Internacional
29 fevereiro 2024 às 07h22
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Putin e a tentação de incluir a anexação da Transnístria no discurso aos deputados

Com uma economia resiliente e a Ucrânia e aliados a cederem, o líder tem motivos para se apresentar desafiador, incluindo no apoio aos separatistas da região moldava.

Ao falar diante de centenas de altos funcionários e de deputados duas semanas antes de uma eleição que se anuncia certa para lhe atribuir um novo mandato de seis anos, Vladimir Putin definiu objetivos domésticos ambiciosos e lançou avisos ousados ao Ocidente, que acusou de tentar travar a Rússia. “Quero dizer a todos aqueles que alimentaram a corrida ao armamento nos últimos anos, que procuraram obter vantagens unilaterais sobre a Rússia, que introduziram sanções ilegais destinadas a conter o desenvolvimento do nosso país: tudo o que pretendiam impedir com as vossas políticas já aconteceu. Não conseguiram conter a Rússia”. O discurso foi proferido em 2018, antes da invasão da Ucrânia, da aprovação de leis mais repressivas contra a oposição, e da possível entrada de mais um foco de tensão no xadrez geopolítico -- a Transnístria --, pelo que, se é de esperar o mesmo tom no discurso anual de quinta-feira, o conteúdo poderá conter algumas novidades.

Sem ter participado alguma vez em debates com outros candidatos eleitorais, Vladimir Putin aproveita a televisão -- agora sem canais russos independentes -- para passar a mensagem em momentos orquestrados ao pormenor. São disso exemplo o discurso de ano novo, a conferência de imprensa anual, e o discurso à assembleia federal. Quando as circunstâncias não são as melhores, os temas mais sensíveis são ignorados, como aconteceu sobre a Ucrânia na mais recente mensagem de ano novo, ou o evento suprimido, como a conferência de imprensa anual em 2022. Desta vez, porém, há um alinhamento de estrelas que possibilitam a Vladimir Putin apresentar-se por cima. 

Internamente, o país transformou-se numa economia de guerra. Podem faltar produtos ocidentais nas prateleiras dos supermercados e a maior parte -- mas não todas -- das empresas ocidentais retiraram-se e o líder, num raro momento, até pediu desculpa pelo preço dos ovos. Mas ao centrar um terço do orçamento no esforço de guerra, o país aguentou o embate das sanções económicas e dos 260 mil milhões de euros congelados no Ocidente e até registou em 2023 um crescimento do PIB superior ao esperado, de 2,6%.

Por exemplo, segundo o serviço de informações de defesa britânicos, a produção de tanques de guerra quintuplicou e agora é capaz de fabricar, reparar e modernizar entre 100 e 150 tanques por mês, ultrapassando o número de carros de combate destruídos por dia (três em média). A produção de mísseis, drones e veículos militares levou à criação de mais de meio milhão de postos de trabalho.

Além disso, o valor do orçamento para o esforço de guerra não se limita à produção de armamento: inclui as prestações aos militares e às famílias dos mortos, obras em infraestruturas e prestações sociais nos territórios ocupados. Para o economista Vasily Astrov, que em declarações ao Financial Times classifica esta política económica de “keynesianismo militar”, esta é uma rutura da política macroeconómica das duas primeiras décadas de Putin no poder. 

Até agora a venda de petróleo da Rússia - ameaçada pelo preço máximo de 60 dólares por barril estabelecido pela UE e G7 - manteve-se como estável fonte de receitas, ao encontrar um mercado sedento como a Índia. As novas sanções anunciadas pelos Estados Unidos na semana passada, visando a maior empresa russa de navios petroleiros, poderão todavia significar uma perda para Moscovo. 

Ainda no que respeita ao momento interno, Putin, que declarara 2024 como o ano da família, vai apresentar-se como candidato às eleições presidenciais puxando dos galões dos valores tradicionais, em contraste com a decadência do Ocidente. Poderá elogiar a recente decisão do governo de declarar o “movimento social internacional LGBT” - que não existe - como uma “organização extremista”, uma designação que permite reprimir as minorias e inclusive grupos feministas. 

Os restantes candidatos presidenciais, o comunista Nikolai Kharitonov, o liberal Leonid Slutsky e o liberal Vladislav Davankov não têm qualquer hipótese perante Putin. Segundo o centro de sondagens Levada, em janeiro 85% dos russos aprovava a sua presidência. Putin apresenta-se sem verdadeiro opositor, mas ainda na ressaca da morte de Alexei Navalny. O homem cujo nome nunca era referido pelo presidente foi uma pedra no sapato do regime, tal como o antigo aliado e patrão dos mercenários Yevgeny Prigozhin. 

Com a dissidência afastada do país, detida ou morta, e a liberdade de informação e de expressão limitadas, não surpreendeu que o único candidato que se apresentou com um programa contra a guerra na Ucrânia, Boris Nadezhdin, tenha visto a candidatura rejeitada devido a “irregularidades”. Para Oleg Kozlovsky, investigador da Amnistia Internacional na Rússia, o endurecimento das leis antiterrorismo e contra o extremismo “demonstra uma abordagem sistemática para alargar as definições e as penas, sufocando a oposição política e a liberdade de expressão sob o pretexto da ‘segurança nacional’”.

No ano passado, Putin dedicou parte significativa do tempo a repetir as justificações para a “operação militar especial” na Ucrânia. É de esperar que, perante os recentes avanços a leste, as crescentes e reconhecidas dificuldades das forças ucranianas devido à carência de munições e de armas de longo alcance, e com as opiniões públicas ocidentais cada vez mais divididas, que o homem que já se comparou a Pedro, o Grande reitere a sua visão distorcida e nacionalista da história, ao não reconhecer a soberania da Ucrânia. 

Poderá não comprometer-se com o maximalismo do ex-presidente Dmitri Medvedev, que há dias reintroduziu Kiev como objetivo militar a conquistar, assim como Odessa, mas estará tentado a mencionar a Transnístria, região separatista pró-russa cuja capital, Tiraspol, se situa a menos de 150 quilómetros de Odessa.

Na semana passada, o governo local denunciou o fim das isenções fiscais da região por parte do governo da Moldávia como uma “violação dos direitos humanos e das liberdades na Transnístria” e o congresso dos deputados pediu na quarta-feira que as duas câmaras dos deputados da Federação Russa tomem medidas para proteger a Transnístria. Um pedido com paralelo com o que aconteceu com a Crimeia e as “repúblicas populares” de Lugansk e de Donetsk” e que se inclui na definição de Putin para quem sente uma ligação ao mundo russo, o que inclui não só a Transnístria, mas também a Moldávia, antiga república soviética com estatuto de candidata à adesão à UE. 

cesar.avo@dn.pt