Crise
19 agosto 2024 às 00h24
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“Turistas olham e não compram nada”. Fechos e despedimentos ameaçam restauração

Restaurantes enfrentam ano negro com a quebra de clientes, nacionais e estrangeiros. Sem receitas e com os custos a aumentarem, proprietários reduzem equipas para tentar salvar negócios. Fechar portas é, para alguns, a única solução após de meses de casa vazia.

O sol que escalda a calçada irregular das ruelas de Alfama confirma que é agosto a quem mora no bairro por estes dias. Os ponteiros do relógio já perderam o meio-dia e os degraus das Escadinhas de Santo Estêvão, que são afortunadamente abraçados por meia sombra, servem de colo aos turistas que desembrulham sandes e abrem latas de refrigerantes numa pausa forçada pela fome, que aperta neste início de tarde. Pelas ruas há esplanadas despidas de clientes e empregados estrangeiros de avental e sentinela à porta dos restaurantes. No número 70B da Rua do Vigário há um inquilino que se despede, neste que é o seu último verão a viver numa das zonas mais típicas da capital. Depois de uma década, o restaurante Boi-Cavalo já tem data para encerrar.

Em outubro, Hugo Brito rodará a chave para trancar a porta pela última vez e a culpa é da matemática. A multiplicação dos custos, aliada à soma das despesas, com a subtração de clientes ditou a decisão do chef. “Os últimos oito meses foram, comparativamente com todos os anos anteriores, os piores. Houve uma quebra brutal na procura. Junho e julho foram trágicos para toda a gente. Pensei que pudesse ser só em Lisboa, mas tenho falado com pessoas de outros sítios e ninguém tem boas histórias para contar na restauração”, explica.

O também proprietário do espaço aponta a perda do poder de compra como um dos fatores que justificam a acalmia. “O aumento das taxas de juro por parte do Banco Central Europeu retirou rendimento aos portugueses e aos europeus em geral. As pessoas passaram a cortar nos extras e os restaurantes são a primeira coisa a ir à vida”, garante. 

O empresário critica ainda o número de restaurantes na capital e defende que, à semelhança do Alojamento Local, deveria existir uma regulamentação para a restauração. “Os portugueses e os lisboetas não chegam para suportar este ecossistema. Não há regulamentação, nem uma ideia de zoning”, diz.

Um resultado negativo nas contas deixa clara a sentença de morte do negócio, mas há dúvidas nas variáveis da equação. “É uma esquizofrenia ler os dados que nos indicam que todos os anos batemos recordes no número de turistas e de receitas. Isto está a ir para onde?”, questiona.

Na semana passada, o Instituto Nacional de Estatística confirmou o cenário. Na primeira metade do ano, foram registados novos máximos de hóspedes no país - 14 milhões, que correspondem a um crescimento de 6% face ao mesmo período de 2023. Já os proveitos totais do alojamento turístico - que somam ao alojamento outros gastos inerentes à estada dos turistas, como restauração, lavandaria entre outros serviços - aumentaram 12,3% para perto de três mil milhões de euros. Mas a restauração diz estar de bolsos vazios.

Para o dono do Boi-Cavalo há uma mudança no perfil do turismo em Portugal. “Está a haver uma bipolarização do turista. Por um lado, temos o turista de massas que olha, olha e não compra nada e, por outro, há o turista com elevado poder de compra que vem à procura do luxo, que vai para a Comporta e para Troia. Aquele turista do meio, com algum poder de compra, mas que não é rico, desapareceu. Eram estes turistas que suportavam os restaurantes de gama média, e é aqui que o nosso espaço se insere. Este cliente está a desaparecer. Basta ir à cidade e vemos os restaurantes quase vazios, não é aquele cenário vibrante que existia há uns anos”, aponta.

O chef Ivo Tavares, dono do restaurante Izcalli, concorda. “Há muitos turistas que só estão a fazer número e não frequentam os negócios e os turistas com dinheiro vão às grandes casas. O JncQUOI [marca de restauração do Grupo Amorim Luxury] está sempre cheio”, constata.

O empresário conta que desde janeiro que o negócio “está em queda livre” com a procura a dissipar-se. Os hábitos de consumo começaram a mudar, antecipando um desfecho negro. “Tinha clientes que bebiam cinco coquetéis por refeição e começaram a consumir apenas um, mudando depois para a cerveja”, refere.

Foram várias as estratégias para tentar manter à tona o restaurante de cozinha mexicana, localizado a poucos passos da Basílica da Estrela, em Lisboa. Primeiro a redução do staff, depois uma adaptação da carta. Nenhuma resultou e, ontem, o Izcalli, que nasceu originalmente em Alcântara, há seis anos, fechou as portas definitivamente.

Despedimentos são paliativo para manter o negócio

A Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) confirma que o setor está a atravessar um período de turbulência. “Os números da atividade turística podem induzir uma perceção de que tudo “está bem e recomenda-se”, mas, infelizmente, não é bem assim e há, de facto, uma parte significativa da restauração que se tem deparado com muitas dificuldades, sendo a dispensa de pessoal, obviamente, uma medida que se pode tomar para reduzir custos, muitas das vezes o último recurso para a subsistência do negócio. A procura parece não estar a corresponder ao esperado, está muito inconstante e desigual no território”, enquadra a secretária-geral da AHRESP. 

