estes bairros. Como é que interpreta que a perceção das pessoas sejam precisamente o contrário do que acabou de dizer?
Isso não corresponde à verdade.

É a perceção das pessoas...
A perceção das pessoas não corresponde àquilo que são os factos que nós temos reportados.

Pode concretizar então?
Vou concretizar. Neste momento, a PSP tem aproximadamente 850 polícias afetos ao policiamento de proximidade nas diferentes funções. E estes polícias cumprem ao ano sensivelmente, 13 500 a 14 000 ações de sensibilização diversificadas pelos diferentes programas especiais.

Está a falar de programas como a Escola Segura, o Comércio Seguro, o Apoio 65, para os idosos...   
Permita-me que prossiga. Em 2023, alcançámos 390.000 destinatários e para além das ações de sensibilização, reforçámos com perto de 50.000 contactos individuais, ou seja, momentos em que os polícias estão reunidos ou com a pessoa, ou com médicos, psicólogos, professores, familiares, no sentido de abordar e encontrar uma solução para um caso específico.

Isso a nível nacional?
A nível nacional, nos diferentes bairros. E aí eu não consigo dar uma realidade à escala de bairro. Mas posso dizer que na generalidade dos bairros, com maior ou menor dificuldade em conseguirmos interagir com as comunidades, procuramos sempre encontrar diferentes organizações que possam servir de interlocutores.

Então, por exemplo, na zona da Grande Lisboa, onde há cerca de 500.000 pessoas que são habitantes de bairros em condições sócio económicas mais vulneráveis, que programas de policiamento de proximidade existem?
Não tenho os dados do Comando de Lisboa, mas posso dizer como é que funciona em qualquer ponto do país, independentemente de ser em Lisboa ou em qualquer outro distrito.

Os programas não são diferentes de acordo com as características demográficas, sociais, económicas, etc., de cada uma zonas?
Está a falar dos critérios das Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS)? Já vamos falar sobre isso para desmistificar de uma vez por todas. Vou explicar como fazemos, independentemente do local, do distrito, se é uma área urbana, suburbana, mais antiga, mais recente, do tipo de população.

O que procuramos é encontrar pontos de contacto com as diferentes comunidades. E esses pontos de contacto podem ser os diferentes órgãos sociais das autarquias. juntas de freguesia, por exemplo, câmaras municipais, têm os seus respetivos departamentos de ação Social, que são pontos de contacto e que muitas vezes nos dão a referência daquilo que são as associações locais, organizações não governamentais que acabam por funcionar muitas vezes, não diria mediadores, mas muitas vezes intermediários, para que possamos estar mais perto dessas comunidades.

Esses são um ponto muito importante, porque são pessoas que trabalham muito dentro daquilo que são as culturas que existem nos diferentes bairros e conseguem garantir que há uma identificação mais fácil dos problemas que atingem aquelas comunidades. Boa parte desses problemas só numa fase tardia é que se refletem nos aspetos de segurança. Para além disto, o programa Escola Segura garante sempre que nós estamos em todas as escolas dos mais diferentes bairros. Independentemente de ser um bairro com mais ou menos carências, todos eles têm escolas. Pelo (menos) uma escola de primeiro ciclo existe sempre. E os nossos polícias estão lá sempre.

A partir do momento em que interagimos através dos programas especiais com as crianças, conseguimos, em articulação com as escolas, elencar também um conjunto de problemas que acabam por se refletir, não necessariamente na criminalidade de rua, mas na qualidade de vida destas crianças. E isso permite-nos estabelecer a ponte para conhecermos mais alguns problemas das famílias e, a partir dali, trabalharmos em rede.

Trata-se de um trabalho em rede, pois estende-se quer às Comissões Sociais de Freguesia, quer às Comissões Locais de Ação Social - a primeira de âmbito da freguesia e a segunda do âmbito municipal – e, em último caso, temos sempre a realidade das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens que trabalham a parte das crianças. A Polícia está, obrigatoriamente, presente em todas as comissões.
 
