“Não tive conhecimento”; “Não havia nada de preocupante”; “Não sei se havia um regulamento em vigor”; "Não sei se foi este o relatório que eu li”; “Li um relatório, mas não tenho memória”; “Não me recordo se havia uma regra ou orientação escrita sobre algemagem”; “Só soube que a Polícia Judiciária estava a investigar quando a comunicação social deu a notícia”; “Não era eu que acedia a esse email”; “Nunca li esses emails”; “Fui enganada, mas não sei dizer exatamente quem me enganou”.
Pode resumir-se assim o depoimento que Cristina Gatões, ex-diretora nacional do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e agora, aos 58 anos, coordenadora superior de investigação criminal na disponibilidade (ou seja, na pré-reforma), prestou esta sexta-feira no Juízo Criminal de Lisboa, naquele que é o segundo julgamento relacionado com a morte de Ihor Homeniuk, ocorrida a 12 de março de 2020 no centro de detenção daquela polícia no aeroporto de Lisboa.
Foi a primeira vez que a ex-diretora nacional do SEF testemunhou sobre o caso (no primeiro julgamento, no qual três inspetores foram considerados culpados por terem causado diretamente a morte - por agressão e por deixarem Ihor algemado mais de oito horas, sendo condenados a nove anos de prisão - ninguém a arrolou para depor). E a segunda ocasião em que falou publicamente sobre o óbito (a primeira foi numa entrevista à RTP, em novembro de 2020, na qual declarou ter sido “enganada”, o que voltou a repetir no seu depoimento em tribunal). Chegou a ser chamada ao parlamento, em dezembro de 2020, para dar esclarecimentos sobre o assunto, mas dias antes da audição saiu da direção do SEF e não compareceu.
Como no depoimento que prestou na Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) a 19 de março de 2021, no âmbito do inquérito disciplinar a um dos seus subordinados (o inspetor coordenador João Ataíde, também testemunha neste processo judicial), Gatões garantiu que nunca teve motivos para desconfiar de que o decesso de Homeniuk se devera a algo que não causa natural. E que, malgrado a brigada de homicídios da Polícia Judiciária (PJ), alertada por uma denúncia anónima e pelo médico que efectuou a autópsia, ter começado a investigar na semana seguinte ao óbito (o qual ocorreu numa quinta-feira), nunca se deu conta de tal investigação até que, na noite de 29 de março, a TVI deu a notícia de que três inspetores eram suspeitos de terem matado Ihor.
“A sensação que tive é de cair num buraco negro, a pessoa fica sem chão”, disse ao tribunal a ex-dirigente sobre esse momento, asseverando que só aí suspeitou de que as coisas não se teriam passado como descrito nas informações e relatórios que lhe haviam sido apresentados pelos seus subordinados. Ordenou então um inquérito interno - até àquele momento, 17 dias após o óbito, não existira no SEF qualquer averiguação formal sobre ele.