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25 maio 2024 às 19h48
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Cannes 2024 - a morte fica-vos tão bem

A morte bafejou alguns dos filmes da seleção oficial. Alguns, não, muitos! Cannes 2024 convocou cineastas que quiseram filmar a morte de perto, em alguns casos a sua morte, de Paul Schrader a Miguel Gomes, passando por David Cronenberg e Karim Aino.

Ficam algumas perguntas no ar em Cannes. Além dos lugares estafados do “para onde vai o cinema”, fica a dúvida se os filmes, os melhores, que foram selecionados, não estão a pedir um novo olhar para as imagens.

Talvez não haja (ainda) respostas, mas há uma convicção de que é pelo olhar do público que começam a surgir novos caminhos de cinema. O espectador como “parte interessada” ou colaborador. Quem por aqui assistiu à mistura de ficção e documento que é An Unfinhesd Movie, de Lou Ye, percebe que este novo cinema chinês pede uma disponibilidade inventiva, quanto mais não seja para perceber o que é real ou não – o filme fala de umas filmagens reais que foram interrompidas na China devido ao covid.

Também Volvereis, nova obra-prima do madrileno Jónas Trueba, pede interactividade. Somos nós a testemunhar a montagem do filme dentro do filme. Este pequeno grande deslumbramento da Quinzena dos Realizadores vai estrear-se em Portugal: a Leopardo Filmes ficou com ele.

Isto para referir uma das tendências das temáticas da 77.ª edição deste festival: o cinema como ponto de partida para uma resolução de ficção.

Nesse domínio, Christophe Honoré foi rei e senhor dessa maneira de converter memórias de cinema em espectros fantasmagóricos em Marcello Mio, o tal filme onde Chiara Mastroianni inventa um novo Mastroianni. Foi dos grandes prazeres deste festival.

Cronenberg, o inevitável Cronenberg

Todavia, a temática recorrente foi a relação dos cineastas com a morte, em muitos casos algo perto de uma perturbante afiliação íntima, sobretudo Paul Schrader no incompreendido Oh Canada!, onde temos um cineasta a morrer e a contar as suas memórias - neste caso um Richard Gere ótimo. Trata-se de um objeto sobre aceitar a morte, algo que The Shrouds, de David Cronenberg, faz ainda melhor - um conto filosófico sobre a sedução do luto e a forma como os seres humanos se reinventam perante a ausência do outro. A morte e desejo, na câmara do canadiano, transformam-se num tratado de elegância.

Karim Ainouz também a flirtar com a morte

E o desejo que se cheira em Motel Destino, de Karim Ainouz, é um desejo que vem com a morte, ou que a convoca. O cineasta brasileiro quis estar perto tanto desse desejo corporal como da morte mais física, tal como Alain Giraudie, o realizador que levou à secção Cannes Premiere Misericordie, um thriller pitoresco onde a culpa e a nosso fim parecem uma assombração insidiosa. Foi das grandes injustiças não ter conseguido competição. Giraudie está com um humor lubitchiano onde tudo é possível, até mesmo fintar o destino final, isto é, a morte.

Morte, essa, fintada em Bird, o filme de realismo social com magia universal de Andrea Arnold. Às vezes, só às vezes, o cinema finta a morte e dá-lhe asas, sobretudo quando se filma a falência social dos bairros pobres de Kent.

E mesmo o lindíssimo périplo asiático de Miguel Gomes, Grand Tour, tem um abandono que está do outro lado. As personagens de Gonçalo Waddington e Crista Alfaiate como que se entregam a um destino compatível com a morte. Ou um destino cujo o fim ou a finitude torna-se um desígnio maior. Como se a perdição fosse o irremediável destino.

Em Cannes