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Sociedade
23 dezembro 2024 às 00h06
Leitura: 14 min

Educação Inclusiva. Falta de recursos humanos leva pais a deixar de trabalhar para darem apoio aos filhos na escola

Excesso de alunos por turma, falta de professores de Ensino Especial e de assistentes operacionais são alguns dos problemas vividos nas turmas com alunos de Educação Inclusiva. Pais de Escola Básica em Lisboa avançam com um abaixo-assinado e pedem soluções.

Muitos pais abdicam da sua vida profissional para estarem em sala quando o agrupamento de escolas o permite.” Quem o diz é Filipa Nobre, uma das porta-vozes do Movimento para uma Inclusão Efetiva, que alerta para problemas graves no que se refere à falta de apoio para as crianças com Necessidades Educativas Especiais (NEE). A responsável explica ainda que o movimento tem “batalhado para ter todos os pais e não apenas os pais de alunos com NEE na luta para pressionar a tutela e conseguir mudanças nas escolas, e ter uma integração efetiva de todos os alunos”. “Temos de aprender a integrar todas as crianças e temos feito esse caminho, mas ainda estamos longe do ideal. Há muitos problemas para resolver, muita escassez de recursos e recursos mal geridos”, confessa.

E foram esses problemas que levaram os pais da Escola Básica de Santa Clara, em Lisboa, a fazer um abaixo-assinado, onde denunciam a falta de meios humanos na escola. Um problema que afeta as crianças que precisam de um apoio mais direto, mas também a restante turma. “Na Escola Básica de Santa Clara, na freguesia de São Vicente, em Lisboa, a inclusão é falsa - é uma inclusão que exclui todos (os alunos com necessidades educativas especiais e os restantes alunos das turmas). Os professores titulares estão sozinhos em sala de aula a lidar com situações alarmantes sem qualquer apoio (apenas duas horas por semana são asseguradas pela escola). É urgente, por todos, fazer alguma coisa”, pode ler-se no documento.

O abaixo-assinado alerta ainda para a situação de “pais de crianças [com NEE] que estão a deixar de trabalhar durante os períodos letivos para poderem estar com os seus filhos em sala de aula, para que os professores consigam dar aulas à turma - com tudo o que isto implica, como a perda de rendimento mensal”. 

“Falamos de crianças que têm crises graves, momentos em que se magoam a elas próprias, tentam fugir da sala, saltam mesas e cadeiras, gritam durante períodos que podem durar poucos minutos ou uma hora. Há professores a relatar que têm de estar de mão dada com estes alunos, sempre num equilíbrio instável, enquanto ensinam as restantes crianças durante estas crises, que podem acontecer uma vez por dia ou mais”, afirmam os pais, no abaixo-assinado.

Os encarregados de educação (EE) dizem ainda que “as outras crianças assistem a tudo isto e, dada a sua idade, não conseguem perceber e processar o que se passa da mesma forma que os adultos”. “Há pais que relatam que os filhos chegam a casa perturbados pelo que viram e ouviram durante o dia”, contam no documento. Os pais dizem, por isso, que “o apoio às crianças com necessidades educativas especiais é fundamental para a integração destas crianças e para a harmonia das turmas”.

Marta Silva, uma das subscritoras da petição e mãe de um aluno do 1º ano, adianta ao DN já ter contactado a DGESTE, a Direção do Agrupamento, o pelouro da Educação da Câmara Municipal e a Junta de Freguesia “na esperança” de serem “ouvidos, depois de três meses de aulas em que nada se alterou”. “A inclusão não existe. As três turmas de 1.º ano da Escola Básica de Santa Clara têm, no total, 10 crianças com necessidades educativas especiais. Só uma destas turmas tem redução de alunos (21), as outras duas têm 24. Algumas destas crianças estão sem apoio, outras têm apenas quatro horas de apoio semanais, sendo que o resto do tempo ficam em turma”, conta.