Isso faz parte da Estratégia Integrada de Segurança Urbana (EISU) apresentada pelo anterior Governo, certo?
Exato. A EISU faz ainda apelo a uma estrutura que não existe em todos os aglomerados habitacionais, mas que já existe em alguns, que são os Contratos Locais de Segurança (CLS). A PSP atua em aproximadamente 36 contratos locais de segurança que se estendem por quase 30 territórios. Também eles acabam por ser pontos em que fazemos o elo de ligação com as diferentes comunidades e os programas especiais que nós vamos tendo.

Não são, em si o produto final. São uma ponte para que consigamos chegar a diferentes públicos e adaptar estas ações que fazemos em articulação com a associações locais. São importantes para nos fazer chegar a realidades muito específicas de violência, como por exemplo, a violência doméstica, que é uma realidade amplamente reportada nestas áreas suburbanas. Se não houver alguma confiança entre estas comunidades, nomeadamente as vítimas que residem nestas comunidades e a polícia, não vamos ter acesso às participações. Por isso é tão importante termos esse trabalho com as comunidades.

Voltemos aos bairros e à zona urbana de Lisboa, que foram palco dos distúrbios que causaram enorme alarme social. A PSP tem programas específicos de policiamento de proximidade nestes bairros em concreto?
O que temos são parcerias, a maioria delas informais, não estão protocoladas formalmente, mas são parcerias que funcionam, precisamente, com as associações dessas áreas residenciais. Seja com associações de moradores, sejam maioritariamente com associações de natureza sociocultural e que dinamizam os seus projetos locais e seja sobretudo com os mais jovens.

Mas  também com algumas associações que trabalham com as pessoas mais idosas e que regularmente convidam os polícias a irem fazer ações de sensibilização. Fazem visitas às esquadras, os polícias vão fazer visitas às associações, conversam com as pessoas, participam em algumas atividades durante o ano e isto, de facto, promove a tal proximidade que gera a confiança.

Mas isso não acontecerá em todos os bairros, tendo em conta a tal perceção que foi repetida insistentemente após os tumultos sobre esse afastamento de uma Polícia de proximidade. Ou seja, conhecem apenas a Polícia repressiva. Porque é que isso acontece e o que pensam fazer em relação a isso?
É natural que essas perceções possam acontecer em algumas pessoas e essas pessoas acabam por, nestes momentos, verbalizar essa perceção da insegurança que sentem. Mas isso não corresponde necessariamente à realidade. Agora, efetivamente, isto demonstra que temos de reforçar algum do trabalho que tínhamos vindo a desenvolver junto destas comunidades e procurar alcançar uma franja da população que ainda não estamos a alcançar. Temos para isso o recurso a técnicas, primeiro, de 'desescalagem' de conflito e depois de promoção de aproximações mais soft.

'Desescalagem' de conflito?
Tem a ver com o procurarmos estar mais perto das pessoas, de interagirmos com as pessoas e de procurarmos, através de diferentes organizações, auscultar aquilo que são as suas preocupações e procurar em conjunto, delinear projetos que possam ir ao encontro de soluções que essas pessoas precisam para os problemas, no nosso caso, dos que se refletem na segurança pública.

Acha importante reforçar a formação e definir um perfil específico dos polícias que estão colocados nessas áreas, conforme pretende a ministra da Administração Interna?
Esse problema já foi identificado há algum tempo por parte da PSP. Em 2016 fizemos um protocolo com o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), entretanto integrado na Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), e esse protocolo deu origem a um programa especial conjunto, o Programa “Juntos Por Todos”. Até agora foram realizadas 114 ações de formação que chegaram a, sensivelmente, 2400 polícias.

Foram formados em que matérias?
Em conteúdos que os habilitam a ter mais facilidade em lidar com as comunidades migrantes que são maioritárias nestas zonas suburbanas. Aproveitamos essa articulação com o ACM para, muitas vezes, quer através do Programa Escolhas, quer através dos diferentes organizações que estão sediadas e apoiadas pelo ACM, que se constituem muitas vezes como mediadores locais, procurar também assim reforçar as interações com essas comunidades.

