Abuso de menores
06 maio 2024 às 07h23
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Mais de metade dos crimes sexuais contra menores em 2023 foram cometidos por familiares

Os números chegam a cerca de 65% quando incluídas outras pessoas do círculo próximo das crianças, como vizinhos, professores ou treinadores, avança diretor nacional adjunto da PJ. Primeiro trimestre deste ano indicia um aumento de casos face ao ano anterior.

No que toca ao abuso sexual de crianças e jovens, o maior inimigo continua a estar “dentro de portas”. Mais de metade (cerca de 51%) dos crimes sexuais contra menores investigados pela Polícia Judiciária em 2023 foram cometidos no seio da família, segundo dados avançados ao Diário de Notícias pelo diretor nacional adjunto da PJ, Carlos Farinha. Se acrescentarmos a esses os casos a envolver vizinhos, professores, treinadores ou outras pessoas dos círculos habituais das crianças, constata-se que cerca de 65% da criminalidade sexual contra menores no ano passado aconteceu em contexto de proximidade.  

“Há uma percentagem muito elevada de crimes encetados em contexto de proximidade, seja familiar, geográfica ou funcional. Mais de metade dos crimes acontecem em contexto familiar, seja o contexto familiar direto, os próprios pais, ou indireto mas próximo, como sejam avós ou tios. Depois há o chamado grupo de proximidade geográfica, como vizinhos, e o grupo de proximidade funcional, onde se incluem professores, treinadores, orientadores, líderes de grupo, etc. Ou seja, na maior parte dos crimes existe uma relação prévia à situação abusiva”, descreve o diretor nacional adjunto da PJ, responsável pelo Observatório da Criminalidade Sexual, inserido no seio daquela polícia.

E se a criminalidade sexual, no seu todo (adultos e crianças), representa já cerca de 10% dos crimes investigados pela PJ, “65% a 70% desses casos dizem respeito a abusos sexuais de menores”, revela. Um tipo de crime que, admite, “tem uma dimensão preocupante, que nos envergonha e que gostávamos de ver reduzida substancialmente”.

Nos últimos dois anos, adianta, a média do número de menores vítimas de crimes sexuais “andou na ordem dos 2300 por ano” e, segundo informação disponibilizada pela Polícia Judiciária em relação ao primeiro trimestre de 2024, ainda sem dados oficiais consolidados, a tendência registada denota um aumento relativamente a período homólogo do ano passado.  

“A criminalidade sexual que investigámos andará muito próxima da criminalidade sexual total que está sinalizada pelo sistema, porque todos os crimes de natureza sexual são investigados pela PJ. Outra questão é saber se esta realidade compreende cifras negras muito acentuadas”, diz o diretor nacional adjunto da PJ. Por “cifras negras” entendam-se as “situações que não chegam ao sistema”. “Por exemplo, os crimes sexuais na Igreja estiveram durante muitos anos nas cifras negras, não estavam sinalizados”, ilustra.

Desde 2007, “quando houve alteração da natureza legal do crime de abuso sexual de menores e este passou a ser um crime público”, a investigação de crimes sexuais contra crianças e jovens não carece de queixa, apenas de sinalização pelo sistema. “E obrigatoriamente é aberto processo e investigação criminal”, lembra.

Isso permitiu que as sinalizações destes casos tenham origens cada vez mais diversificadas. “Antigamente, eram reportados sobretudo pelas mães das vítimas menores, por vezes pelos pais. Mas hoje as sinalizações estão muito mais pulverizadas, vêm de todas as partes do sistema”, vinca Carlos Farinha.

 “Desde família a escola, hospitais, vizinhança ou até de forma anónima”, o que alargou os canais de denúncia. A PJ, garante, está “atenta a todas as sinalizações, mesmo que indiquem apenas a possibilidade de crime e não probabilidade de crime. Essa prova depois decorrerá da investigação”. Para ajudar a gerir de forma mais eficiente e rápida as sinalizações recebidas, a PJ está “a desenvolver um instrumento que permita categorizar a perigosidade das sinalizações, uma tabela de risco para caracterizar as situações e as acompanhar melhor”, revela.