Marta Silva garante que “os pais não querem que as crianças com NEE estejam fora da sala de aula”, mas que pretendem  “uma inclusão efetiva, em que estas crianças especiais estejam em turma, mas acompanhadas por um professor do Ensino Especial (ou alguém competente para o efeito), ao mesmo tempo que o professor titular”.

“Não podemos chamar inclusão apenas ao ato ou à decisão de incluir crianças especiais nas turmas ditas convencionais: temos que ter condições para elas (as principais prejudicadas), ao mesmo tempo que oferecemos condições para que a turma consiga aprender com serenidade”, afirma.

A EE garante que “todos os alunos estão a ser prejudicados com a falta de recursos”, pois as que precisam de apoio direto “pioraram o seu desempenho” e os restantes “não sabem o que é aprender com tranquilidade”. “Sinto que todos estão a ser prejudicados por um sistema que não está a proteger nem as crianças especiais, nem as outras crianças”, conclui.


Nuno Esteves, pai de um aluno com espectro do autismo da referida escola lamenta ver o filho “cada vez mais isolado, a turma sem qualquer apoio, com duas crianças com NEE (que fazem crises /comportamentos desafiantes todos os dias) e com a falta de um acompanhamento que permita, por exemplo, saídas da sala prevenindo crises ou repetindo individualmente o conteúdo de aprendizagem”.

Maria Viana, mãe de outra criança de educação inclusiva, explica que o filho  “não recebeu nenhum tipo de apoio”  e, por isso, vem sendo prejudicado, assim como outras crianças com necessidades educativas especiais”. “Além da escola também pedi apoio para terapia da fala na segurança social e foi negado. Até agora não temos nenhum tipo de apoio”, acrescenta.

Mudar fraldas em cima da mesa de refeições

No Agrupamento de Escolas Fragata do Tejo, na Moita, o cenário é o mesmo e com outros problemas a somar-se à falta de professores de Ensino Especial: a falta de assistentes operacionais (AO) e instalações a precisar de obras. Trata-se de uma escola com jardim de infância e Pré-escolar, onde “existe uma assistente operacional e uma educadora para 20 crianças, das quais 6 têm NEE, duas com autismo, e uma criança de 7 anos que usa fralda”, explica Tânia Diniz, representante dos Encarregados de Educação (EE).

Afirma ainda que “as crianças passam frio, a AO tem de mudar fraldas na mesa de refeições por não haver um fraldário e as crianças precisam de sair da sala para ir à casa de banho, que fica no exterior”. Tânia Diniz denuncia a falta de um professor de Educação Especial e de uma AO. “O problema, aqui ,é que este ano colocaram uma AO extra, mas no início do ano letivo ela caiu, ma- goou-se e foi de baixa. Nunca mais foi substituída”, conclui.

Movimento para uma Inclusão Efetiva vai apresentar queixa no Tribunal Europeu

“Há mesmo muitas crianças com necessidades educativas especiais em sofrimento em Portugal, vítimas de negligência e maus-tratos físicos e psicológicos.” A afirmação parte do Movimento para uma Inclusão Efetiva, que decidiu avançar com uma queixa no Tribunal Europeu, estando a recolher testemunhos dos pais queixosos. Filipa Nobre, uma das porta-vozes do movimento, diz haver “muitas queixas de situações graves, em âmbito escolar, nas diferentes valências”. “Há uma preocupação muito grande, principalmente com as crianças com espetro do autismo. Estamos a falar de situações graves e, por isso, decidimos apresentar uma queixa ao Tribunal Europeu”, explica a responsável.

Quase 90 mil alunos com medidas seletivas e/ou adicionais

Os últimos dados da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), referentes ao ano letivo passado e publicados este ano, apontam para quase 90 mil alunos com medidas seletivas e/ou adicionais nas escolas portuguesas. O número total representa que cerca de 8% das crianças e jovens (desde o Pré-escolar ao Ensino Secundário) são abrangidos pelo denominado Ensino Inclusivo, beneficiando de medidas de suporte à aprendizagem e à inclusão. Segundo a DGEEC, há 7362 docentes com funções específicas de suporte à aprendizagem e à inclusão. Desses, 7194 são professores de Educação Especial e os restantes de disciplinas como a Língua Gestual, 1.º Ciclo, Educação Visual e Tecnológica, Educação Musical, Português, entre outras. 

