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Política
14 dezembro 2024 às 00h03
Leitura: 12 min

Autarcas justificam piores resultados de endividamento com ‘herança’ do executivo anterior

Duas das três câmaras mais endividadas têm os chefes do executivo municipal sem possibilidade de renovar o cargo. O DN falou com estes presidentes de câmara em concreto, que veem com ânimo os próximos desafios eleitorais, já em 2025.

Os presidentes das três Câmaras Municipais mais endividadas de Portugal - Vila Real de Santo António, Fornos de Algodres e Vila Franca do Campo (Açores) - têm duas características em comum: foram eleitos pelo PS e justificam o estado financeiro das suas autarquias com a ‘herança’ pesada que lhes chegou às mãos depois da gestão dos seus antecessores, que, num dos casos, até é do próprio partido. Dois deles não podem ficar mais nenhum mandato à frente das câmaras. Por isso, há também a pairar sobre eles a pressão das eleições autárquicas, já em 2025, que dizem não temer. Por agora, os dados do Anuário Financeiro dos Municípios Portugueses, relativo a 2023 e divulgado no final de outubro, desperta dúvidas e oferece algumas certezas sobre a gestão municipal. No entanto, os dados incluidos no documento que dão conta do endividamento são relativos a 2022.

No que diz respeito ao endividamento, estas autarquias aparecem nos lugares cimeiros “com índice de dívida total superior a 1,5 da média da receita corrente dos três anos anteriores”, que surge no documento com base na diferença entre “receitas liquidadas” e “receitas previstas”, pelo que o número total da dívida não é o único critério para esta análise.

“Foram 16 anos em que tudo aconteceu e responsabilização de alguém nunca houve”, revelou ao DN o presidente da Câmara de Vila Real de Santo António, Álvaro Araújo (PS), num comentário com o qual justificou o grau de endividamento do município (113,7 milhões de euros), que atribui ao seu antecessor (social-democrata). Álvaro Araújo está à frente do executivo municipal apenas desde 2021, pelo que ainda pode candidatar-se às eleições de 2025.

A corroborar a perspetiva do autarca, Vila Real de Santo António surge no Anuário Financeiro, elaborado pelo Centro de Investigação em Contabilidade e Fiscalidade do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (CICF), como o município que mais conseguiu reduzir em 2023 o passivo exigível, isto é, o conjunto de dívidas que são liquidadas com prazo superior a um ano, apresentando em 2023 uma variação de -34,5% face ao período homólogo.

No documento, mais especificamente na tabela relativa aos municípios com maior volume total de despesa paga em juros entre 2014 e 2023 e simulação desse custo por habitante, Vila Real de Santo António ocupa o quarto lugar.

“Não é por acaso que estas coisas acontecem, tem de haver muito rigor na gestão financeira”, diz, com orgulho, Álvaro Araújo.

Inforgrafia: DR
Mapa com os três municípios mais endividados e os três menos endividados.

Questionado sobre a estratégia seguida para protagonizar esta recuperação, o presidente da autarquia algarvia alude a 2022, quando houve uma “receita [fiscal] de 34 milhões de euros”. “A maior receita de sempre”, sublinha, à qual se juntou “a redução do passivo”, resultado de uma política de “amortização antecipada da dívida”.

“Para assim podermos assumir as nossas responsabilidades, as nossas competências junto dos nossos munícipes”, completa, acrescentando o “impacto da revogação do processo de internalização da empresa municipal”.

Apesar da estratégia que, a julgar pelos resultados, dá frutos, Álvaro Araújo assume ao DN que a autarquia tem “fundos disponíveis negativos”. Mas “só porque temos uma dívida do PAEL [Programa de Apoio à Economia Local], de 2013. Não foi pago nada desde essa data”, esclarece, destacando que nesse ano “foi feito um empréstimo para pagar a dívida e o município não pagou empréstimo nenhum”, o que foi agravado por não ter sido “feita uma suspensão de pagamento de transferências do Estado para o município”.

Por este motivo, o documento do CICF coloca Vila Real de Santo António no topo da tabela relativa a empréstimos do PAEL, com uma dívida de 21,8 milhões de euros.

No segundo lugar da tabela dos municípios mais endividados aparece Fornos de Algodres, com 26,4 milhões de euros. Ao DN, o chefe do executivo municipal, Manuel Fonseca, explicou que, quando chegou à Câmara, em 2013, havia “perto de 33, 34 milhões [de dívida], mais os passivos contingentes”. “Nós, dessa altura até este momento, não fizemos mais, não somámos mais nenhum euro à dívida que existia, o que temos feito sistematicamente durante estes anos todos é pagar”, afirmou, mas com uma garantia: “Isso não tem nada a ver com este executivo, tem a ver com o executivo que saiu em 2013 [do PSD] e que infelizmente hipotecou a vida e hipotecou também o conselho nos próximos anos.”

Manuel Fonseca termina agora o seu terceiro e último mandato à frente do concelho, mas assegura que não tem medo que, perante estes resultados financeiros, os eleitores penalizem o PS, “porque as pessoas sabem perfeitamente, em Fornos de Algodres, quem é que fez a dívida”.

