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Sociedade
30 setembro 2024 às 00h49
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Morte de Ihor. Ex-diretora nacional do SEF em tribunal: não me lembro, não sei, não vi, não desconfiei

Cristina Gatões, responsável máxima do SEF quando Ihor morreu, depôs como testemunha no julgamento em que se examina o encobrimento do crime. Garantiu que nada soube ou suspeitou até que, 17 dias após o óbito, saiu a notícia de que a PJ indiciava três subordinados seus por agredirem brutalmente o cidadão ucraniano.

“Não tive conhecimento”; “Não havia nada de preocupante”; “Não sei se havia um regulamento em vigor”; "Não sei se foi este o relatório que eu li”; “Li um relatório, mas não tenho memória”; “Não me recordo se havia uma regra ou orientação escrita sobre algemagem”; “Só soube que a Polícia Judiciária estava a investigar quando a comunicação social deu a notícia”; “Não era eu que acedia a esse email”; “Nunca li esses emails”; “Fui enganada, mas não sei dizer exatamente quem me enganou”.

Pode resumir-se assim o depoimento que Cristina Gatões, ex-diretora nacional do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e agora, aos 58 anos, coordenadora superior de investigação criminal na disponibilidade (ou seja, na pré-reforma), prestou esta sexta-feira no Juízo Criminal de Lisboa, naquele que é o segundo julgamento relacionado com a morte de Ihor Homeniuk, ocorrida a 12 de março de 2020 no centro de detenção daquela polícia no aeroporto de Lisboa.

Foi a primeira vez que a ex-diretora nacional do SEF testemunhou sobre o caso (no primeiro julgamento, no qual três inspetores foram considerados culpados por terem causado diretamente a morte - por agressão e por deixarem Ihor algemado mais de oito horas, sendo condenados a nove anos de prisão - ninguém a arrolou para depor). E a segunda ocasião em que falou publicamente sobre o óbito (a primeira foi numa entrevista à RTP, em novembro de 2020, na qual declarou ter sido “enganada”, o que voltou a repetir no seu depoimento em tribunal). Chegou a ser chamada ao parlamento, em dezembro de 2020, para dar esclarecimentos sobre o assunto, mas dias antes da audição saiu da direção do SEF e não compareceu.

Como no depoimento que prestou na Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) a 19 de março de 2021, no âmbito do inquérito disciplinar a um dos seus subordinados (o inspetor coordenador João Ataíde, também testemunha neste processo judicial), Gatões garantiu que nunca teve motivos para desconfiar de que o decesso de Homeniuk se devera a algo que não causa natural. E que, malgrado a brigada de homicídios da Polícia Judiciária (PJ), alertada por uma denúncia anónima e pelo médico que efectuou a autópsia, ter começado a investigar na semana seguinte ao óbito (o qual ocorreu numa quinta-feira), nunca se deu conta de tal investigação até que, na noite de 29 de março, a TVI deu a notícia de que três inspetores eram suspeitos de terem matado Ihor.

“A sensação que tive é de cair num buraco negro, a pessoa fica sem chão”, disse ao tribunal a ex-dirigente sobre esse momento, asseverando que só aí suspeitou de que as coisas não se teriam passado como descrito nas informações e relatórios que lhe haviam sido apresentados pelos seus subordinados. Ordenou então um inquérito interno - até àquele momento, 17 dias após o óbito, não existira no SEF qualquer averiguação formal sobre ele.

Ao tribunal, sob juramento, Cristina Gatões disse nunca ter visto os vários emails - pelo menos oito, ao que este jornal conseguiu saber - enviados para o seu endereço de diretora nacional do SEF dando conhecimento, logo a partir de 18 de março, de que a Secção de Investigação de Homicídios da PJ estava em campo.

“Não era eu que acedia a esse email”, explicou. “Era o meu gabinete. Mandavam para mim os emails muito urgentes e relevantes”.

