Foi como inspetor da Polícia Judiciária “na disponibilidade” (pré-reforma) que João Ataíde, 62 anos, testemunhou a 27 de setembro no Juízo Criminal de Lisboa, no segundo julgamento relacionado com a morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, ocorrida a 12 de março de 2020 nas instalações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) do aeroporto de Lisboa.
À época dos factos em análise, este inspetor coordenador da extinta polícia de fronteiras dirigia a divisão de inspeção interna, encarregada de averiguar condutas menos próprias no seio do SEF. Ataide, altamente colocado na hierarquia daquele órgão de polícia criminal, deveria então ser uma referência em termos dos procedimentos, de conhecimento dos regulamentos e da lei.
Não foi isso que evidenciou em tribunal. Pelo contrário: admitiu não conhecer as regras da algemagem e outras medidas especiais de segurança, alegou ignorar que os relatórios da Provedoria de Justiça há muito identificavam o centro de detenção do aeroporto de Lisboa como um local de risco de tortura e passou o tempo todo a repetir “não sei” e “não me recordo”.
A dada altura, a juíza Hortense Marques, exasperada, perguntou-lhe: “O senhor está-se a ouvir? Das duas uma: não pode estar a falar verdade ou não cumpriu a sua missão.” A magistrada comentava o facto de Ataíde ter admitido que a 16 de março de 2020 visionara 30 horas de imagens de videovigilância - relativas às últimas 30 horas de vida de Ihor - em, como disse, “fast track”, levando menos de três horas. O visionamento, efetuado por ordem da então diretora nacional do SEF, Cristina Gatões, teria o propósito de certificar que o cidadão ucraniano não fora alvo de “alguma violência”. Mas Ataíde, que a seguir ao "visionamento" garantiria, por escrito, não ter lobrigado “indícios objetivos de maus-tratos” ou algo de “anómalo”, viu as imagens com tal diligência que confessou ao tribunal: “Nunca vi o cidadão, nunca”. Sendo que Ihor surge várias vezes no “filme” (inclusive em situações nas quais parece ser sujeito a gestos violentos por parte de um dos vigilantes do centro de detenção, funcionário da empresa de segurança privada Prestibel que é um dos cinco arguidos no processo em julgamento).
Porém, face ao que o DN soube após o depoimento de Ataíde, o momento mais grave das suas afirmações em tribunal ocorreu quando certificou - à imagem do que fez a ex-diretora nacional no seu depoimento - que não se dera conta da investigação de homicídio da Polícia Judiciária (PJ) até esta se tornar pública, a 29 de março, por uma notícia da TVI, somente aí pondo a hipótese de Ihor não ter morrido de causas naturais. Questionado pelo advogado da assistente Oksana Homeniuk (José Gaspar Schwalbach) sobre se sabia que a PJ tinha solicitado ao SEF as imagens de videovigilância, Ataíde respondeu “não”.
Ora o então responsável pelo departamento de inspeção recebeu, como destinatário principal, pelo menos dois emails - um a 18 e outro a 25 de março -, nos quais lhe era dado conhecimento da investigação da PJ (que fora alertada para a existência de uma morte violenta no SEF a 14 de março por uma denúncia anónima e pelo médico que efetuou a autópsia). Ao contrário da ex-diretora nacional, que também estava nos destinatários dessas comunicações e foi em tribunal questionada sobre elas (garantindo nunca as ter visto por não ser ela que abria essa caixa de email), a Ataíde não foi perguntado se as lera. Porém é óbvio que o fez, pois respondeu à primeira delas - num email ao qual o DN teve entretanto acesso.