Perfil das vítimas e dos abusadores

Carlos Farinha alerta que neste domínio da criminalidade sexual contra menores estão incluídas “vítimas de grupos etários muito baixos”. Cerca de 3% a 5% dos casos dizem respeito a crimes cometidos contra bebés ou crianças até aos três anos. Mas a maioria dos casos ocorre com crianças entre os 8 e os 13 anos. “No perfil das vítimas, há duas características predominantes: o sexo feminino e essa faixa etária dos 8 aos 13.”

Já quanto aos agressores sexuais de menores, embora seja um leque que contempla vários perfis diferentes, o retrato tipo está também identificado: “Tipicamente do sexo masculino e entre os 31 e os 50 anos.” Quanto à estratificação social deste tipo de crime, o diretor nacional adjunto da PJ refere que “há um perfil transversal, não é exclusivo ou maioritário desta ou daquela classe”.

Aumento dos crimes online

Uma tendência evidente nos últimos anos - e que sofreu um aumento exponencial no primeiro ano da pandemia de covid-19, com os confinamentos a que obrigou - é o aumento dos crimes sexuais no ambiente virtual. “Se os abusos cometidos em contexto familiar continuam a ser os predominantes, os crimes no contexto digital têm vindo a ganhar muito terreno”, sublinha Carlos Farinha.

“Há alguns anos esse tipo de situações estava muito circunscrito a imagens de pornografia infantil. Aos poucos isso deixou de ser a ameaça exclusiva, ou principal, e hoje temos uma explosão de casos de partilha de intimidade online por parte dos jovens que podem gerar situações de coação e extorsão”, constata, realçando a massiva utilização das redes sociais por parte de menores que muitas vezes não estão cientes dos “cuidados de utilização a ter” e acabam por ser presas fáceis para “predadores sexuais online”. “Neste ambiente, há também o fenómeno de jogos onde os utilizadores vão sendo seduzidos a conquistar poderes através de partilhas de imagens. E do outro lado, muitas vezes, não está um mero jogador como eles, mas sim um predador sexual”, alerta, realçando a importância da cooperação internacional para detetar em ambiente virtual situações de conteúdos que possam ser considerados pedopornográficos: “Europol, FBI e Polícia brasileira, sobretudo, são parceiros importantes.”

Carlos Farinha apela a pais e educadores para “criarem o mais possível canais de diálogo com os menores, para não os deixar em situações de segredo e silêncio, em circunstâncias de isolamento online, sem acompanhamento vigilante ou atenção aos comportamentos do menor. Esse é o terreno onde se alimentam os casos de abusos”.

Submissão química: cuidado com as bebidas

Outro tipo de criminalidade sexual contra jovens a aumentar de incidência, adverte o diretor nacional da PJ, é “aquilo a que os espanhóis chamam submissão química”. Ocorre sobretudo em “ambientes de festas de jovens e envolve a utilização de substâncias químicas, geralmente colocadas nas bebidas das vítimas com intencionalidade e estratégia”, para deixar as vítimas “num estado de quase inconsciência, em que não têm controlo das suas ações nem da sua vontade”.

Sem avançar números, refere que “tem havido alguns casos e com ligeira tendência de aumento” neste tipo de criminalidade sexual. “É importante os jovens terem controlo constante sobre as bebidas que consomem”, acrescentando que estas situações têm um problema acrescido para investigação, “pois a janela para detetar a presença toxicológica é de apenas algumas horas”. “E com toda a evolução que tem existido na investigação e no contacto com as vítimas sabemos que quanto mais rápido for a sinalização das situações de criminalidade sexual melhor pode ser a investigação. A recolha de indícios e sinais biológicos é muito importante nas primeiras horas.”

Entrevista a Rute Agulhas, psicóloga

“A relação prévia de confiança torna mais difícil às crianças revelarem a agressão”



Nos abusos sexuais de menores, o facto de em grande parte dos casos o perigo estar dentro de portas, no ambiente familiar, leva a que seja mais difícil a vítima expor/denunciar o caso?

