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Morte de Ihor Homeniuk
06 outubro 2024 às 00h46
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“Das duas uma: não pode estar a falar verdade ou não cumpriu a sua missão”

João Ataíde, à época dos factos responsável pela inspeção interna do SEF, garantiu, no segundo julgamento criminal sobre o caso Ihor - no qual se examina a acusação de encobrimento - não ter sabido da investigação de homicídio até esta ser pública, 17 dias após a morte. Mas um mail seu prova que tal não é verdade.

Foi como inspetor da Polícia Judiciária “na disponibilidade” (pré-reforma) que João Ataíde, 62 anos, testemunhou a 27 de setembro no Juízo Criminal de Lisboa, no segundo julgamento  relacionado com a morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, ocorrida a 12 de março de 2020 nas instalações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) do aeroporto de Lisboa.

À época dos factos em análise, este inspetor coordenador da extinta polícia de fronteiras dirigia a divisão de inspeção interna, encarregada de averiguar condutas menos próprias no seio do SEF. Ataide, altamente colocado na hierarquia daquele órgão de polícia criminal, deveria então ser uma referência em termos dos procedimentos, de conhecimento dos regulamentos e da lei.

Não foi isso que evidenciou em tribunal. Pelo contrário: admitiu não conhecer as regras da algemagem e outras medidas especiais de segurança, alegou ignorar que os relatórios da Provedoria de Justiça há muito identificavam o centro de detenção do aeroporto de Lisboa como um local de risco de tortura e passou o tempo todo a repetir “não sei” e “não me recordo”.

A dada altura, a juíza Hortense Marques, exasperada, perguntou-lhe: “O senhor está-se a ouvir? Das duas uma: não pode estar a falar verdade ou não cumpriu a sua missão.” A magistrada comentava o facto de Ataíde ter admitido que a 16 de março de 2020 visionara 30 horas de imagens de videovigilância - relativas às últimas 30 horas de vida de Ihor - em, como disse, “fast track”, levando menos de três horas. O visionamento, efetuado por ordem da então diretora nacional do SEF, Cristina Gatões, teria o propósito de certificar que o cidadão ucraniano não fora alvo de “alguma violência”. Mas Ataíde, que a seguir ao "visionamento" garantiria, por escrito, não ter lobrigado “indícios objetivos de maus-tratos” ou algo de “anómalo”, viu as imagens com tal diligência que confessou ao tribunal: “Nunca vi o cidadão, nunca”. Sendo que Ihor surge várias vezes no “filme” (inclusive em situações nas quais parece ser sujeito a gestos violentos por parte de um dos vigilantes do centro de detenção, funcionário da empresa de segurança privada Prestibel que é um dos cinco arguidos no processo em julgamento).

Porém, face ao que o DN soube após o depoimento de Ataíde, o momento mais grave das suas afirmações em tribunal ocorreu quando certificou - à imagem do que fez a ex-diretora nacional no seu depoimento - que não se dera conta da investigação de homicídio da Polícia Judiciária (PJ) até esta se tornar pública, a 29 de março, por uma notícia da TVI, somente aí pondo a hipótese de Ihor não ter morrido de causas naturais. Questionado pelo advogado da assistente Oksana Homeniuk (José Gaspar Schwalbach) sobre se sabia que a PJ tinha solicitado ao SEF as imagens de videovigilância, Ataíde respondeu “não”.

Ora o então responsável pelo departamento de inspeção recebeu, como destinatário principal, pelo menos dois emails - um a 18 e outro a 25 de março -, nos quais lhe era dado conhecimento da investigação da PJ (que fora alertada para a existência de uma morte violenta no SEF a 14 de março por uma denúncia anónima e pelo médico que efetuou a autópsia). Ao contrário da ex-diretora nacional, que também estava nos destinatários dessas comunicações e foi em tribunal questionada sobre elas (garantindo nunca as ter visto por não ser ela que abria essa caixa de email), a Ataíde não foi perguntado se as lera. Porém é óbvio que o fez, pois respondeu à primeira delas - num email ao qual o DN teve entretanto acesso.

