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Internacional
15 agosto 2024 às 09h21
Leitura: 12 min

Califórnia é azul, mas nunca produziu um presidente democrata. Será Kamala Harris a primeira?

É o estado com mais votos no colégio eleitoral, mas raramente decisivo e nunca teve um presidente democrata nativo. O que torna a Califórnia tão especial nas presidenciais?

Na longa noite de 8 de novembro de 2016, a candidata democrata à Casa Branca, Hillary Clinton, teve um momento fugaz de liderança contra Donald Trump, que acabaria por vencer as eleições. Foi quando os 55 votos da Califórnia no Colégio Eleitoral iluminaram a porção azul do ecrã, colocando Clinton temporariamente à frente. A dianteira não durou muito, porque apesar de ter mais eleitores e mais votos no Colégio Eleitoral que qualquer outro estado, a Califórnia não resolve eleições nos Estados Unidos. A escolha dos eleitores californianos é irrelevante no grande quadro eleitoral por causa do complexo sistema vigente, que torna alguns milhares de votos em estados críticos, como Geórgia e Wisconsin, mais consequentes que 20 milhões de votos na Califórnia.

Esta aparente incongruência ajuda a explicar porque é que, apesar de ser um estado gigantesco com 39 milhões de pessoas, que vota democrata há décadas, a Califórnia nunca produziu um candidato presidencial democrata e, como tal, nunca produziu um presidente democrata. Kamala Harris, que será consagrada oficialmente na Convenção Democrata em Chicago, a partir de 19 de agosto, será a primeira californiana a tentar chegar à Casa Branca pelo partido.

“Penso que é apenas uma questão de sorte aleatória”, disse ao DN o cientista político Brian Adams, professor na Universidade Estadual da Califórnia em San Diego. “Não creio que haja alguma razão sistemática pela qual os democratas nunca tenham escolhido um californiano para candidato presidencial”, referiu. “Todos os anos são únicos. Mas a Califórnia, de facto, nunca teve um candidato democrata.”

Isso não é verdade do outro lado, curiosamente. O presidente republicano Richard Nixon, que venceu as eleições presidenciais de 1968  por uma margem de apenas 0,7% em relação ao oponente Hubert Humphrey, nasceu na Califórnia. Representou o estado como congressista e senador pelo partido republicano e foi depois eleito vice-presidente (1953-1961) antes de chegar à Casa Branca em 1968. Venceu a reeleição em 1972, mas o seu segundo mandato acabou de forma abrupta por causa do escândalo Watergate, em 1974.

Há um segundo presidente republicano que é associado com a Califórnia, embora não tenha nascido no “golden state”: Ronald Reagan, presidente conservador entre 1981 e 1989. Apesar de ter conquistado a sua popularidade como ator em Hollywood, Reagan nasceu e cresceu no Illinois, tendo-se mudado para a Califórnia aos 26 anos. Foi depois de uma carreira bem-sucedida na televisão, que incluiu a liderança do sindicato dos atores (SAG-AFTRA), que Reagan iniciou o seu percurso político.

Primeiro como governador da Califórnia, em 1966, e depois como presidente, numa eleição esmagadora contra o incumbente Jimmy Carter, em 1980. Em 1984, conseguiu ser reeleito noutra vitória retumbante contra Walter Mondale.

A eleição que se seguiu, em 1988, marcaria a última vez que um republicano venceu na Califórnia, quando George H.W. Bush superou Michael Dukakis por uma margem de 3,57%. Todas as eleições seguintes deram a vitória ao candidato democrata e o partido alargou progressivamente o seu domínio no estado.

A cor azul

A viragem da Califórnia para o azul-forte, reflexo da vantagem do Partido Democrata (os republicanos são representados pela cor encarnada), começou em 1992, quando Bill Clinton ganhou com 46,01% e mais 1,5 milhões de votos que George H.W. Bush. Desde 1964 que um democrata não vencia no estado e vários condados que costumavam votar à direita viraram, como San Diego e Fresno, onde estão instaladas grandes comunidades portuguesas.

Na reeleição de Clinton, em 1996, a margem aumentou significativamente: o incumbente garantiu 51,1% dos votos, mais 12,89% que Bob Dole. A tendência manteve-se inalterada, quando Al Gore perdeu para George W. Bush em 2000 (numa eleição altamente contestada), tendo vencido na Califórnia - 53,45% contra 41,65%. E depois em 2004, quando John Kerry perdeu para Bush a eleição geral, mas ganhou na Califórnia - 54,31% contra 44,36%.

Os anos de Barack Obama trouxeram o grande superávit californiano - o democrata obteve 61,01% dos votos, em 2008, e 60,24%, em 2012. Mas os números foram ainda mais notáveis em 2016. Embora Hillary Clinton tenha sido derrotada por Donald Trump no Colégio Eleitoral, a sua votação popular foi esmagadora: na Califórnia, recebeu quase o dobro dos votos do opositor. Obteve 8,7 milhões de votos contra 4,4 de Donald Trump, 61,73% contra 31,62%. Foi uma margem superior à que Obama conseguiu das duas vezes, vencendo com mais 30 pontos que Trump.

Nem Joe Biden conseguiu superar essa diferença, apesar de ter aumentado de forma significativa o número de votos - recebeu 11,1 milhões de votos (63,48%) contra 6 milhões de Trump (34,32%).

