Reportagem
01 outubro 2024 às 21h38
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Beirute. Incerteza e milhares de deslocados numa capital de novo em guerra

A perceção de segurança em Beirute foi posta à prova há três dias, quando um bombardeamento israelita atingiu Kola, no primeiro ataque a um bairro central da capital desde o começo desta nova crise no Médio Oriente.

À medida que Israel intensifica os ataques e surgem os primeiros relatos de entrada de tropas terrestres no Líbano, a Beirute confluem cada vez mais deslocados, que incluem habitantes dos subúrbios da própria cidade, e os seus medos e incertezas.

Na madrugada de ontem foram sentidas duas novas explosões nos subúrbios sul, que ecoaram por toda a cidade, e seguiu-se um movimento de carros e scooters em alta velocidade em direção ao centro da capital libanesa, presumivelmente mais seguro.

As explosões ocorreram logo após as forças israelitas terem emitido um alerta para que se “evacuassem imediatamente os edifícios”, num novo raide aéreo que tem visado intensamente esta zona da capital controlada pelo grupo xiita libanês Hezbollah, que ali perdeu o seu líder histórico, Hassan Nasrallah, num bombardeamento na sexta-feira contra o seu quartel-general.

O local do ataque, no grande subúrbio xiita de Dahieh, que é controlado pelo Hezbollah, fica nas proximidades do Aeroporto Rafic Hariri, que praticamente é apenas usado pela libanesa Middle East Airlines, após quase todas as companhias aéreas terem cancelado as suas ligações com Beirute no seguimento dos últimos grandes bombardeamentos israelitas.

As suas imediações, na fronteira com o bairro Dahieh, onde os acessos são vigiados por homens armados do grupo xiita apoiado pelo Irão, ficam mergulhadas, quando cai a noite, numa escuridão apenas interrompida pelos faróis dos poucos automóveis em circulação e por outdoors luminosos exibindo uma vela acesa e a frase “Rezem pelo Líbano”.

Os vestígios de uma capital em guerra vão-se acumulando em toda a parte, nos passeios, nos jardins e nas escolas, onde se aglomeram deslocados em fuga da aviação israelita, que está a fustigar as regiões do sul do país, no vale de Bekaa ou na região de Baalbek-Hermel, e também o bastião do Hezbollah em Dahieh.

Segundo o primeiro-ministro libanês, Najib Mikati, mais de um milhão de pessoas tiveram de abandonar as suas casas, ao mesmo tempo que lançou um pedido de ajuda urgente para que o Líbano possa enfrentar “a guerra devastadora de Israel” e do que apontou como um dos períodos mais perigosos da acidentada história do país.

As Forças Armadas de Israel (FDI) confirmaram que iniciaram na noite de segunda-feira ataques terrestres “limitados, localizados e direcionados” contra “alvos terroristas e infraestruturas do Hezbollah no sul do Líbano”, embora o grupo libanês tenha negado que tropas israelitas tenham entrado até ao momento no país. “Estes alvos estão localizados em aldeias perto da fronteira e representam uma ameaça imediata para as comunidades israelitas no norte de Israel”, frisaram as FDI, numa nota na rede social Telegram.

As manobras israelitas conduziram vastas quantidades de habitantes em busca de refúgio na capital libanesa, onde há cada vez mais carros com matrículas do sul do país, estacionados em toda a parte, nos passeios ou em segundas filas, porque já vai faltando espaço para todos.

Hamra, no coração económico e comercial de Beirute, mantém a sua vibração habitual, a par dos novos chegados que, na medida de cada bolsa, se vão acomodando em hotéis, apartamentos para aluguer e casas de familiares, num cenário que se vai replicando ao longo da cidade, em abrigos designados pelas autoridades, ou apenas na rua, num novo teste ao frágil equilíbrio entre as comunidades sunita, cristã, xiita e drusa.

A perceção de segurança em Beirute foi, porém, posta à prova há três dias, quando outro bombardeamento israelita atingiu Kola, no primeiro ataque a um bairro central da capital desde o começo da nova crise no Médio Oriente, em outubro passado, provocando quatro mortos, três dos quais membros da Frente Popular para a Libertação da Palestina.

O Líbano está mergulhado numa crise profunda desde 2019, que atirou uma grande parte da população para a pobreza e uma desvalorização sem precedentes da sua moeda, e que foi ainda piorada pela explosão no Porto de Beirute no ano seguinte, pela pandemia de covid-19 e, nos últimos meses, pelas hostilidades entre Israel e o Hezbollah, vitimando mais de um milhar de pessoas, números que não eram vistos desde o último conflito em 2006.

A imprensa libanesa dava conta ontem que o Hezbollah, depois de ter perdido os seus principais líderes e arsenal militar nas últimas semanas em ataques israelitas, também se depara com dificuldades financeiras do seu “Estado paralelo” e que nem o apoio iraniano será suficiente para que as suas instituições de microcrédito prestem auxílio à nova população deslocada.

Análises publicadas na imprensa local observam por outro lado que o enfraquecimento político e financeiro do Hezbollah também visa lançar instabilidade na sua base de apoio xiita, e que, ao contrário da guerra de 2006, Israel não procura arrasar infraestruturas físicas, mas sobretudo minar as outras comunidades, ao sinalizar, como aconteceu e no recente bombardeamento do bairro de Kola, que não há locais seguros nem “linhas vermelhas” na ofensiva contra o movimento armado pró-iraniano.

Apesar de adormecido, o comércio no centro de Beirute mantém-se aberto na generalidade, as esplanadas dos restaurantes estão sempre cheias, em artérias apertadas que ficam entupidas à passagem de camiões-cisterna, entre o lixo a transbordar dos contentores, levando água porta a porta, numa tentativa de preservação de bens essenciais numa capital frenética, lotada e assombrada pelo medo.

*Enviado da agência Lusa