Livro 'O Suicídio da Espécie'
08 julho 2024 às 14h45
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Jean-David Zeitoun: “O nosso modo de vida está a matar-nos”

Num círculo vicioso, geramos cada vez mais doenças que nos obrigam a gastar mais dinheiro. Para o médico francês Jean-David Zeitoun a humanidade corre para o abismo e expressa-o no título do livro que escreveu 'O Suicídio da Espécie'.

A melhoria da saúde humana é uma anomalia à escala evolutiva. Ao longo de dezenas de milhares de anos, os humanos não viveram mais do que uma trintena de anos em média. A grande extensão da nossa esperança de vida deu-se em meados do século XVIII no Ocidente. Um processo lento, embora contínuo, tributário da desinfeção e de uma melhor nutrição, mais tarde aos avanços da medicina e da farmácia. Em três séculos, a nossa longevidade quase triplicou. Esta progressão motivou o livro que Jean-David Zeitoun, Doutor em medicina e epidemiologia clínica, publicou em 2021. Em La Grande Extension – Histoire de la santé humaine (sem edição portuguesa), o também investigador da economia da saúde detém-se em “dois enormes riscos” do presente, criados pelos humanos: “Ambientais e comportamentais, que causam doenças crónicas e tornam possível uma regressão na saúde humana”, sumaria a apresentação ao livro. “A pandemia de Covid-19 não é uma coincidência. É uma ilustração severa das disfunções das sociedades humanas e, em particular, da sua relação com o ambiente. O SARS-CoV-2 é um produto natural, mas o seu surgimento e persistência são produtos humanos”, acrescentava o autor. 

Em 2024, Jean-David Zeitoun reitera na ideia do definhar da humanidade e talha-o nas palavras que intitulam o seu novo livro. Em O Suicídio da Espécie – Compreender como o nosso modo de vida está a pôr-nos doentes (edição Contraponto), o médico traz um alerta: “O nosso modo de vida está a matar-nos”. “Produzir doenças para depois ter de as tratar é uma realidade factual, desprovida de sentido, mas que tem causas – e são essas causas que formam a lógica do suicídio da espécie”, escreve o autor na introdução ao livro para, mais à frente, deixar a pergunta: “’Qual o futuro da saúde humana?’ (…) claramente, ‘não sabemos’. Desde que a saúde humana começou a melhorar, em meados do século XVIII, o que se refletiu na esperança de vida, tem sempre havido forças contrárias”. No presente, identifica o médico gaulês, “há muitas forças em jogo. O resultado será o produto aritmético de forças positivas, como a medicina e a redução de certos riscos, e de forças negativas, principalmente o crescimento dos riscos ambientais e alimentares, aos quais infelizmente teremos de acrescentar as alterações climáticas”.

Zeitoun descreve-nos um “suicídio coletivo”, abundante na “oferta de riscos”, e pormenoriza-o na entrevista que nos concede por escrito: “A sociedade global é promotora de grande parte dos riscos causadores de doenças e mortalidade. Só no que diz respeito aos riscos ambientais, e este é sem dúvida um número subestimado, a Organização Mundial da Saúde estima que um quarto das mortes se relaciona com esta questão. Dito de outra forma, a poluição, que é 100 por cento de origem humana, causa nove milhões de mortes por ano à escala global. A obesidade causa cerca de cinco milhões de mortes, o álcool entre dois e três milhões e o tabaco um pouco mais de sete milhões. Isto é muito. Estas são formas de suicídio direto ou indireto, enquanto o suicídio ‘real’ está a diminuir no mundo, para cerca de 750 mil por ano, o que representa uma queda de 30% em 40 anos. A poluição não está a diminuir e a obesidade está a aumentar”.

Zeitoun descreve-nos três tipos de riscos: ambientais (e.g. poluição do ar, temperaturas extremas, saúde no trabalho); comportamentais (e.g. malnutrição materno-infantil, tabagismo, álcool, drogas, regime alimentar); metabólicos (e.g. diabetes ou pré-diabetes, hipertensão arterial, excesso de peso/obesidade). A maior parte dos riscos existe desde sempre, e até os mais recentes estão presentes desde há vários séculos. Mas a sua intensidade e repartição evoluíram muito. Certos riscos seguem uma progressão particularmente problemática e fora de controlo, como a poluição no sentido lato ou a obesidade”, sublinha o autor. 