Sente que é suficiente isso? Ou há ou havia aqui algumas valências que era preciso reforçar?
Na segurança interna, por natureza, nunca estamos satisfeitos. Porque é a realidade. Basta acontecer um crime para, automaticamente, concluirmos que podíamos ou devíamos ter feito mais. Há sempre trabalho a desenvolver nesta área. Agora, os novos desafios com a AIMA prendem-se, precisamente, com o de rentabilizar a estrutura que vai ter a nível nacional, sobretudo com as lojas, que vão aumentar ainda mais a nossa capacidade de chegarmos, eventualmente, com maior profundidade, a estas comunidades. Para nós isso é muito, muito importante.

Qual foi a evolução nos últimos anos do investimento da PSP no policiamento de proximidade?
Não há um orçamento específico, pelo menos ao nível do departamento de operações. Isso não é trabalhado.

Tem aumentado o número de polícias que são destacados para estes programas?
Tem-se mantido. Diria que, se calhar, nas últimas duas décadas, desde que em 2006 foi criado, o programa tem tido mais ou menos o mesmo número de polícias. Para nós isso é sinal de que não deixa de haver uma aposta, porque até aqui o efetivo vai pontualmente reduzindo e temos ganho outras valências, como o caso da mais recente no controlo de estrangeiros e fronteiras.

Vou insistir outra vez na questão dos bairros. Alguns destes estão estão identificados no Relatório Anual de Segurança Interna como focos de origem, por exemplo, de criminalidade juvenil e de grupo mais violenta. Dos 850 polícias que estão afetos a programas de policiamento de proximidade, tem ideia de qual é a percentagem que está dirigida para os contactos com estes bairros de onde estes grupos têm mais presença?
Estes polícias estão divididos consoante os programas especiais e nós não temos nenhum programa especial direcionado para estas comunidades. Não foi definida nenhuma escala geográfica para o fazer. Só excecionalmente em projetos muito, muito pontuais, como por exemplo, um que temos na zona de Caxias, no município de Oeiras. O programa “Gira no Bairro” é muito interessante. Conjuga a valência de uma associação local que começou a trabalhar com os jovens e que solicitou à PSP que fosse destacado uma equipa de dois agentes que, na altura, trabalhavam no programa Escola Segura e tinham mais apetência para trabalhar com as crianças.

Tem sido visto como um exemplo de boa prática e temos divulgado até em visitas de peritos das Nações Unidas ou do Conselho da Europa. O sucesso deste projeto é que ele começou por ser direcionado para os jovens que estavam em situação de maior vulnerabilidade, que não tinham suporte familiar, sobretudo na zona em horário pré e pós escolar. Mas a qualidade das atividades foi tão elevada, tão elevada, que hoje em dia já temos pais de famílias perfeitamente estruturadas de fora do bairro, que solicitam vaga para inscrever as crianças ali.

Era um bom exemplo para tentar levar para outros locais, como o Zambujal, a Cova da Moura, Santa Filomena, etc.. onde a relação com a polícia tem sido mais tensa... Porque é tão difícil este contacto?
Não sei dizer. Da nossa parte, temos os recursos que estão sempre disponíveis. Às vezes têm de ser as pessoas certas que conseguem trabalhar da forma correta com aquelas comunidades. Às vezes é uma questão de empatia. É uma questão de formação técnica das pessoas. Trabalhamos em Caxias como trabalharemos em qualquer outro local.

Lembro-me de o ouvir falar numa conferência em que foi apresentada a EISU, em 2022, sobre o crescendo de violência entre grupos de jovens. Porque a PSP não tem um programa de proximidade específico para esta realidade, sendo a polícia com maior conhecimento da segurança urbana?
Sim, é uma ideia. Mas isso funciona quando conseguimos conjugar com o suporte comunitário, porque não pode ser a polícia a fazê-lo de forma isolada. Nós temos sempre um duplo papel, o da promoção da paz pública e o da manutenção da ordem pública. Quando conseguimos fazer a promoção da paz pública isso é o ideal para nós. E estes projetos servem precisamente para conseguir fazê-lo. Mas é sempre em articulação com outros órgãos da comunidade.