Sim, na maior parte das situações o agressor é uma pessoa próxima da criança, com quem esta mantém uma relação de confiança e familiaridade. A existência desta relação prévia de confiança acresce as dificuldades da vítima em revelar, na medida em que também potencia conflitos de lealdade. Para além dos sentimentos de culpa e de vergonha que são muito frequentes nestas situações, as vítimas também receiam eventuais consequências negativas para si mesmas, para terceiros e também para o agressor. 

Como podemos perceber que algum menor está a ser vítima de abuso sexual? A que sinais devemos estar atentos?

No que respeita à sintomatologia do trauma, são frequentes sinais e sintomas persistentes, disruptivos e patológicos, físicos, emocionais, cognitivos e comportamentais. No entanto, importa destacar que muitas crianças são assintomáticas, ou seja, não evidenciam alterações significativas no seu padrão de funcionamento.
A nível físico, destacam-se as alterações nos padrões de sono e alimentares, a inibição/lentidão de movimentos, náuseas, alterações gastrointestinais, arrepios, tensão muscular, tremores, dores no corpo, alterações na forma de respirar, alteração no ritmo cardíaco e tonturas.
A nível emocional surgem frequentemente sentimentos de tristeza, medo, preocupação, culpa, raiva, vergonha e ansiedade. Muitas crianças evidenciam ainda alterações de humor. Do ponto de vista cognitivo, observa-se com elevada frequência uma sensação de desesperança e confusão mental, pensamentos negativos, autocrítica e baixa perceção de controlo e eficácia, a par de dificuldades de atenção e concentração, alterações na memória, dificuldade em tomar decisões e distorções cognitivas. São especialmente frequentes e disruptivas as memórias recorrentes e intrusivas do evento traumático.
Por fim, a nível comportamental surgem frequentemente crises de choro, evitamento de atividades que antes geravam prazer e também de novas atividades, incapacidade em lidar com tarefas diárias, comportamentos de maior passividade ou agressividade, isolamento social e comportamentos autolesivos.

É um tipo de crime mais frequente em algum estratos social ou transversal a todas as camadas sociais?
É transversal às camadas sociais.

Que tipo de impactos/consequências são mais frequentes na vida de uma pessoa que foi abusada sexualmente em criança? 
A violência sexual em crianças tem frequentemente um impacto negativo, a curto, médio ou longo prazo, quer na vítima, quer na sua família e comunidade. As vítimas de violência sexual são, no entanto, um grupo muito heterogéneo, variando entre vítimas assintomáticas (estima-se que as vítimas assintomáticas na infância e adolescência variem entre 10% e 53%) e outras que evidenciam diferentes tipos de sequelas de severidade variável, que podem manifestar-se durante curtos períodos de tempo e resolver-se sem necessidade de intervenção ou, pelo contrário, persistir durante a adolescência e a fase de vida adulta. De uma forma geral, podemos afirmar que o trauma afeta a sensação de segurança, a estabilidade e a confiança, ao mesmo tempo que destrói a compreensão que a pessoa tem do seu meio ambiente. Algumas crianças que vivenciam um evento traumático apresentam apenas alguns sinais ou sintomas passageiros, enquanto outras preenchem critérios de perturbação pós-stresse traumático [PPST]. 

Como se recupera uma criança vítima desta situação?
A intervenção psicoterapêutica com crianças vítimas de violência sexual deve decorrer em paralelo com uma intervenção junto dos pais/cuidadores ou outros elementos do sistema familiar, não agressores, sendo que a capacidade parental em lidar eficazmente com a situação traumática é um forte preditor de resultados positivos após a exposição a um evento traumático. O envolvimento parental ativo é uma variável mediadora do processo de ajustamento das crianças e permite-lhes sentirem-se acreditadas, reconhecidas e apoiadas como vítimas, recuperando a confiança nos adultos e no meio envolvente.