“Desconheço a razão do pedido”

Ambas as comunicações lhe foram enviadas  por António Sérgio Henriques, então diretor de Fronteiras de Lisboa (DFL) e agora arguido neste processo, no qual está acusado de denegação de justiça e prevaricação (por, alegadamente, orquestrar o encobrimento do crime). 

Na primeira, a 18 de março às 12H09 (seis dias após o óbito), Henriques comunicava quer a Ataíde, o principal destinatário, quer à diretora nacional e a Artur Girão, da Direção Central de Gestão e Administração do SEF (e hoje presidente do Sindicato de Trabalhadores da AIMA, a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, que nasceu da extinção do SEF), que a PJ fizera várias solicitações àquela polícia, incluindo o acesso às imagens de videovigilância, pedindo “ajuda sobre a possível resposta a dar à PJ”. No email enviado pelo DFL estava incluído aquele no qual o inspetor Benvindo Luz, identificado como sendo da Secção de Investigação de Homicídios da PJ, indicava os dias relevantes para a investigação: de 10 a 12 de março (aqueles nos quais Ihor esteve em poder do SEF).

Curiosamente, Sérgio Henriques, que estivera dois dias antes, a 16 de março, com Ataíde a visionar aquelas mesmas imagens que a PJ requeria (e que na descrição de Ataíde ao tribunal o ajudara a “interpretar” o que via, dizendo “agora é isto e agora é aquilo”, o que demonstra que ou as tinha visto antes ou conhecia muito bem a “fita do tempo” em causa), comentava no email: “Desconheço a razão do pedido”.

Também a resposta de Ataíde, enviada no mesmo dia às 18H34 e para os mesmos destinatários, parece afetar desconhecimento sobre o que só podia ser óbvio para os dois: “Creio que os pedidos de um Órgão de Polícia Criminal no âmbito de um NUIPC [processo criminal] são para satisfazer, desde logo, ao abrigo do dever geral de colaboração. Se alguma dúvida, de forma ou de fundo, subsiste, poder-se-á contactar o inspetor signatário do pedido para esclarecimentos adicionais”.

"Eu sabia (que a PJ estava a investigar) porque o Sérgio Henriques me tinha dito"

Mas o depoimento de Ataíde em tribunal não faz só tábua rasa das comunicações eletrónicas que recebeu de Henriques e da sua resposta. Contradiz também o que disse ao ser inquirido, a 9 de março de 2021, pela Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) no âmbito do inquérito disciplinar que esta lhe instaurou (pelo facto de ter visionado as imagens de videovigilância e afirmado que não vira indícios de violência).

“Eu sabia (que a PJ estava a investigar) porque o Sérgio Henriques me tinha dito. Acho normal, morrendo uma pessoa num espaço policial, que houvesse investigação”, ouve-se no áudio dessa inquirição, ao qual o DN teve acesso.

Nessa ocasião, Ataíde afirmou igualmente: "Ela [Gatões] terá de explicar por que não abriu um processo de averiguações antes [de 30 de março, quando três inspetores foram detidos como suspeitos de homicídio], nomeadamente depois do mail da PJ de 19 de março [no qual Sérgio Henriques respondia ao já citado pedido da PJ, em que tanto a diretora nacional como Ataíde constavam nos destinatários].”

Parece pois incontroverso que João Ataíde faltou à verdade em tribunal. E que, de acordo com o que disse à IGAI em 2021, estava convicto de que a diretora nacional teve conhecimento da investigação da PJ e que deveria ter de imediato desencadeado uma investigação interna - apesar de ele próprio lhe ter asseverado que nada vira de anómalo nas imagens -, comunicando logo à IGAI (que fiscaliza as polícias) a existência de suspeitas de crime.

Porém, malgrado ter sido censurado energicamente pela magistrada Hortense Marques devido à forma como parecia desconsiderar a importância de depor em juízo - “Não se esteja a rir. Estar nessa cadeira tem muita responsabilidade. Neste processo estamos a ver desfilar testemunhas a serem-lhes extraídas certidões de falsidade de depoimento a toda a hora” - João Ataíde não saiu do tribunal com a promessa de um inquérito por falsas declarações, como sucedeu a outros depoentes, caso do ex-inspetor do SEF e atual membro da PJ Rui Marques.