“Há décadas que a Califórnia não é um estado competitivo em termos eleitorais”, salientou o professor Brian Adams. “Não é importante para o Colégio Eleitoral, porque toda a gente sabe que o candidato democrata vai ganhar e o republicano vai perder”, resumiu. “Por isso, nem democratas nem republicanos fazem campanha cá. Basicamente, ignoram o estado porque o podem fazer, e colocam os seus esforços nos swing states”, disse, referindo-se aos estados que podem cair para um lado ou para o outro. 
Desta vez, as coisas são um pouco diferentes, porque Kamala Harris nasceu, cresceu e fez toda a sua carreira na Califórnia. Há cerca de 22 milhões de eleitores registados no estado, onde a participação eleitoral nas últimas eleições foi superior a 80%.

A questão, a 5 de novembro, não será Harris a ganhar a votação por estes lados, porque isso aconteceria independentemente de ser Harris, Joe Biden ou outro democrata. A questão é a campanha ser enquadrada com a Califórnia como cenário, o que é positivo para os progressistas e negativo para os eleitores que desconfiam das “elites costeiras.” Mas aqui, Harris vai vencer por milhões de votos, à semelhança dos seus antecessores nos últimos 30 anos.

Estado dourado

Há várias coisas que tornam a Califórnia especial em termos políticos, apesar de o estado não decidir eleições. “A Califórnia importa em termos de angariação de fundos”, explicou o professor Brian Adams. “Quando os candidatos vêm cá, costuma ser para angariarem dinheiro.” Donald Trump fez várias visitas nos últimos meses para aumentar o fluxo de caixa da sua campanha, a mais recente das quais em junho, para eventos privados em São Francisco, Beverly Hills e Newport Beach. Só no evento de São Francisco, organizado pelos milionários Chamath Palihapitiya e David Sacks, a entrada custava meio milhão de dólares por casal e produziu 12 milhões em fundos.

Joe Biden também se deslocou várias vezes à Califórnia antes de terminar a sua campanha. Em junho, a sua festa organizada em Los Angeles angariou 30 milhões de dólares, num evento repleto de estrelas - desde George Clooney a Julia Roberts.
Kamala Harris não precisa de “visitar” a Califórnia, porque esta é a sua casa. No último fim de semana, a candidata que tomou o lugar de Biden encaixou 12 milhões num evento em São Francisco, a sua cidade, apelando aos magnatas da tecnologia, cujo apoio a Biden havia azedado. A Califórnia é, frisou Adams, uma galinha de ovos de ouro em termos de injeção de capital nas campanhas.

Também costuma ser importante nas primárias, devido ao número de delegados que envia à Convenção Nacional. Isso não aconteceu desta vez, porque Joe Biden não teve oposição relevante.

Kamala: California girl

Filha de imigrantes, nascida em Oakland, criada no berço das flores no cabelo e da cultura hippie. Kamala Harris é californiana e isso é importante, porque o outro aspeto que torna o estado especial para lá dos votos é a sua ressonância cultural.

“A Califórnia significa algo, politicamente, para as pessoas noutros lados do país”, disse Brian Adams, “quer seja algo bom por causa das políticas progressistas e na linha da frente contra as alterações climáticas, quer seja algo muito negativo porque representa a elite costeira que não percebe nada do resto do país.”

O estado tornou-se, nas partes mais conservadoras dos Estados Unidos, uma caricatura do que eles não querem. É frequente ver no Texas mensagens do estilo “não Californem o meu Texas.” Nos últimos anos, emergiram narrativas sobre um “êxodo californiano”, devido aos elevados impostos, vacinação e políticas progressistas em termos de clima e afirmação de género.

“As pessoas têm opiniões sobre a Califórnia”, sublinhou o professor Brian Adams. “O facto de Harris ser daqui importa, porque há uma conotação atribuída aos políticos que são da Califórnia, em especial da baía de São Francisco.”

O politólogo explicou que não tem tanto a ver com etiquetas como “liberal” ou “progressista”, até porque, frisou, Kamala Harris nunca esteve na ala mais progressista do partido. “As pessoas no centro oeste que podem estar indecisas não vão questionar se a Harris é demasiado liberal por ser da Califórnia”, afirmou. “Vão questionar se entende os desafios e problemas que elas enfrentam.”

O especialista lembrou que um dos argumentos falhados de Joe Biden foi defender a saúde da Economia e os bons números laborais. “Esse argumento não funciona nos sítios que estão com dificuldades económicas, como os estados do centro oeste”, disse o analista. “Este é um dos aspetos onde as elites costeiras são diferentes, porque as economias nas costas têm estado muito bem.”

Esta disparidade económica na geografia terá de ser endereçada pelos democratas, considerou o professor, ao contrário do que aconteceu até aqui. “As pessoas estão a ter diferentes experiências económicas em estados como o Michigan e será importante Harris fazer, pelo menos, um reconhecimento disso.”

Localmente, no entanto, o facto de Kamala Harris ser uma “California girl” pode ter um efeito galvanizador entre os eleitores mais jovens, que estavam desencantados com Joe Biden. Isso não fará diferença ao nível da Casa Branca, mas pode fazer ao nível das outras corridas. Porquê? “A mão cheia de eleições renhidas na Califórnia este ano vai provavelmente decidir o controlo da Câmara dos Representantes.”