“Indústrias patogénicas”: os perigos da máquina global da alimentação

O médico francês aponta a sua argumentação às “indústrias patogénicas”, como as descreve, e coloca na lista as indústrias dos combustíveis fósseis e a química, e também a indústria alimentar. Sobre esta última, “inicialmente, a intenção não era necessariamente má. Os fabricantes começaram a transformar os alimentos de forma excessiva e em grande escala na década de 1970. O objetivo era tornar os alimentos mais práticos, duradouros e acessíveis. A situação deteriorou-se lentamente e os alimentos ultraprocessados tiveram um crescimento quase contínuo até hoje. Os fabricantes também aumentaram a concentração de açúcares. Percebemos tarde que esses alimentos eram, em média, extraordinariamente tóxicos. Eles causam diabetes, obesidade, cancro, doenças hepáticas, doenças cardiovasculares e muito mais”, alerta o também investigador na área da economia da saúde, para acrescentar: “Entretanto, todos se habituaram a estes alimentos, os fabricantes revelam dificuldade em retroceder, embora comecem a fazê-lo em determinados países, e os cidadãos que consideram estes alimentos acessíveis e por vezes agradáveis. Mas outra dieta é possível, tal como revelam diversos estudos”.

Ao longo d’O Suicídio da Espécie, o gaulês fala de uma “acumulação de intenções inferiores” e explica-o: “Muitos fenómenos sociais de grande dimensão são a consequência não intencional de ações de menor escala. Não há conspiração, nem plano para adoecer a população mundial. Inicialmente, até mesmo as empresas de tabaco só queriam vender cigarros. É verdade que quando souberam o quão tóxico era, não procuraram divulgar esta informação, pelo contrário, usaram todos os métodos legais ou ilegais possíveis para atrasar a regulamentação e tributação dos seus produtos. O padrão é semelhante para as indústrias fósseis e alimentares. Os políticos não são cúmplices ativos neste cenário, mas sim fracos ou demasiado passivos quando há que proteger as suas populações sem ameaçar a economia ou mesmo a sua popularidade”. Prosseguindo na análise que faz à relação dos decisores políticos com as “indústrias patogénicas”, Zeitoun detalha que “nas democracias, a maioria dos líderes quer ter um bom desempenho, mas sente-se constrangido. Têm também crenças erradas sobre os efeitos económicos das doenças que subestimam. Ao preservarem certas indústrias que produzem riscos e doenças, pensam erradamente que estão a preservar empregos e a economia quando, na realidade, estão a perder”.

Na sua argumentação, o autor acrescenta os cidadãos aos atores deste jogo suicida. “É evidente que os cidadãos têm responsabilidade limitada nesta catástrofe e o seu poder de adaptação também é bastante fraco. Acontece que são manipulados, mas isso acontece menos na democracia do que nas autocracias. Nas democracias, os industriais fazem o seu lobby normal e deveria caber aos políticos resistir, a fim de colocar a saúde pública à frente dos interesses particulares de alguns industriais. A economia como um todo beneficiaria, porque a doença está a custar cada vez mais aos estados”.

A ideia geral é que vivemos mais e melhor. Controlamos a origem das doenças, desenvolvemos tratamentos, olhamos para a saúde como um marcador do nosso desenvolvimento. No entanto, Jean-David Zeitoun não se revela muito otimista em relação à melhoria da saúde humana. Porquê? “Porque a situação é mista no momento presente. A esperança de vida está a aumentar mais lentamente do que no passado e, nos Estados Unidos, tem diminuído quase continuamente ao longo dos últimos dez anos. Acresce que a esperança de vida não é o único marcador significativo, porque reage tardiamente à produção de riscos. Quando cai, é muito tarde para reverter a tendência. Os riscos produzidos hoje irão degradar a longevidade dentro de 20 ou 30 anos e já estão a gerar um número considerável de doenças que degradam a qualidade de vida e custam fortunas aos países”.

