O crédito bancário concedido a famílias que é classificado pelos bancos portugueses como estando no corredor ou à beira do malparado (falha no pagamento dentro do prazo acordado) disparou quase 13% em 2023, um dos valores mais elevados dos últimos anos, indica o Banco de Portugal (BdP) no novo Relatório de Estabilidade Financeira, publicado esta terça-feira. De acordo com a análise do banco central governado por Mário Centeno, o problema está essencialmente concentrado nas famílias mais pobres ou de menores rendimentos, que têm vindo a sentir cada vez mais dificuldade a honrar o pagamento das suas prestações ao banco.
O referido problema - designado de “categorias de risco de crédito stage 2 [nível 2]”, isto é, as que estão no tal corredor em vias de poderem vir a ser incumprimento (créditos não produtivos ou NPL, cujos clientes falham no pagamento, onde se inclui também o malparado, empréstimos por pagar há mais de 90 dias) - é um problema cada vez maior e está a motivar preocupação junto do BdP.
O aumento do crédito em risco de nível 2 afeta proporcionalmente mais o segmento do consumo, mas foi no crédito à habitação que a situação se degradou mais, avisa o BdP. “A potencial materialização de um cenário económico mais adverso, em particular com aumento do desemprego, e a manutenção de taxas de juro elevadas por mais tempo do que atualmente antecipado poderão diminuir a capacidade dos particulares para servir a dívida, potenciando uma maior materialização do risco de crédito”, indica o Banco.
Ato contínuo, os bancos comerciais já estão a aumentar o nível de provisões ou cobertura por imparidades para ficarem mais protegidos face a este risco de famílias (mais pobres e de menores rendimentos), mas também de empresas mais “vulneráveis”, poderem falhar cada vez mais nas prestações.
Para o BdP, isso é crucial para manter a solidez atual da banca nos tempos mais adversos que podem aí vir. “Caso se materializem condições adversas, nomeadamente na atividade económica, com implicações sobre o desemprego, poderemos assistir a uma deterioração da qualidade de crédito”, afirma o BdP.
“Ainda que o rácio total de non-performing loans (NPL, créditos não produtivos entre eles o malparado) tenha continuado a diminuir em 2023, de 3% para 2,7% do total de crédito, a verdade é que parece haver um problema mais grave em gestação.
“De forma transversal às principais instituições, o rácio de empréstimos a particulares em stage 2 aumentou 2,2 pontos percentuais (p.p.) para 10,4%, revelando a vulnerabilidade das famílias de menores rendimentos perante condições monetárias mais restritivas”, alerta a instituição de Centeno.
É de lembrar que os empréstimos de nível 2 correspondem aos “contratos cujo risco de crédito aumentou significativamente desde o reconhecimento inicial, mas para os quais não existe evidência objetiva de imparidade”, segundo define um dos maiores bancos do mercado o BCP.
Do mesmo modo, o crédito stage 1 diz respeito aos “contratos cujo risco de crédito não tenha aumentado significativamente desde o seu reconhecimento inicial”.
Mas os empréstimos stage 3 já são contratos “com sinais objetivos de imparidade”, ou seja, já existe incumprimento por parte dos devedores, segundo a classificação disponibilizada pelo BCP no seu site.
O Banco de Portugal explica que esta dinâmica de agravamento dos créditos em stage 2 de risco “refletiu uma transferência líquida de empréstimos para categorias de risco de crédito mais elevado, nomeadamente transições de stage 1 para stage 2, que contribuiu para um aumento de 12,6% do valor bruto dos empréstimos a particulares em stage 2”.
“Destes destacaram-se os empréstimos à habitação (contributo de 10,1 p.p.) tendo, neste segmento, o rácio de empréstimos em stage 2 aumentado 2,3 p.p., para 9,8%”. “Relativamente ao segmento consumo e outros fins, o rácio aumentou para 12,4% (+1,6 p.p.)”.
Ou seja, embora o rácio de quase incumprimento das famílias seja naturalmente maior no segmento de consumo, ele está a subir mais depressa na componente habitação, onde está a fatia de leão dos empréstimos concedidos.
O BdP considera que “o potencial de materialização de risco de crédito leva a que seja importante a existência de cobertura para fazer face a perdas. O rácio de cobertura por imparidades de empréstimos a particulares em stage 2 aumentou para 7,2% (+2,0 p.p.) por via do reforço das imparidades, na habitação e no consumo e outros fins”.
Além do fator desemprego, o BdP sublinha que “o efeito acumulado da manutenção de taxas de juro elevadas na atividade económica e nos custos de financiamento, juntamente com eventuais subidas dos custos de produção e perturbações nas cadeias de abastecimento, potenciará a materialização de risco de crédito, em especial nas empresas e famílias mais vulneráveis”.
O governador, Mário Centeno, diz que “no plano nacional, destacam-se ainda os riscos associados a um cenário de maior incerteza na condução da política económica, no quadro de um novo modelo de regras orçamentais europeias, que colocarão novos desafios à condução da política orçamental”.