“Quando vim para aqui ainda era uma zona de hortas. Já tinha amigos que tinham começado a fazer casas e eu também fiz a minha, na horta de um deles”, recorda Manuel da Luz Maocha, 70 anos, que chegou de Cabo Verde em dezembro de 1976. “Esse meu amigo tinha lá cebolas, alhos, batatas e disse-me: ‘Maocha, se quiseres fazer uma casita eu dou-te este bocado de terreno’”. O cabo-verdiano construiu logo uma casa em tijolo. “Naquele tempo vinha a GNR e obrigava as pessoas a fazer as casas alinhadas. Por isso, as casas na parte de baixo do bairro estão todas direitinhas”. Depois, instalou-se a confusão, com cada vez mais pessoas a chegarem à Cova da Moura. “Começou a vir a invasão do pessoal”, relata o septuagenário. “Ninguém sabia que isto tinha dono. Fiz parte da comissão de moradores e houve um senhor, mais tarde, que disse que o terreno pertencia a um tal Canas. E que esse Canas queria que a câmara desse um terreno noutro sítio, para legalizar isto aqui”. Tudo foi continuando igual. “No dia 6 de novembro de 2006 no cinema D. João V, na Damaia, tivemos uma reunião. Veio o secretário de estado e fez uma proposta de que o problema do bairro estaria resolvido até 2011. Mas nada foi feito até hoje”, lamenta o morador, que paga IMI pela sua casa.
Certo é que quem ali mora gosta de lá viver. “Desde o princípio do bairro, quando comecei a vir para aqui, podíamos dormir na rua que ninguém fazia nada. Criei cinco filhos e tenho um vizinho que tem sete filhos; nunca se meteram em porcaria”. Ainda assim, não nega que na Cova da Moura existe criminalidade, sobretudo relacionada com o tráfico de droga. “Isso são jovens que não querem estudar. Os pais vão trabalhar, os miúdos saem da escola e metem-se na desbunda. Vão crescendo desgovernados”, avança o idoso. “Depois há a cena da droga e as pessoas que usam droga têm de fazer asneira”. Ainda assim, assevera: “Eu nunca tive medo”. E orgulha-se sobretudo das filhas. “A mais nova é advogada e a outra é doutorada na defesa dos Direitos Humanos. Dizem mal do bairro mas não é bem assim. O bairro foi construído por pessoas honestas e trabalhadoras. Em todos os cantos do mundo há bons e maus. Isto não é uma favela”.
Avelino Alves de Andrade, 77 anos, chegou à Cova da Moura em 1981. “Toda a gente fazia a sua casa e ninguém nos disse para não o fazer”. Também ele está feliz no bairro de construção clandestina. “Eu gosto disto aqui. Por exemplo, eu tenho um quintal. Se eu fosse para um apartamento como é que eu podia fazer um peixinho grelhado?” E relata um cenário semelhante ao observado pelo amigo Maocha, quando chegaram, naqueles tempos, a esta terra. “Isto era tudo horta e até havia uma vacaria. Na altura ninguém pagava para fazer a casa. Comprávamos os materiais e fazíamos tudo juntos, ajudávamos uns aos outros. Era só comer, viver e trabalhar”.
Também Avelino garante: “Não sabíamos que o terreno tinha dono. Quando soube disso já a minha casa tinha três andares. O convívio sempre foi bom e somos muito unidos.” Quanto ao crime, de que tantas vezes se fala, Avelino assume: “Uma vez estavam a fazer uma rusga lá em cima. Eu ando na minha linha e cada um resolve o seu problema. Não me meto na vida de ninguém”. E apoia a ação das forças policiais, quando necessário. “A lei é para ser cumprida. Se eles estão a transgredir... Há alguns que não têm trabalho e outros não querem procurar trabalho, depois metem-se no que não devem”.
Helena Sousa, 44 anos, já nasceu na Cova da Moura. “Os meus pais fizeram aqui a sua casita. E eu não quero sair daqui, noutro sítio ia perder os laços que tenho com os meus vizinhos”, aponta a mulher, cuidadora informal do filho deficiente motor. “Muita gente depois de vir cá diz que pensava que era outra coisa. Porque na televisão só dão notícias sobre a violência. Aqui há muito mais: há muita ajuda entre nós, às vezes até paramos para conversar com os idosos, ver se precisam de alguma coisa. Aqui ninguém passa mal”.
Na Associação Moinho da Juventude, Jakilson Pereira, 39 anos, o presidente, observa: “Às vezes parece romântica essa ideia de a Cova da Moura ser a 11.ª ilha de Cabo Verde. Mas isso também serviu para nos colocar um rótulo e para a exclusão.” Ele próprio assegura que já se sentiu posto de parte por ser da Cova da Moura. “Se, ainda na minha geração, tentamos mudar a morada no currículo para poder encontrar emprego, o que é que lhe parece?”, conclui.
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