Exclusivo
Internacional
19 setembro 2024 às 00h04
Leitura: 8 min

Sabotagem eletrónica. Duplo golpe ao Hezbollah quando Israel anuncia nova fase da guerra

Ataques eletrónicos ao movimento xiita libanês, tão audaciosos quanto mortíferos, inscrevem-se no currículo das agências israelitas. Coincidem com a declaração de que as forças armadas de Israel vão centrar-se no norte do país, em .

O Conselho de Segurança das Nações Unidas vai reunir-se na sexta-feira, a pedido da Argélia, para analisar as explosões ocorridas em dispositivos de comunicação usados por membros do Hezbollah no Líbano e na Síria. Depois de na véspera cerca de 3 mil pagers terem explodido, causando a morte de pelo menos 12 pessoas e ferimentos em 2800, ontem um número indeterminado de walkie-talkies, telemóveis e computadores portáteis rebentaram, fazendo 20 mortos e 450 feridos. Os atentados sucessivos acontecem numa altura em que o ministro da Defesa de Israel declarou que o “centro de gravidade” da guerra com o Hamas vai deslocar-se da Faixa de Gaza para o norte do seu país, onde o exército tem mantido trocas de tiro diárias com o Hezbollah.

Uma segunda onda de explosões em aparelhos de comunicação - mas não só, foram reportadas explosões em painéis solares - de membros do movimento xiita Hezbollah ocorreu em Beirute, onde decorriam os funerais de oito membros do Hezbollah, mas também noutras regiões libanesas, caso de Beca, onde se deram três mortes. Os ataques foram condenados pelo secretário-geral das Nações Unidas. “Penso que é muito importante que não se utilizem objetos civis como armas, essa deve ser uma regra que os governos devem ser capazes de aplicar”, disse António Guterres.

O que se sabe dos ataques

Em fevereiro, o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, alertou para os riscos do uso do telemóvel. “O inimigo não precisa mais de espiões”, afirmou. A organização apoiada pelo Irão encomendou 5 mil pagers há uns meses, segundo uma fonte libanesa disse à Reuters. Este dispositivo, que permite apenas receber mensagens, terá sido escolhido na crença de que a sua tecnologia ultrapassada - sem câmaras, microfones nem GPS - passaria despercebida pelos israelitas. Em dado momento, os pagers foram intercetados e sabotados com uma placa com um explosivo e um código associado. 

De acordo com o site Al-Monitor, os serviços israelitas pretendiam detonar os dispositivos no momento que antecedesse o início de uma guerra contra o Hezbollah, ou, como outros peritos apontam, como prevenção para se defender de um ataque em larga escala. No entanto, optaram por fazê-lo quando um membro do Hezbollah suspeitou dos dispositivos e planeou alertar os seus superiores, tal como outro que tinha chegado à mesma conclusão mas terá sido assassinado antes de informar as chefias. 

O que não se sabe

Destroços de pagers que foram alvo de sabotagem em Beirute. (AFP)

Como é costume em casos semelhantes, Israel não assumiu a responsabilidade do sucedido. Segundo o jornalista Ronen Bergman, colaborador do The New York Times, Telavive acredita que o número que o número de vítimas mortais é muito superior e que a unidade militar de elite do Hezbollah, Radwan, foi atingida de forma significativa.

Desconhece-se em que momento os dispositivos foram sabotados no que foi considerado “o ataque à cadeia de abastecimento mais extenso da história”, como comentou Dmitri Alperovitch, do think tank Silverado Policy Accelerator. O Hezbollah desconfia que tenha sido durante o tempo em que o carregamento permaneceu num porto, durante três meses.

O modelo do pager AR-924 é da empresa de Taiwan Gold Apollo. No entanto, esta disse que licenciou o fabrico daquele modelo para a empresa húngara BAC Consulting. Segundo a Reuters, na morada da empresa, numa zona residencial de Budapeste, existe apenas uma folha de papel com o nome da mesma afixada na porta do prédio. O porta-voz do governo de Viktor Orbán, Zoltan Kovacs, disse que a empresa em questão é “um intermediário comercial, sem instalações de fabrico ou operacionais no país”. 

Consequências

Desconhece-se também de que forma o Hezbollah irá responder, tal como assegurou na terça-feira. Porém, sem comunicações, ignora-se como e quando é que o movimento xiita vai conseguir repor uma ordem de comando. Se voltarem a usar telemóveis os operacionais estarão de novo debaixo do radar dos serviços israelitas, pelo que é de esperar o regresso dos mensageiros. 

Ignora-se se o governo israelita vai aproveitar o desconcerto provocado pelas explosões para atacar o Hezbollah. Sem relacionar com as explosões no Líbano, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, anunciou que a atenção se deslocou para a frente norte, na fronteira com o Líbano, tendo em conta os “claros e simples” objetivos, ou seja, “o regresso dos habitantes das localidades do norte às suas casas em segurança”. 

Gallant disse que as forças armadas estão a desviar recursos para aquela zona do país no que é o “início de uma nova fase desta guerra”. O ministro apelou à capacidade de adaptação, coragem e perseverança, sem entrar em mais pormenores. Não muito depois, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, publicou um vídeo com dez segundos e no qual prometeu o regresso dos cidadãos deslocados.

Unidade 8200

Tudo aponta para que os ataques tenham o dedo da Unidade 8200, departamento especializado em guerra eletrónica e que faz parte da Direção de Serviços de Informações Militares de Israel. Tem no seu currículo operações como o vírus Stuxnet, que avariou as centrifugadoras nucleares iranianas; um ciberataque à empresa de telecomunicações libanesa Ogero; ou ter frustrado um ataque do Estado Islâmico a um avião que seguia da Austrália para os Emirados. 

Mossad, Shin Bet ou Unidade 8200, há uma longa história de ataques com recurso a tecnologias. Em 1972, em vingança aos ataques da OLP aos atletas olímpicos nos Jogos de Munique, o representante da organização em Paris morreu depois de a base de mármore do seu telefone ter sido trocada por uma réplica com explosivos. 

Em 1996, Yahya Ayyash, o homem conhecido como “Engenheiro” e responsável pelo fabrico de bombas que mataram dezenas de israelitas recebeu de um tio - aliciado e enganado pelos serviços israelitas - um telemóvel com 50 gramas de explosivos que foram detonados remotamente. 

Em 2020, numa de várias ações para impedir o desenvolvimento do programa nuclear iraniano, o cientista Mohsen Fakhrizadeh foi morto por uma metralhadora telecomandada quando viajava num carro nos arredores de Teerão. Os drones tornaram-se uma ferramenta essencial para os ataques, como o ocorrido em janeiro deste ano, em Beirute, quando um dos homens de topo do Hamas, Saleh Arouri, e outros seis membros foram mortos. 

cesar.avo@dn.pt