A emissora pública SVT da Suécia noticiou, recentemente, que o 6 de abril de 1974 bem podia ser considerado o Dia Nacional da Música Sueca.
Nessa já distante noite o grupo ABBA venceu o Festival Eurovisão da Canção, cantando, com ironia, o fim da Guerra Napoleónica (Waterloo). Esse acontecimento musical foi marcante para o grupo, para o evento, para a música e, também, para a Suécia. Presentemente, em Malmö, o país anfitrião dá continuidade à marca que conseguiu ganhar nestes últimos 50 anos pelo facto de construir muitas das canções vitoriosas sob a sua bandeira e, também, exportando-as para outros países.
Por estes dias celebra-se, portanto, o domínio da Suécia na Eurovisão.
A organização concretiza uma agenda lotada de eventos para uma população jovem e diversificada e 100 000 visitantes estimados, reforçando, com profissionalismo, as características do Festival, ou seja, um programa social, cultural, económico e tecnológico, com impacto dentro e fora da Europa. E, note-se, também político.
Neste quadro privilegiado de discussão, os estudos que analisam o fenómeno da Eurovisão - a que denominamos Eurovisiologia - ajudam a apoiar o questionamento sobre as novas configurações da Europa, sobre as atuais características das suas duas principais macrorregiões e sobre o papel dos países geograficamente periféricos como Portugal. A ideia de uma Europa Ocidental, mais abstrata, transnacional e cosmopolita, face a uma Europa do Leste, mais étnica e autêntica, parece estar a desvanecer-se, quer pela descontinuidade encontrada nos registos musicais de alguns países, quer pelas narrativas de identidade e culturas nacionais de um lado e de outro.
A criação do Festival esteve intimamente ligada à vontade de promover a paz após uma guerra mundial, aproveitando um formato televisivo que soube adaptar-se aos tempos e se reinventa. Na sequência da rápida expansão do Festival nas últimas décadas, tem havido uma série de estudos muitas vezes centrados na musicologia, nas afinidades da votação e nas estruturas políticas e culturais, todos eles avidamente a favor da Eurovisão e com origem em muitas partes do mundo. Esta extensão cautelosa do significado do local para o global reflete uma identidade da Europa em mudança e um fluxo dos rituais de participação cultural ocidental para fora dos seus limites.
Na sociedade contemporânea, o rápido desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação reforçou a sociedade da imagem e a globalização de conteúdos, de que organizações como a União Europeia de Radiodifusão (UER) têm contribuído para a criação de narrativas. A UER tem explicado que o Festival resta serviços públicos com valores, tais como o respeito, a criatividade, a diversidade e a inovação. O público da Eurovisão concentra-se nas atuações do espetáculo transmitido em direto para todo o mundo através dos televisores e da internet, mas os sons do concurso também animam locais para além da própria arena.
É manifestamente vibrante o que se passa todos os anos em cada uma das cidades de acolhimento do Festival, também elas casos de estudo.
Na edição deste ano, a organização sueca apresenta uma visão de paz e alegria a um mundo amargamente fraturado. No meio da controvérsia sobre a inclusão de Israel na competição após a invasão da Faixa de Gaza, sobre o aumento dos alertas de terror em toda a Europa, sobre a guerra na Ucrânia e sobre a ameaça da Rússia após a recente adesão da Suécia à NATO, então, o jubileu dos ABBA empalidece em significado. Esta é a edição do Festival mais politicamente controversa de sempre.
E será que a Eurovisão é uma plataforma para resolver conflitos globais?
Para responder a esta pergunta convém que o futuro do Festival inclua o debate sobre a legitimação das mensagens políticas, sem perder de vista as utopias (europeísta ou nacionalista), tão necessárias para se construir uma Europa unida na sua diversidade cultural e no “espaço maravilhoso” de que nos falou Michel Foucault (Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines, 1966) - as utopias consolam, porque se disseminam num espaço maravilhoso que, porém, reflete os tempos.
E qual o papel de Portugal?
Após a sua vitória, Salvador Sobral falou de que a música não é fogo de artifício, é sentimento. Passaram sete anos. Na edição deste ano, em que o primeiro tipo se sobrepõe ao segundo, a canção portuguesa passou à final, marcando a diferença e transmitindo paz no meio do turbilhão de sons, até porque, neste, Portugal não consegue competir com igual registo. A paz, que se deseja no confronto político dos povos, é transposta para uma serenidade no campo da música, talvez própria dos países periféricos. Este grito à liberdade não é apenas um grito, mas o ressoar de uma canção.
E uma canção distinta no palco da Eurovisão tanto pode ser criada por quem a RTP convida como por quem se apresenta pela livre submissão, cujo número escasso de vagas mais parece um agravo aos proponentes das centenas de canções recebidas todos os anos em Portugal. É que abrindo, democraticamente, também se promove a liberdade… que ainda arde, que ainda arde!