“Continuamos perante desigualdade de oportunidades e até discriminação”

Uma das porta-vozes do Movimento para uma Inclusão Efetiva, Filipa Nobre denuncia que há autarquias a discriminar as crianças com necessidades educativas especiais e refere que a falta de recursos tem-se agravado nas escolas.

Existe inclusão nas escolas portuguesas?
Não existe inclusão, existe alguma integração. Continuamos perante situações de desigualdade de oportunidades e até de discriminação. Temos de dar as mesmas oportunidades a todas as crianças, independentemente das necessidades específicas de cada uma, e isso não é feito. Podemos falar de vários tipos de desigualdades e discriminação, que está relacionada com a delegação de poderes às autarquias, que gerem transportes, refeições, e componente não-letiva. Algumas autarquias discriminam as crianças com Necessidades Educativas Especiais (NEE) e há diferenças entre as autarquias. Mesmo dentro do próprio agrupamento existem diferenças. Ou seja, as crianças têm direitos e oportunidades diferentes dependendo da autarquia ou escola a que pertencem.

Queixam-se também da falta de recursos. Tem-se mantido ou piorado nos últimos anos?
A falta de recursos tem-se agravado porque as crianças deveriam ter direito a um certo número de profissionais atribuídos e, na maioria das vezes, não acontece. Por um lado, temos falta de recursos humanos e, por outro, temos esses recursos mal geridos, o que deixa ainda mais evidente a falta de profissionais nas escolas. Dou-lhe um exemplo: se, antes, um professor do Ensino Especial estava alocado a uma criança para apoio mais direto, hoje esse profissional tem de se desdobrar para vários alunos, porque a mudança no decreto inclui crianças com outro tipo de dificuldades, como ter tido um ano mais difícil na escola ou algo que não tem a ver com problemas de Educação Especial.  Atribuem-se a vários alunos as chamadas medidas universais e as crianças com problemas mais graves perdem o apoio mais direto e individualizado que tinham. E há uma sobrecarga muito grande,  quer a nível de tempo, quer a nível burocrático. Há cada vez menos professores e estão cada vez mais desgastados.

Também têm pedido mais assistentes operacionais (AO).
Os AO são claramente insuficientes, mas também aqui há uma gestão errada dos poucos recursos existentes. Estive há pouco reunida com uma câmara que dizia que tinha colocado mais dois AO no agrupamento, mas não na escola onde eram efetivamente necessários…A falta de recursos prejudica todas as crianças, as que precisam de mais apoio e as outras. Há crianças integradas em turma que não têm o apoio devido em sala, o que leva à instabilidade, quer da criança com Necessidades Educativas Especiais, quer dos outros alunos. Muitos pais abdicam da sua vida profissional para estar em sala quando o agrupamento permite, pois nem todos o fazem. A criança pode descompensar e desestabilizar a aula e uma só professora não consegue dar atenção a todas.

A legislação existente é suficiente ou deveria ser alterada?
Temos um decreto que junta três ministérios e uma legislação subjetiva. Os princípios são abrangentes, subjetivos e generalistas, e dados a interpretações vagas. Se o que a lei prevê fosse implementado, fiscalizado, monitorizado, seriam adaptadas as leis, haveria decretos complementares. A partir do momento em que não é feito, ficamos no vazio.

Apresentaram uma petição na Assembleia da República (AR) para pedir mudanças à lei em vigor. Acreditam que irá surtir efeito?
Apresentámos uma petição na AR, no dia 28 de novembro, a pedir uma revogação ou alteração à lei em vigor. Estamos a aguardar data para sermos ouvidos e acreditamos que algo vai mudar. O próprio  Ministério da Educação encomendou um estudo de fiscalização do decreto da inclusão. Estão a ser pressionados e estão num ponto em que não poderão não fazer alguma coisa.