Portugal há 50 anos
06 abril 2024 às 00h14
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Onde eu estava por... Jorge Bettencourt

Oficial de Marinha reformado e engenheiro, nascido em Lourenço Marques (Maputo) em 1950.

No início de 1974 estava no quarto e último ano da Escola Naval, uma escola bem diferente do Técnico que frequentei antes de optar pela Marinha. Contudo, esse período de 1968 a 1970, marcado pelo ativismo estudantil universitário, influenciou a forma como via a ditadura.

Estava certo de que a liberdade e a democracia com que sonhava só seriam possíveis com um golpe militar que mudasse o poder em Portugal. As farsas eleitorais de 1969 e 1973, a resistência dos setores conservadores da Marinha a iniciativas como, por exemplo, a denúncia de práticas formativas caducas ou a criação de um jornal escolar para os alunos debaterem ideias, assim como as ameaças de expulsão da Escola Naval, apesar de ser um dos primeiros classificados do curso, militar e academicamente, não permitiam qualquer ilusão.

Os meus pais também não tinham simpatia pelo Estado Novo. Da minha mãe, nascida numa aldeia no sopé da serra de Montejunto, ouvi falar do primeiro emprego na sede da Companhia de Diamantes de Angola e dos tiques de ditador do seu patrão, um oficial de Marinha monárquico próximo de Salazar, que foi ministro da República, administrador colonial e de várias empresas e bancos. Do meu pai, que nasceu em Lourenço Marques, filho de madeirenses à procura de uma vida melhor em Moçambique, ouvia críticas ao Estado colonial. Formado em Engenharia Agronómica, casou na metrópole, concorreu aos Serviços de Agricultura de Moçambique e foi colocado em Inhambane, onde vivemos os primeiros sete anos da minha vida. Decidiu apoiar os pequenos agricultores na cultura do café, uma alternativa às concessionadas pela administração colonial às grandes empresas. Instalou estações experimentais, primeiro na Malamba, a sul de Inhambane, e depois no Gurué, na Zambézia, quando foi transferido para Quelimane, onde produzia e distribuía sementes aos fazendeiros e agricultores, que assumiam por inteiro o circuito de produção e venda do café. Mas esta situação incomodava os poderes coloniais e em 1958 a cultura do café foi proibida em Moçambique. Quem quisesse trabalhar em café, que fosse para Angola.

Em consequência ou por coincidência, o meu pai adoeceu gravemente e perante um desfecho que os médicos previam fatal, veio deixar a minha mãe, a minha irmã e eu, então com nove anos, a Portugal. Felizmente, recuperou ao fim de um ano, voltou ao trabalho e tornou-se um especialista do melhoramento genético do cafeeiro. Mas acentuou a descrença na política colonial portuguesa, sentimento que transmitia aos filhos.

Casei em fevereiro de 1973, estava no 3.º ano da Escola Naval. A minha mulher engravidou poucos meses depois e foi na expectativa do nascimento do primeiro filho e dos resultados da conspiração em que procurava participar que chegou o dia 3 de março de 1974, o dia em que o bebé nasceu e o mundo desabou. Na maternidade, explicaram que o menino sofria de uma malformação congénita, com danos significativos e irreversíveis. O menino foi internado no hospital de Santa Maria e faleceu com dez dias de vida.

Ao drama pessoal juntou-se a vivência das carências do sistema público de saúde de então. O que se passava num dos maiores hospitais nacionais era bem a imagem de um regime decadente. Foram os dez dias mais duros e intensos da nossa vida.

Depois foi preciso voltar a levantar o mundo, juntos. Um mês e meio depois, na madrugada do dia 25 de Abril, um camarada avisou-me de que as tropas do Movimento estavam na rua. Despedi-me da minha mulher e apresentei-me na Escola Naval.

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles