Exclusivo
Desporto
23 setembro 2024 às 00h11
Leitura: 7 min

Greves no futebol? “Apesar dos avanços da fisiologia não há milagres, é preciso proteger o talento”

Fisiologista Carlos Bruno explica implicações da afamada sobrecarga de jogos, que segundo um estudo atinge 0, 88% dos jogadores profissionais. Rodri falou sobre a possibilidade de haver uma greve se os calendários aumentarem.

Segundo um relatório do Observatório do Futebol, os jogadores fizeram em média 24,4 jogos na temporada 2023-24, um recorde dos últimos 12 anos entre as 40 principais ligas mundiais. Os números dão razão aos treinadores, que se insurgem contra o preenchido calendário competitivo, e aos jogadores, como Rodri, do Manchester City, que admitem fazer greve devido à sobrecarga de jogos. 

Uma ameaça que surge em ano de estreia da renovada Liga dos Campeões e do já polémico Mundial de clubes (entre 15 de junho e 13 de julho) com 32 equipas e que promete deixar a FIFA num embaraço. No entanto, o líder do organismo, Gianni Infantino, argumentou no Congresso da FIFA que só cerca de 1% a 2% dos jogadores tem sobrecarga de jogos e que os treinadores podem agora fazer cinco substituições por partida - antes da pandemia eram três por jogo -, o que quer dizer que podem usar 6 atletas por partida.

De facto, nos últimos 12 anos, segundo o estudo, apenas 0,88% do total de jogadores de futebol das 40 principais ligas jogaram mais de 4500 minutos oficiais. Ou seja cerca de 169 futebolistas. E esses sim, têm mais razões de queixa. Segundo a FIFPro, Fredrik Aursnes, do Benfica, foi o segundo jogador com mais jogos oficiais na temporada passada entre clubes e seleção (66). O norueguês só foi superado por Saud Abdulhamid, do Al Hilal (fez 67), no top 10 dos mais utilizados - sete são da Premier League.

Já Bruno Fernandes está no top 10 dos jogadores mais utilizados nas últimas cinco temporadas. O português do Manchester United tem uma impressionante média de 50 jogos/época em 12 anos de carreira, sendo que nos últimos anos tem passado dos 70. Números impressionantes aos 30 anos, que o próprio justificou com “bons genes”. O fisiologista Carlos Bruno concorda, ressalvando que “os jogadores são todos diferentes e o treino é importante, mas a genética, no alto rendimento, tem um papel muito importante”. Para o especialista em treino e recuperação, “não é jogador ou atleta quem quer, mas quem foi abençoado por talento e capacidade física”. E, “no caso do Bruno Fernandes tem muito a ver com a genética, mas também muito com a posição de campo (médio de construção). Há posições que são mais exigentes do que outras, assim como há modelos de jogo que são mais exigentes do que outros para cada jogador”.

A sobrecarga de jogos voltou à ordem do dia na semana passada, quando, no lançamento do Manchester City-Inter Milão, da 1.ª jornada da renovada Champions (que terá mais dois jogos para cada equipa que a versão anterior), perguntaram a Rodri se considerava a hipótese de entrar em greve em protesto. “Julgo que estamos próximos disso. Se isto continuar assim, chegará a uma altura em que não teremos outra opção”, afirmou o médio espanhol, que em 2023-24 acumulou 63 partidas entre o clube e a seleção. E sendo ele jogador do City, arrisca, a par dos portugueses Bernardo Silva e Rúben Dias, fazer 76 partidas em 2024-25 entre Premier League, Taça de Inglaterra, Taça da Liga, Liga dos Campeões, Supertaça inglesa e Mundial de Clubes. O recorde é do Palmeiras de Abel Ferreira, que em 2021 orientou 91 partidas.

A FIFpro (sindicato internacional de futebolistas profissionais) coloca a fasquia máxima entre os 50 e os 60 e garante que 87 % dos futebolistas profissionais defendem uma redução. Mas avançar para a greve é outra história, apesar do Sindicato português a apoiar. 

Carlos Bruno, que já lidou com a recuperação dos maiores talentos do futebol mundial, também defende um alívio no número de jogos: “A sobrecarga tem um impacto grande a nível físico nos jogadores e também na sua recuperação. Apesar de serem hoje mais preparados do que há 15 ou 20 anos, não há milagres, não deixam de ser seres humanos. Apesar de treinarem bem e aplicarem o chamado treino invisível - alimentação, sono, fisioterapia - os jogos têm uma implicação grande no desgaste físico. No treino nós conseguimos dosear as cargas físicas e adaptá-las a cada jogador ou à equipa, no jogo não podem dosear o esforço, é ir até limite, dar 100% e, ao dar rendimento máximo, fica com muita fadiga acumulada, que vai levar o seu tempo a recuperar.” 

E com jogos de 72 em 72 horas (tempo mínimo entre partidas) torna-se muito difícil recuperar, apesar dos avanços na área da fisiologia, porque “o corpo humano tem limites e cada um tem os seus tempos”. Por isso, segundo o fisiologista, o descanso e a qualidade do sono são fatores que ajudam a minimizar o desgaste, para além da massagem, pressoterapia ou a introdução de aminoácidos e antioxidantes na alimentação. “Mas se não se respeitar o tempo de cada corpo vai sendo cada vez mais difícil um jogador estar em forma a cada ciclo de três dias e pode levar ao aumento do risco de lesão e  à quebra o rendimento físico do atleta, que irá passar por mais fases de abaixamento de forma”, alerta o fisiologista que já trabalhou com Cristiano Ronaldo e fez parte da equipa técnica de Jorge Jesus até ao verão.

Para Carlos Bruno, “se o futebol quer preservar os melhores jogadores e tê-los em forma para dar espetáculo não pode aumentar o número de jogos”, sob pena de colocar estrelas fora do relvado como Neymar, que foi contratado pelo Al Hilal para dar visibilidade ao clube e à liga saudina e fez dois jogos num ano: “Não se pode olhar aos salários. Se fosse pelo que ganham os atletas de topo, claro que teriam de jogar de manhã e à noite.”

isaura.almeida@dn.pt