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Sociedade
23 setembro 2024 às 00h08
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Buçaco, um catálogo fóssil da pré-história

Nos últimos anos, a região do Buçaco abriu o seu arquivo histórico com centenas de milhões de anos. Daquele território estão a sair registos fósseis da fauna e flora pretéritas. O paleobotânico Pedro Correia e o geólogo Artur Sá dão-nos conta do alcance destas descobertas.

Há inúmeras formas de captar uma paisagem. Vemo-la no seu momento presente, nos caracteres que a identificam. Podemos fixá-la para a posteridade, na pintura ou na fotografia. Os investigadores Pedro Correia e Artur Sá olham para um território de outra forma. Fazem-no numa escala de tempo longa, na ordem das centenas de milhões de anos. Procuram-lhes nos estratos geológicos, aparentemente imutáveis aos olhos do leigo, toda uma vida que pululou em milénios passados. 

O território do Buçaco, na região Centro do país, revela-se um viveiro de achados fósseis. A fauna e flora pré-históricas ali presentes dão-nos testemunho de um mundo então em mudança. Deste facto nos deu prova recentemente Pedro Correia, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Geociências do Departamento de Ciências da Terra, ao anunciar a descoberta de um estróbilo (cone) fóssil de um novo género (Bussacoconus zeliapereira) e nova espécie (Sphenophyllales, Polypodiopsida) de uma planta articulada extinta. Uma planta que existiu na região do Buçaco há cerca de 300 milhões de anos, no fim do Período Carbonífero ou Carbónico. A Bussacoconus zeliapereira pertence a um grupo irmão das atuais cavalinhas da ordem Equisetale, tem o seu nome dedicado a Zélia Pereira, especialista em Palinologia, do Laboratório Nacional de Energia e Geologia.


Pedro Correia adjetivava a descoberta de “espetacular”, porque “este tipo de frutificações de Sphenophyllales são raras no registo fóssil, o qual é muito fragmentado e pouco se conhece sobre a sua verdadeira diversidade taxonómica”. 

Antes de percebermos o alcance dos achados no Buçaco, há que desenhar os contornos da paleobotânica. Responde-nos Pedro Correia: “Na paleobotânica lidamos com muitos fragmentos e na maioria das vezes eles representam diferentes partes fossilizadas do mesmo táxon biológico, como folhas, caules, raízes, sementes e órgãos reprodutores. Para conectar as diferentes partes fossilizadas destas plantas primitivas e estabelecer uma relação de parentesco, é necessário ter um entendimento claro da morfologia e, em alguns casos, também da anatomia, de táxones modernos comparativos”.

Aliado a esse conhecimento, o paleobotânico junta-lhe a perceção dos diferentes contextos geológicos nos quais todos os fragmentos de fósseis vegetais ficaram preservados, bem como dos tipos florais e principais grupos de plantas, de forma a compreender o tipo de climas e ambientes que estas floras do passado habitaram. “A compreensão de todos estes aspetos é a base do estudo da paleobotânica. É por isso que esta ciência é tão fascinante e desafiante porque o registo fóssil vegetal é quase sempre muito fragmentado e disperso; um verdadeiro ‘quebra-cabeças paleontológico”, enfatiza o investigador. 

Fó́ssil da nova espécie Florinanthus bussacensis corresponde a um cone (estróbilo) masculino de uma gimnospérmica da já́ extinta ordem das Cordaitales

Um território com inúmeros endemismos

De momento, Pedro Correia tem na agenda “uma nova espécie, cujo trabalho encontra-se em processo de revisão. Florinanthus bussacensis corresponde a um estróbilo masculino de uma gimnospérmica da já extinta ordem das Cordaitales, um grupo de coníferas primitivas que eram tolerantes ao clima seco e quente, clima esse que foi generalizado nas regiões tropicais do Pangeia central, o supercontinente onde estava localizada a antiga Ibéria [o atual Maciço Ibérico], durante o final do período Carbonífero [há 359 milhões e 299 milhões de anos]”.