Infelizmente, em alguns destes bairros temos de, permanentemente, garantir a ordem pública. E mesmo dentro destas comunidades, grande maioria dos cidadãos quer ter uma vivência em paz e em ordem. Depois temos uma minoria que acaba, às vezes, por ter aquelas ocorrências vulgares do ruído do consumo excessivo de álcool, mas que promovem a desarmonia pontual e obrigam, porque são eles que nos chamam,à nossa intervenção.

Segundo o relatório da Comissão de Prevenção de Delinquência Juvenil e Criminalidade Violenta, em 2023 foram sinalizadas 64 crianças com menos de 12 anos relacionadas com os gangues, ou grupos de criminalidade juvenil. É uma realidade que a PSP também tem vindo a observar?
Sim, e essa realidade também nos preocupa, até porque parte desse conflito que existe é entre jovens da mesma idade. Extravasa um espaço público que antes estava muito confinado à realidade do bairro e que hoje, portanto, acaba por proliferar por diferentes espaços na cidade e muitas vezes é fomentado numa linguagem de ódio entre os diferentes grupos nas redes sociais.

E vão continuar a chamar ZUS a estes bairros?
As ZUS foi um conceito operacional encontrado em 2006, quando nós estávamos a desenhar um modelo de policiamento tendo em conta avaliações de risco. Na altura esta era uma expressão politicamente correta, por incrível que pareça. Na altura, em 2006, consoante um conjunto muito vasto de critérios, começámos a elencar aquilo que caía em ZUS. Chegou uma altura em que no país identificámos mais de 300 ZUS.

Que tipo de critérios?
Critérios da densidade populacional, das características socioprofissionais das pessoas, do histórico de criminalidade que existia, do histórico de conflitualidade entre os próprios residentes, a criminalidade circundante...

Origem e etnias?
 Não, isso não fazia parte.  São característicos que nunca valorizamos. Para nós é muito mais importante se há um histórico de crime, se aquela comunidade tem pessoas que têm referenciação pela prática de crimes, a relação que tem uns com os outros, o histórico de conflitualidade entre as próprias pessoas. Isso é que é relevante do ponto de vista operacional, para nós percebermos que tipo de abordagem é que precisamos de fazer, com maior ou menor cautela.

E eram 300 e tal?
Chegámos a uma altura em que ultrapassavam as 300 ZUS. Então deixámos de fazer a referenciação por ZUS. Nesta altura, o que nós fazemos é aplicar um conjunto de critérios, que já são diferentes daqueles que eram aplicados à época e que referenciam qualquer espaço, seja um espaço residencial, seja um espaço público, seja um espaço ou um interface de transportes, seja o que for, desde que seja um local em que nós, sobretudo, temos como referência um avolumar de um conjunto de ocorrências.

Então, isso passa a ser uma zona. A designação que usamos é um conceito que está na lei: zonas urbanas e outras de especial criticidade. Podem não ser no meio urbano. Pode ser suburbano, pode ser urbano, pode ser junto a uma praia, pode ser uma área de diversão noturna....

São permanentes ou têm em conta eventos que acontecem?
Os eventos podem influenciar a forma como afetamos os recursos policiais.

E quantas zonas dessas estão identificadas?
Não existe essa identificação contabilizada porque ela pode ir variando precisamente com a sazonalidade e consoante os cenários que vamos tendo. Podemos definir como prioritária essa zona e, por isso, afetar ou desviar recursos de uma área para outra.  

Por exemplo, na zona central de Lisboa, podemos definir como zonas de especial criticidade, os interfaces de transporte, os locais de diversão noturna, um ou outro estabelecimento escolar, porque se calhar está nas imediações precisamente de estradas que carecem de uma atenção maior em segurança rodoviária.

Nada tem a ver com zonas geográficas de bairros?
Nada a ver com os bairros. Esse critério caiu. Porque percebemos que isso era falacioso. Dava a ideia de que só os bairros é que mereciam recursos especiais. E hoje em dia o que nos interessa é o tipo de ocorrências e o volume de ocorrências que nós vamos tendo. Uma adequação de meios tendo em conta a avaliação de risco. Incluindo factores que influenciam a segurança nos aspetos do urbanismo. A EISU tem um capítulo específico que consagra precisamente um conjunto de medidas que visam a promoção da segurança através do mobiliário urbano.