Não terá assim sido considerado relevante ou urgente o email com o assunto “Cid[adão] Ucraniano Ihor Homeniuk” enviado às 9H28 de 25 de março de 2020 pelo agora arguido António Sérgio Henriques, no qual este informa quer o principal destinatário - João Ataíde, então responsável pelo Gabinete de Inspeção do SEF - quer a diretora nacional da deslocação de “dois elementos da PJ a este Posto de Fronteira” que, munidos de fotogramas das câmaras e vigilância, lhe tinham pedido para identificar quem surgia nas mesmas, o que o mesmo dizia “obviamente” ter feito. A missiva terminava com a frase “O assunto aparenta ser sério”.

Instada a ler o email na audiência, a ex-diretora nacional fê-lo em voz sumida, garantindo mais uma vez que não soubera dele nem da investigação de homicídio até esta ser pública.

Não leu os emails, não se lembra do relatório, não sabia das regras do centro de detenção e da algemagem

No processo estão em julgamento cinco arguidos. Para além do já referido ex-DFL, subordinado direto de Gatões e responsável do SEF no aeroporto de Lisboa, acusado de denegação de justiça e prevaricação (por alegadamente ter orquestrado o encobrimento do crime), há dois inspetores, Cecília Vieira e João Agostinho, a responder por homicídio por omissão (em causa nada terem feito para evitar a morte de Ihor, crendo o Ministério Público que sabiam estar o detido algemado e sem supervisão) e dois ex-vigilantes - Manuel Correia e Paulo Marcelo -, funcionários da empresa de segurança privada Prestibel (contratada pelo SEF para efetuar a gestão corrente do centro de detenção), a quem foi imputado o crime de sequestro por terem manietado Ihor com fita adesiva.

A ex-diretora nacional do SEF, arrolada como testemunha pela defesa do DFL e pelas acusações pública e particular, respondeu às perguntas dizendo o menos possível e dando de si, como ex-dirigente policial, uma impressão de desinteresse, ausência de brio, incompetência até.

Questionada sobre o que ditava o regulamento do centro de detenção do SEF no aeroporto de Lisboa (denominado de Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária, ou EECIT), afirmou não saber se havia um regulamento em vigor à data da morte de Ihor. Logo, não sabia que era obrigatório que a utilização de medidas especiais de segurança, como a colocação de um detido em isolamento - o que sucedeu ao cidadão ucraniano, levado para a chamada “sala dos médicos”, a única sem videovigilânca de todo o EECIT, onde acabaria por morrer -, fosse autorizada pelo diretor nacional adjunto.

Esta ex-dirigente de um órgão de polícia criminal (no qual esteve 32 anos, de 1991 a 2023) também alegou não saber quais as regras de algemagem em vigor no SEF: “Não me recordo se havia alguma regra escrita mas sei que tinha havido uma formação. Acho que nunca tive de algemar ninguém.”

Admitindo que pessoas algemadas não podem ser deixadas sós, devendo ter sempre alguém a vigiá-las, disse desconhecer qualquer regra sobre a posição em que devem ser colocadas, por exemplo se pode ser de barriga para baixo (posição que, segundo um formador do SEF ouvido pelo tribunal, nunca pode ser admitida no caso de alguém algemado de mãos atrás das costas, por risco de asfixia - exatamente a causa, de acordo com a autópsia, da morte de Ihor).

Também garantiu nada ter visto de  “preocupante” no relatório efetuado pelos inspetores que intervieram no percurso de Ihor no SEF (espécie de “diário” de cada detido que, com o nome de Relatório de Ocorrência, ou RO, devia ser preenchido sequencialmente por cada interveniente, anotando todos os episódios relevantes). Confrontada com o facto de o dito RO resultar que Ihor foi algemado antes das nove da manhã de 12 de março e apenas desalgemado quase às 17 horas, quando entrou em convulsões pouco antes de morrer, afirmou: “Não me lembro de ter lido isso. Até posso ter lido e não ter ficado com memória disso.”

Antes. no mesmo depoimento, dissera que se lhe tivesse sido transmitida a informação de que Ihor estivera mais de oito horas algemado certamente se recordaria.

“Como é que a senhora não sabia, se toda a gente sabia?”

Aliás Cristina Gatões, que na sua inquirição na IGAI em março de 2021 asseverou ter lido o RO “um milhão de vezes”, acabou por assumir perante o tribunal não ter memória do mesmo. “Aquilo que procurei logo foi a certidão de óbito. Também li o relatório, mas não tenho memória.”

O facto de o RO não estar “pronto”, ou seja, totalmente preenchido, no momento da morte do cidadão ucraniano, a 12 de março, e de ter sido preciso esperar quatro dias, até 16 de março, para que fosse terminado - quatro dias nos quais, acredita o MP, esteve a ser “martelada”, ou falsificada, sob a batuta do DFL, a narrativa dos acontecimentos -, não lhe terá, igualmente, suscitado qualquer estranheza.

Questionada por José Gaspar Schwalbach, advogado de Oksana Homeniuk, viúva de Ihor, sobre se esse “hiato documental de quatro dias” não a fizera desconfiar de que algo poderia estar a ser ocultado, a ex DN do SEF negou.

Ao que Filipa Correia Pinto, a advogada de Sérgio Henriques (que está, como já referido, acusado de encobrimento do crime, nomeadamente através da “orquestração” do RO), perguntou: “Se a senhora não recorda do que estava no RO, dos factos escritos, e nem sequer sabe se foi o RO final [completo] o que leu, como é que pode afirmar que foi enganada pela forma como lhe transmitiram os factos, por lhe omitirem coisas? Quem é que acha que a enganou?”

A resposta foi: “Senti-me enganada. Não sei dizer exatamente quem me enganou.”

A advogada do ex-DFL insistiu ainda: “A partir de 19 de março sabia-se no serviço inteiro que a PJ estava a investigar. Houve várias pessoas que estavam debaixo do seu comando que sabiam e reagiram, e a senhora não sabia? Como é que a senhora não sabia, se toda a gente sabia? É que aparentemente era a única que não sabia”.

Quem a isso respondeu foi a magistrada que preside ao julgamento, a juíza Hortense Martins: “A testemunha já disse que não sabia.”

Hortense Martins, que tem sido muito dura no questionamento das testemunhas, e mandou extrair certidão em relação a várias por falsidade de depoimento, pareceu menos rigorosa com Cristina Gatões.

Esta, recorde-se, esteve em risco de surgir neste julgamento como arguida, já que o MP ponderou acusá-la do mesmo crime que imputa ao DFL. Em causa o facto de não ter, como era sua obrigação, comunicado a morte de Ihor à IGAI mal teve dela conhecimento.

Quando ocorre uma morte em custódia, os responsáveis policiais têm de avisar de imediato a autoridade judiciária (MP), a IGAI e a família (neste caso a Embaixada da Ucrânia). Tanto o MP como a representação diplomática foram notificados por um inspetor do SEF no dia do óbito, mas a IGAI só seria avisada oficialmente a 17 de março.

A ex-diretora nacional apresenta duas justificações para só ter notificado a IGAI cinco dias depois. Uma é que aguardou que lhe fosse enviado o citado relatório (RO) que, como referido, só ficou completo a 16 de março. A outra explicação é de que queria perceber se havia evidências de “maus-tratos ou violência”, tendo requerido a subordinados que visionassem as imagens de videovigilância do centro de detenção do SEF (o que foi feito em fast forward pelo responsável do departamento de inspeção interna, que lhe disse não ter encontrado indícios de maus tratos).

Justificações que o MP considerou razoáveis, desistindo de a acusar. Sobretudo porque, explica o procurador Óscar Ferreira na acusação, não haveria diferença no resultado quer o SEF tivesse avisado logo a IGAI a 12 de março quer avisando a 17: a informação transmitida seria a mesma, a de que Ihor morrera de “causas naturais”, não se esperando diferença na conduta da IGAI (que, apesar de da leitura do RO resultar a conclusão de que o cidadão ucraniano tinha estado algemado mais de oito horas, não efetuou qualquer investigação até que foi conhecida a detenção dos três inspetores, a 30 de março).

O julgamento prossegue esta segunda-feira, com a audição de Francisco Anjos, que era o inspetor de turno (espécie de chefe de esquadra) no momento da morte de Ihor Homeniuk, e de Carlos Durão, o médico que o autopsiou e que, a 14 de março, avisou a PJ de que se estava perante uma morte violenta.