“[As pessoas] sabem que nós, de forma regular, estamos a diminuir a dívida no Conselho de Fornos de Algodres”, justifica, mas com uma variação: “Os encargos [...] obrigavam-nos a optar por pagar a dívida e deixar de lado algumas coisas que eventualmente poderiam fazer-se.”

Além disto, Manuel Fonseca lembra que o seu município sofreu uma intervenção do “FAM [Fundo de Apoio Municipal]”, o que obriga a autarquia “a maximizar a receita”, o que conduz a um aumento de “ todos os impostos que são cobrados”.

‘Herança’ do mesmo partido

A mesma justificação e o mesmo contexto aparecem também no discurso do presidente da Câmara de Vila Franca do Campo, Ricardo Rodrigues, que também está a terminar o seu terceiro e último mandato. Este município é o terceiro mais endividado do país, de acordo com o CICF, com 31,6 milhões de euros.

Questionado sobre o motivo da dívida, Ricardo Rodrigues alega o mesmo e vê o copo meio cheio: Nas contas anteriores, “era a segunda câmara mais endividada do país”.

“Tenho vindo a pagar lentamente, na medida do possível”, garante, “mas está tudo regularizado”, porque foi feito “um empréstimo ao FAM”, que, por sua vez, também levou a que todas as taxas municipais fossem elevadas.

Tal como os outros autarcas, interrogado sobre se pensa que a dívida municipal pode vir a penalizar o PS nas próximas eleições, Ricardo Rodrigues lembra apenas que “toda a gente sabia do endividamento”. 
“Não é um tema escondido, é um tema conhecido. Portanto, fruto dessa negociação que fiz com a banca, com todos os credores, a estabilidade financeira da Câmara hoje é muito boa. Aliás, depois disso nunca mais fiz nenhum empréstimo”, esclarece.

Ricardo Rodrigues está à frente do executivo municipal desde 2013, o que significa que também passou no crivo das eleições autárquicas de 2017 e 2021. No entanto, ao contrário dos outros dois autarcas que surgem na tabela dos três municípios mais endividados, o presidente da Câmara de Vila Franca do Campo não recebeu o testemunho das mãos do PSD. Em 2009, no mandato anterior, o PS ganhou as eleições autárquicas com maioria absoluta (54,8% dos votos, de acordo os dados do Ministério da Administração Interna).

Saúde financeira vs. eleições

No outro lado da balança, surgem os municípios com melhor índice de dívida total, com a Câmara Municipal da Calheta (nos Açores) a ocupar o primeiro lugar, com um índice de apenas 0,6% de dívida.

O DN contactou o gabinete do presidente do executivo municipal de Calheta, Décio Pereira (eleito em 2013 pelos independentes Dar Vida ao Concelho), mas não obteve resposta sobre os critérios seguidos para conseguir este resultado e sobre se pensa que estes dados se refletirão nas próximas autárquicas.

Porém, a ocupar o segundo lugar deste ranking, surge a Câmara de Ferreira do Zêzere, cujo presidente, Bruno Gomes (PS), está no primeiro mandato e, a julgar pelo entusiasmo das respostas que deu ao DN, pretende continuar.
Questionado sobre o que é que foi feito para conseguir este controlo das dívidas, o autarca explica que tudo passou por definir “uma estratégia clara”, ainda que o ponto de partida fosse favorável.

“O atual executivo não herdou [do PSD] dívidas, mas assumiu a Câmara Municipal imediatamente após o pagamento de 2 284 920,11 euros de dívida (entre os dias 17 e 21 de setembro de 2021), o que se traduziu em severos constrangimentos orçamentais”, desabafa.

Mas ainda teve de passar por  investimentos na requalificação do espaço público no município, explica, que foi facilitada com o apoio de fundos comunitários ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e com “a proatividade” do executivo, sublinhou, “e respetivas equipas técnicas”.
Questionado sobre se o seu empenho dará frutos em 2025, com uma eventual reeleição, Bruno Gomes opta por uma abordagem vagamente inconspícua: “Não trabalho em função de resultados eleitorais.”

Para além disto, Bruno Gomes diz estar “de consciência tranquila em relação ao trabalho desenvolvido”, motivo pelo qual prevê terminar o “mandato com serenidade e sentimento de realização pessoal”.

Uma posição semelhante, e com critérios semelhantes, é assumida pelo presidente da Câmara de Castelo de Vide, António Pita (PSD), que ocupa o terceiro lugar nesta tabela.

Ao DN, o autarca explicou que “foi possível conciliar o pagamento da dívida com execução de obra realizada graças à capacidade de recorrer a outras fontes de financiamento, designadamente a fundos comunitários”, aos quais se juntou uma “almofada financeira”, que resulta da “utilização de saldos de gerência ‘generosos’”.

António Pita também está a terminar o seu terceiro mandato, mas não considera que o resultado à frente de uma das câmaras menos endividadas será “determinante nas escolhas do eleitorado nas próximas eleições autárquicas”.