Nos últimos anos, o território do Buçaco ofereceu à ciência outros achados. Isso mesmo nos recorda o paleobotânico: “Nas campanhas de prospeção que já realizámos na Bacia Carbonífera do Buçaco conseguimos identificar e descrever até ao momento três novas espécies para a ciência, todas elas encontradas na mesma jazida fossilífera. Estas descobertas são surpreendentes, porque não é muito comum, eu diria extremamente raro, de se descobrir fósseis de diferentes espécies novas, como as já referidas Bussacoconus zeliapereirae e Florinanthus bussacensis e a Poroblattina anadiensis, num só afloramento e nos mesmos níveis rochosos”. 

Sobre a espécie Poroblattina anadiensis, pormenoriza Pedro Costa: “Corresponde a um grupo extinto de baratas parasitóides e ancestral das baratas modernas que existiu no final do Paleozóico, durante o Carbonífero”. O investigador acrescenta que “estes insetos tinham a particularidade de possuir um ovipositor. Este tipo de órgão especializado foi uma estratégia evolutiva para estes dictiópteros primitivos obterem uma fonte segura de alimento para as suas crias, mas também permitir a sua segurança contra potenciais predadores. Um clima progressivamente mais quente e seco que caracterizou a região do Buçaco, no final do Paleozóico, conduziu ao aparecimento de grupos específicos de insetos, tais como o descrito”.

Fóssil da barata primitiva Poroblattina anadiensis

Informações valiosas sobre a evolução do clima

Olhar para este passado remoto, convida-nos a um exercício de reconstituição da paisagem e do clima da época, distintos dos atuais. “A flora que existiu na bacia do Buçaco no final do período Carbonífero, sensivelmente há 300 milhões de anos, viveu em condições ambientais e climáticas confinadas a uma região intramontanhosa, na qual sistemas fluviais funcionaram como mecanismos de transporte de muitos restos vegetais e de sedimentos erodidos de rochas circundantes. A combinação de um ambiente como o que referi e clima, então tendencialmente ou progressivamente mais quente, favoreceu um endemismo local”. 

Sobre o alcance da descoberta do novo fóssil de estróbilo, batizado de Bussacoconus zeliapereirae, o investigador da Universidade de Coimbra adianta que “fornece novidades macromorfológicas evolutivas para as estruturas reprodutoras das Sphenophyllales, um grupo extinto de plantas articuladas que é ainda muito pouco compreendido, e cuja diversidade taxonómica está subestimada”. 

As floras fósseis do Buçaco foram preservadas no registo fóssil durante um intervalo de transição climática para um período de aquecimento no final do período Carbonífero. Esta paleobotânica “fornece informações valiosas sobre a evolução do clima na Ibéria durante aquele intervalo de tempo. A descoberta de novos elementos florísticos, como os já referidos, será utilizada para estimar a biodiversidade de plantas antes e depois da mudança climática ocorrida na Ibéria no final do Paleozóico como modelo para a biodiversidade e adaptação dos ecossistemas vegetais durante as alterações futuras”, detalha Pedro Correia.   

Pedro Correia, paleobotânico

Artur Sá, investigador da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), coautor do trabalho sobre a Bussacoconus zeliapereira, sublinha que o período ao qual reportam os fósseis descobertos “foi desafiante muito devido às condições climáticas extremas e às transformações geográficas que então ocorreram. O clima quente e húmido nas áreas intertropicais, foi responsável pelo desenvolvimento de vastas florestas pantanosas, mas também foi posteriormente marcado por grandes variações como a ocorrência de uma grande glaciação, centrada no hemisfério sul, ou a transição para clima mais quente e árido, factos ocorridos no final deste Período”.

De acordo com o também docente do Departamento de Geologia da UTAD, “as temperaturas elevadas favoreceram a proliferação de plantas e invertebrados, enquanto os vertebrados, como os primeiros répteis, começaram a adaptar-se às novas condições climáticas e ambientais. Este foi um Período marcado também pela formação do supercontinente Pangeia, realidade que alterou significativamente os padrões de circulação atmosférica e oceânica e que conduziu a desafios ecológicos e adaptativos significativos, moldando o aparecimento e evolução de novas e espécies, o que levou a alterações relevantes na biodiversidade de então”. 

O trabalho assinado por Pedro Correia e Artur Sá, publicado no jornal internacional Historical Biology, está disponível para consulta online sob o seguinte título: “The evolutionary macromorphological novelties of Bussacoconus zeliapereirae gen. et sp. nov. (Sphenophyllales, Polypodiopsida) from the Upper Pennsylvanian of Portugal”.