Ensino
20 abril 2024 às 12h27
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Gert Biesta: “Ambição da educação deveria ser encorajar as crianças e os jovens a tornarem-se indivíduos democráticos”

Pedagogo, professor e pensador do fenómeno da educação, o neerlandês Gert Biesta esteve em Portugal, a 19 de abril, como convidado da conferência “Futuros da Educação”, iniciativa promovida pela Cátedra UNESCO.

Na conferência que trouxe a Lisboa olhou criticamente para o futuro da educação. Critica os que enfatizam a importância da continuidade e os que defendem uma mudança radical. Há um outro futuro entre estes dois polos?

Sobre essa questão recordo as palavras do educador americano George Counts, que afirmou ser conservador porque acreditava na conservação de ideias radicais. Preocupo-me com as pessoas que argumentam que a educação precisa de inovação constante. Afinal, o que é novo não é automaticamente melhor. Preocupo-me com as pessoas que querem levar a educação ao encontro de algum tipo de passado romântico em que os professores tinham autoridade e os alunos simplesmente faziam o que lhes era ordenado. Se tal passado alguma vez existiu, foi um passado muito cruel para os alunos, e provavelmente também para muitos professores, e definitivamente não é o passado de que precisamos. Que tipo de mudança é necessária, e onde precisamos de trabalhar contra a mudança, depende criticamente do que consideramos ser o objetivo da educação. Em meu entender tudo isto tem a ver com a democracia. 

A palavra “resistência” é importante no seu trabalho. A que resistência se refere?

Julgo que é importante que as crianças e os jovens tenham muitas oportunidades de trabalhar com o que, no currículo inglês, é conhecido como “materiais resistentes”, ou seja, madeira, metal, pedra, argila, entre outros. Ao trabalhar com estes materiais, ao jovem é-lhe permitido perceber que nem todas as ideias que tem sobre o que gostaria de fazer são, realmente, possíveis. Mostra-lhe, desta forma, os limites do seu pensamento e a necessidade de dialogar com um mundo que é real. Desta forma, impõe limites ao que pode fazer com essa realidade. Esta é uma experiência educativa importante, mas também uma lição básica de convivência democrática. O artesanato e as artes são importantes campos de prática. Mas, pode experimentar o mesmo, por exemplo, na matemática ou nas ciências, se tiver professores que entendam a importância educativa da resistência. Há também a necessidade de os pais oferecerem resistência aos desejos dos seus filhos, porque se dissermos sim a tudo o que eles pedem e desejam iremos transformá-los em crianças mimadas, em vez de os ajudarmos a perceber que nem tudo o que é desejado é realmente desejável. 

Critica a excessiva instrumentalização da educação, enfatizando a importância da formação de sujeitos críticos e autónomos. A que instrumentalização se refere? 

A instrumentalização da educação passa pela ideia de que as escolas, faculdades e universidades devem apenas fazer o que a sociedade e o governo querem que façam. Por exemplo, produzir uma força de trabalho qualificada ou transformando crianças e jovens em cidadãos obedientes. Isto não quer dizer que a educação não tenha aqui um papel a desempenhar, mas se isto é tudo o que esperamos da escola, então as crianças e os jovens são vistos apenas como objetos que precisam de ser treinados e influenciados, e esquecemos que também precisamos de ajudá-los a conduzir a própria vida. Como educadores, deveríamos, por outras palavras, preocupar-nos também com a liberdade dos nossos alunos e com o desafio que se lhes coloca, o de usarem bem a sua liberdade. Isto tem algo a ver com uma preocupação com a autonomia, desde que não pensemos que autonomia significa estar desconectado dos outros seres humanos e apenas fazer o que se quer. O desafio passa, antes, por viver a sua própria vida de tal forma que haja espaço para que as outras pessoas vivam também a sua vida, o que exige, sempre, compromissos e limitações. A ambição da educação deveria ser, portanto, encorajar as crianças e os jovens a tornarem-se indivíduos democráticos, o que não é uma tarefa nada fácil, mas é muito importante.

Como podemos garantir que a educação não se torna simplesmente um meio para fins utilitários? Por exemplo, como referiu, responder apenas à procura do mercado de trabalho.

Significa que nós, enquanto académicos e também como educadores, precisamos de oferecer resistência às tendências de fazer da educação apenas um instrumento ao serviço de interesses terceiros. É aqui que a escola tem o “dever de resistir”, como referiu o académico francês Philippe Meirieu. A questão-chave, claro, é em que base podemos oferecer tal resistência. Para isso, pode ser útil observar que a escola vive, na verdade, numa realidade dupla. Por um lado, responde a uma função das sociedades modernas que surgiu quando a vida quotidiana começou a perder a sua qualidade educativa: quando o trabalho passou de casa para escritórios e fábricas, por exemplo. Mas a escola é também o tempo que dedicamos a que uma nova geração possa conhecer o mundo e encontrar a sua relação com o mundo. E disponibilizamos este tempo porque queremos dar aos jovens a oportunidade, julgo que honesta, de entrarem na sua própria vida. Vem a propósito disto recordar que a palavra grega “escola” significa, na verdade, “tempo de ócio”, tempo que ainda não foi tornado produtivo, ainda não reivindicado por outras forças. 

Destaca a importância da relação entre professor e aluno como fundamental para uma educação de qualidade. Como pode o professor equilibrar a transmissão de conhecimentos aos alunos com o estímulo ao seu pensamento crítico e à autonomia?

Na verdade, penso que a educação implica sempre uma relação triádica entre professor, aluno e o mundo, e que o gesto básico da educação é voltar a atenção dos alunos para o mundo. E neste contexto, o mundo não é apenas um “objeto” ou “área” sobre o qual se pode adquirir conhecimento. O mundo também coloca questões que nos são endereçadas. Precisa do nosso cuidado, por exemplo. Não pode ser apenas um objeto para fazermos o que quisermos. Aliás, a crise ecológica tornou esta questão muito visível. Mais do que autonomia e pensamento crítico, talvez haja um trabalho a fazer na tentativa de sensibilizar os nossos alunos para as questões que o mundo natural e social nos endereça. Chamo a isto uma educação centrada no mundo.

Onde se situa a escola entre a necessidade de responder às demandas da sociedade e a necessidade de preservar-se desta?

Devemos reconhecer que a escola tem um “trabalho” importante a fazer no contexto da sociedade. Este trabalho, que se relaciona com proporcionar às crianças e aos jovens compreensão, competências e orientação no mundo, é importante e precisa de ser bem realizado. Mas, como se percebe a partir do que referi anteriormente, isto não é tudo o que compete às escolas. A escola também tem a sua própria “preocupação”, a de cuidar de oferecer às crianças e aos jovens uma oportunidade justa para seguirem com as suas vidas, com a sua própria independência, rumo a iniciativas e a responsabilidades. Equilibrar estas duas exigências é bastante difícil, também porque as escolas estão sob muita pressão inútil para garantir que os seus alunos tenham avaliações “altas” em conhecimentos e competências mensuráveis. Esta pressão, que é intensificada por sistemas ridículos como o PISA da OCDE, esquece que o conhecimento e as competências nunca são um objetivo em si, mas sim um meio de equipar as crianças e os jovens para a sua própria vida ponderada, significativa, responsável e democrática.

A sua teoria sobre a “emancipação” na educação destaca a importância de capacitar os alunos para se tornarem agentes de mudança. Como pode isto ser realizado na prática educativa? 

Na verdade, não sou fã da linguagem do empoderamento e também não tenho a certeza sobre a mudança, porque às vezes o que é necessário é lutar contra a mudança, se essa mudança estiver a piorar as coisas. O problema do empoderamento é que ele evoca a imagem de crianças e jovens a ganharem mais poder, mas o principal desafio não é, ou não é apenas, obter mais poder. É muito mais importante ser-se capaz de julgar o que fazer com esse poder. Podemos ver isto à escala global, com políticos muito poderosos que usam o seu poder de formas horríveis. Portanto, o julgamento é, talvez, uma qualidade ainda mais importante a ser abordada. Um julgamento democrático que se concentra no valor de viver a vida na pluralidade e na diferença ou, se quiser, viver a vida com uma orientação para a igualdade e para a paz.  Em vez de empoderarmos, precisaríamos, realmente, de trabalhar no oposto, o que poderíamos chamar de desarmamento: uma capacidade de permanecermos abertos e sensíveis.

Há inúmeros argumentos a favor da tecnologia e de como esta remodela radicalmente a educação. No entanto, é crítico em relação ao papel da tecnologia na educação. Considera que a escola não precisa das tecnologias? 

Diria que a escola é em si uma tecnologia – a escola é artificial. O currículo, os livros didáticos, a organização das escolas em turmas e turmas anuais, são tecnologias que utilizamos para fazer a educação acontecer. O desafio das tecnologias é que devem ser vistas como meios, mas muitas vezes tornam-se fins em si mesmas. Não há nada de errado num bom livro didático, mas se pensarmos que a educação consiste em memorizar o conteúdo desse livro e passar num teste, então o livro didático torna-se um fim em si mesmo. Julgo que este é um perigo ainda maior com as tecnologias “digitais” contemporâneas, porque muitas vezes parecem muito tentadoras e trazem grandes promessas. Por causa disso, podemos rapidamente esquecer que na educação tudo começa com aquilo que procuramos – o objetivo e o propósito da educação – e é apenas em função disso que podemos decidir que tipo de tecnologias podem ser úteis e significativas. Face a isto, sou muito crítico em relação às tecnologias modernas, talvez ainda mais porque muitas pessoas esquecem-se de fazer as perguntas educativas e pensam apenas que a tecnologia deve ser usada porque está disponível.

O Ciclo de Conferências “Futuros da Educação” prossegue a 3 de maio com a presença em Portugal de Arjun Appadurai, antropólogo indiano, notabilizado por trabalhos sobre a modernidade e a globalização. O encontro decorre no Auditório Emílio Rui Vilar da Culturgest, às 15.00 de Lisboa (com transmissão em direto no canal Youtube da UNESCO Brasil – 11.00 em Brasília). A sessão conta com moderação de António Sampaio da Nóvoa, doutor em Educação e em História. 

Tópicos: Educação, UNESCO