Dia Mundial da Água
22 março 2024 às 09h36
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“Construir mais barragens não é solução para a falta de água”

A investigadora Maria João Feio adverte para o erro de transformar rios em lagos, evitando o natural desenvolvimento dos ecossistemas. Diz que é preciso combater a escassez de outra forma.

A investigadora Maria João Feio olha para o Dia Mundial da Água com uma visão holística, que nunca se limita ao que é “a água para beber ou para regar, mas antes como algo que permite a existência de uma série de seres vivos, de biodiversidade muito alargada”. A verdade é que o ecossistema onde cabe toda a fauna e flora é mantido “não só quando a parte físico-química da água está em boas condições, sem poluição, mas também quando todos os elementos lá estão: os processos ecológicos a funcionar como deviam”.

Há anos que esta investigadora do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente e do Departamento de Ciências da Vida da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra – se dedica a compreender toda a ecologia dos rios. À medida que o tempo avança, lamenta que a legislação – que existe – não seja aplicada, por forma a garantir que possamos ter mais e melhor água. Por outro lado, apesar de todos os esforços do MARE, nomeadamente com atividades junto da sociedade civil, desde os mais novos aos adultos, não lhe parece que exista ainda uma consciência da importância de gerir bem os recursos como a água. “O que me parece é que as pessoas têm a consciência da importância da água não estar poluída, mas não aquela de que a água está integrada nos ecossistemas, e que para estar em boas condições o ecossistema também tem que estar”, afirma ao DN, sublinhando que essa não é uma lacuna apenas do cidadão comum, mas estende-se aos decisores políticos, nomeadamente autarcas.

O mesmo acontece com quem gere indústrias ou zonas agrícolas: “Não há essa consciência e isso é uma pena, porque leva à destruição do ecossistema. Por exemplo, uma questão simples como cortar a vegetação toda das margens , muitas vezes feito pelos agricultores ou pelas juntas e Câmaras, é feito porque as pessoas não percebem que aquilo faz parte do ecossistema, sendo essencial para a sua manutenção e para garantir a qualidade da água”.

“Habituámo-nos a abrir a torneira como se o gesto fosse uma coisa natural e abundante, mas já não estamos nesse ponto”, recorda Maria João Feio. Afinal, a água doce deveria ser vista como um bem escasso, “não só porque vivemos num país onde metade tem um clima mediterrânico bem marcado, e sabemos que, pelo menos, no verão há sempre menos água”. Mas neste cenário de alterações climáticas, essa escassez de água vai aumentar. E em zonas que eram tipicamente mais temperadas, e que até tinham mais água no inverno, “começam a sentir mais cedo a falta”, adverte. 

A investigadora lembra que, ao haver menos quantidade de água, acaba por existir uma maior concentração dos organismos poluentes. Ou seja, não é apenas o caso de menos água, mas também em piores condições.

O aumento no regadio e a ilusão das barragens

No que respeita à utilização da água, Maria João Feio destaca ao DN o aumento na agricultura de regadio, nomeadamente em áreas onde não era típica, em zonas mais secas do país, como no Alentejo. “Passámos a ter que regar certo tipo de culturas, e depois pensa-se em reter mais água e fazer mais barragens. Ora isso leva a transformar os rios em lagos, e com isso pioramos não só a qualidade da água (está mais tempo parada, acumulam-se mais poluentes) como propiciamos as espécies invasoras, que vão competir com as nossas nativas. Além disso, a floresta ribeirinha muda, e passa a ser dominada por plantações que estavam mais altas”.

“Nós estamos a tentar resolver um problema, criando outro. Fazendo mais retenção de água vai levar a uma qualidade de água pior”, considera a investigadora. “A escassez de água está a ser resolvida muitas vezes da forma errada”, acrescenta Maria João Feio.

Em teoria, todas estas questões deveriam estar na agenda, tendo em conta as diretivas europeias como aquela que obriga a melhorar os ecossistemas aquáticos e a criar planos de gestão das bacias hidrográficas. “As leis existem, mas muitas vezes não são transpostas para a ação”, admite esta bióloga, para quem “construir mais barragens não é solução, pois estamos a destruir os nossos rios”. De resto, lembra que um pouco por todo o mundo “está a acontecer o movimento contrário, promovendo os rios livres, desde os mais pequenos aos maiores, porque vamos ter outros benefícios”.

E se estivesse ao seu alcance criar uma medida imediata neste Dia Mundial da Água, qual seria? “Criar zonas fluviais protegidas. Proteger os rios e criar zonas que incluem a vegetação ripícola, não se podendo fazer aí absolutamente nada em termos de construção ou campos agrícolas. A lei diz isso, mas não se põe em prática e destrói-se cada vez mais”.

A Agência Portuguesa do Ambiente (APA) assinala este Dia Mundial da Água com diversas iniciativas, enquanto Autoridade Nacional da Água. Entre as competências deste organismo está a gestão dos recursos hídricos e o combate às alterações climáticas, através do planeamento, licenciamento, monitorização e implementação de medidas que promovam o bom estado das massas de água e também a adaptação à emergência climática. “É preciso apostar na sustentabilidade e na estreita comunhão com a manutenção dos ecossistemas aquáticos”, refere a APA, em comunicado. As iniciativas decorrem em Albergaria a Velha, Loulé e Évora.

Números

1992 - O Dia Mundial da Água foi instituído em 1992 pela Organização Mundial das Nações Unidas. Este ano a ONU assinala a efeméride sob o tema: Água para a paz.

2 - Os especialistas de saúde e bem-estar recomendam que cada pessoa deve beber, pelo menos, dois litros de água por dia

50 - Estima-se que um duche rápido consome, em média, 50 litros de água. Já encher a banheira compreende cerca de 250 litros de água.

Tópicos: água, ambiente