“O vício é um aliado das indústrias patogénicas?” Perguntamos. Responde-nos Jean-David Zeitoun: “Sim, e novamente, há uma parte involuntária. Os fabricantes que saturaram a dieta com açúcar provavelmente não suspeitaram, inicialmente, do seu poder viciante. Agora, sabemos como tal acontece e como contribui para o alto consumo. Os lobbies industriais afirmam com frequência que os indivíduos são dignos de confiança e que são livres nas suas escolhas, mas este argumento é falacioso, uma vez que a dependência, ou vício, é precisamente o oposto da liberdade”.

Ao abordar o tema dos alimentos ultraprocessados, Zeitoun também não poupa nas críticas às dietas vegetariana e vegan, embora confesse que esta é uma questão “complexa porque, por um lado, dietas muito ricas em carne tendem a ser menos benéficas para a saúde e, por outro, certos produtos vegetais são ultraprocessados. A melhor opção é preferir alimentos frescos e carnes magras em quantidades limitadas, quando possível”.

Uma “pandemia metabólica”

“A globalização da transformação alimentar globalizou a suas complicações. A frequência de obesidade aumentou de forma linear e sem interrupção desde os anos 1970, período no qual a indústria começou a transformar os alimentos em massa. De modo geral, o risco metabólico está a aumentar no mundo (…). Cerca de 15% dos humanos são obesos, e cerca de 40% têm excesso de peso (…). O crescimento internacional das doenças metabólicas criou um fenómeno a que os epidemiologistas chamaram o ‘duplo fardo da malnutrição’, que definem como a manifestação simultânea da malnutrição e da obesidade”, escreve Zeitoun no seu livro. O autor fala, a este propósito, numa “pandemia metabólica”: “o metabolismo corresponde à troca de energia e matéria. As doenças metabólicas são aquelas que estão ligadas a esta questão. Trata-se principalmente da diabetes, obesidade, excesso de gordura no sangue e as suas consequências cardiovasculares e até cancerígenas. Muitas doenças crónicas, se não mesmo a maioria, têm uma componente metabólica nas suas causas. Devido à alimentação, mas também à poluição química, as doenças de origem metabólica estão a aumentar e representam provavelmente o nosso maior problema de saúde”.

Zeitoun dedica o terceiro capítulo do seu livro à “procura de riscos” (“definidos pelo grau de consciência de exposição ao risco”, assim baliza o autor). Na primeira, o risco é desconhecido de todos (...). A possibilidade seguinte é que os estudos científicos demonstram o risco, mas os fabricantes que o produzem fazem tudo para o dissimular (...). A última possibilidade implica que o risco é público, mas há indivíduos que não o conhecem”.  O médico sublinha que a procura consciente de riscos está a aumentar no século XXI. “O desespero é parte da explicação e os Estados Unidos são, provavelmente, o pior país para este fenómeno. O excesso de mortalidade naquele país liga-se principalmente ao suicídio, álcool, opioides e obesidade. Todos estes problemas estão muitas vezes enraizados na infelicidade humana, e estudos extensos sugeriram de forma convincente que muitos americanos afetados se sentem desesperados. A maior parte das vezes são eleitores republicanos e isto, provavelmente, deveria ser visto como uma consequência”.

Num livro que espraia a questão da extinção ao longo das suas mais de 240 páginas, há que perceber junto do autor se há salvação para a nossa espécie face “à epidemia de mortes prematuras ligadas às atividades patogénicas da sociedade mundial”, que descreve. Diz Zeitoun: “Sabemos que é possível, mas temos de estar conscientes, em primeiro lugar, da dimensão do problema e, em segundo lugar, da sua natureza sistémica. No entanto, há uma procura muito forte por parte dos cidadãos e alguns países estão a começar a avançar. É tarde, mas não demasiado tarde para resolver este tipo de problema”.

O SUICÍDIO DA ESPÉCIE
Jean-David Zeitoun
Contraponto Editores
248 páginas