No que toca ao abuso sexual de crianças e jovens, o maior inimigo continua a estar “dentro de portas”. Mais de metade (cerca de 51%) dos crimes sexuais contra menores investigados pela Polícia Judiciária em 2023 foram cometidos no seio da família, segundo dados avançados ao Diário de Notícias pelo diretor nacional adjunto da PJ, Carlos Farinha. Se acrescentarmos a esses os casos a envolver vizinhos, professores, treinadores ou outras pessoas dos círculos habituais das crianças, constata-se que cerca de 65% da criminalidade sexual contra menores no ano passado aconteceu em contexto de proximidade.
“Há uma percentagem muito elevada de crimes encetados em contexto de proximidade, seja familiar, geográfica ou funcional. Mais de metade dos crimes acontecem em contexto familiar, seja o contexto familiar direto, os próprios pais, ou indireto mas próximo, como sejam avós ou tios. Depois há o chamado grupo de proximidade geográfica, como vizinhos, e o grupo de proximidade funcional, onde se incluem professores, treinadores, orientadores, líderes de grupo, etc. Ou seja, na maior parte dos crimes existe uma relação prévia à situação abusiva”, descreve o diretor nacional adjunto da PJ, responsável pelo Observatório da Criminalidade Sexual, inserido no seio daquela polícia.
E se a criminalidade sexual, no seu todo (adultos e crianças), representa já cerca de 10% dos crimes investigados pela PJ, “65% a 70% desses casos dizem respeito a abusos sexuais de menores”, revela. Um tipo de crime que, admite, “tem uma dimensão preocupante, que nos envergonha e que gostávamos de ver reduzida substancialmente”.
Nos últimos dois anos, adianta, a média do número de menores vítimas de crimes sexuais “andou na ordem dos 2300 por ano” e, segundo informação disponibilizada pela Polícia Judiciária em relação ao primeiro trimestre de 2024, ainda sem dados oficiais consolidados, a tendência registada denota um aumento relativamente a período homólogo do ano passado.
“A criminalidade sexual que investigámos andará muito próxima da criminalidade sexual total que está sinalizada pelo sistema, porque todos os crimes de natureza sexual são investigados pela PJ. Outra questão é saber se esta realidade compreende cifras negras muito acentuadas”, diz o diretor nacional adjunto da PJ. Por “cifras negras” entendam-se as “situações que não chegam ao sistema”. “Por exemplo, os crimes sexuais na Igreja estiveram durante muitos anos nas cifras negras, não estavam sinalizados”, ilustra.
Desde 2007, “quando houve alteração da natureza legal do crime de abuso sexual de menores e este passou a ser um crime público”, a investigação de crimes sexuais contra crianças e jovens não carece de queixa, apenas de sinalização pelo sistema. “E obrigatoriamente é aberto processo e investigação criminal”, lembra.
Isso permitiu que as sinalizações destes casos tenham origens cada vez mais diversificadas. “Antigamente, eram reportados sobretudo pelas mães das vítimas menores, por vezes pelos pais. Mas hoje as sinalizações estão muito mais pulverizadas, vêm de todas as partes do sistema”, vinca Carlos Farinha.
“Desde família a escola, hospitais, vizinhança ou até de forma anónima”, o que alargou os canais de denúncia. A PJ, garante, está “atenta a todas as sinalizações, mesmo que indiquem apenas a possibilidade de crime e não probabilidade de crime. Essa prova depois decorrerá da investigação”. Para ajudar a gerir de forma mais eficiente e rápida as sinalizações recebidas, a PJ está “a desenvolver um instrumento que permita categorizar a perigosidade das sinalizações, uma tabela de risco para caracterizar as situações e as acompanhar melhor”, revela.