Ana Jacinto recorda que há ainda empresas a pagar a fatura dos tempos da covid. “Muitas empresas endividaram-se nessa altura, em que não tinham faturação, para poderem manter os seus negócios. Agora, obrigadas ao cumprimento do reembolso da dívida, veem-se confrontadas com um cenário de inflação, e de aumento de custos e de taxas de juro, o que as deixa praticamente sem tesouraria”, alerta.

A responsável explica que há negócios a “evoluir positivamente”, mas que os empresários da restauração estão “receosos e apreensivos” com a instabilidade da procura.

“Não esqueçamos que a procura interna é uma fatia importante da nossa restauração, e uma quebra, como parece estar a acontecer, tem um impacto muito negativo”, alerta.

Ana Jacinto rejeita, para já, traçar um cenário mais catastrófico e falar numa crise no setor, mas afiança que é preciso estar alerta. “Há estabelecimentos que ponderam, de facto, fechar portas, especialmente aqueles que se situam em locais fora dos centros turísticos, e na periferia das grandes cidades, mas julgo ainda ser prematuro afirmar-se que há, efetivamente, uma crise na restauração, apesar de haver sinais para os quais devemos estar especialmente atentos”, salvaguarda.

As queixas estendem-se pelo mapa nacional e, fora da capital, em Santarém, também o restaurante Ó Balcão, que conquistou este ano a primeira estrela Michelin, está a ser impactado com a quebra de clientes. “Sinto que este ano há menos turismo. As pessoas que vinham do norte para o sul, de férias, paravam muito aqui para almoçar. Seja do Porto para Lisboaou para o Algarve, e nota-se a diferença. Estive no Algarve há duas semanas e está completamente deserto, as coisas não estão fáceis”, desabafa o chef Rodrigo Castelo.

O impacto da conjuntura já pressiona a operação que é composta por uma fatia de 50% de clientes estrangeiros, 30% de mercado nacional e apenas 10% de habitantes locais. “A receita cai e as nossas despesas, principalmente as fixas, são sempre as mesmas. Nós temos uma operação grande, temos de a manter viva e não é fácil. Vivemos num país de bastantes impostos. Pago um balúrdio pelos 12 funcionários e não ter clientes não é fácil”, diz.

Afinar táticas para manter a tesouraria é um desafio e baixar preços está fora de questão. “Como? As matérias-primas estão cada vez mais caras. Se for baixar o preço de um prato, ainda me estou a afundar mais, não é uma opção”, afiança.

O chef estrelado admite que “a ter de mexer nalguma coisa” terá de sacrificar a equipa, encurtando-a. Rodrigo Castelo pede ao Governo que intervenha a favor dos empresários, principalmente no dossiê fiscal. Já a porta-voz da AHRESP reforça que é imperativa a redução dos custos sobre os rendimentos do trabalho, nomeadamente da TSU e do IRS. 

“Também a questão do IVA deveria ser revista no sentido da reposição integral da taxa intermédia nos refrigerantes e nas bebidas alcoólicas, que ainda perma- necem à taxa máxima. E a alteração da taxa intermédia de 13% para 10%, equiparando-a aos nossos principais concorrentes internacionais, como é o caso de Espanha, França e Itália. Este aspeto é importante, nomeadamente ao nível concorrencial”, aponta ainda Ana Jacinto.

Em Estremoz, o chef Ruben Trindade, do Casa do Gadanha, afina pelo mesmo diapasão dos seus pares e diz que, neste momento, “está a sobreviver”. O verão já caminha para o fim e as cadeiras do restaurante continuam arrumadas. “A oportunidade que tinha de ganhar uma bolsa financeira na época alta já se perdeu, já não dá para recuperar”, lamenta.

Os amigos de profissão, conta, estão na mesma situação com restaurantes a meio gás e hotéis ocupados pela metade. “Estou um pouco emocional nesta fase, porque, de facto, está a chatear-me imenso. Dá-me imensa frustração não ter o restaurante cheio todos os dias. Ao fim de semana anda bem, mas depois durante a semana há uma quebra. Estou manifestamente chateado com o que está a acontecer no nosso país em termos de turismo neste momento”, partilha.

Das oito pessoas que emprega, duas não terão contratos renovados - é o preço a pagar quando o aumento dos custos asfixia as receitas. Na cabeça de Ruben Trindade ecoam planos para os próximos tempos. “Se tiver de ser, vou ter de mudar o conceito. Fazemos tudo caseiro: fermentação lenta, pastelaria, pão, pizzas, caldos e isso requer staff, mas deixa de ser sustentável se não tiver clientes para vender o produto. Se assim for, esta operação deixa de ser sustentável e tenho de criar um conceito que exija menos recursos humanos e que me permita manter a qualidade a um preço mais acessível”, projeta. Por enquanto, traçam-se soluções para manter os negócios com vida.

Já Hugo Brito, que fecha o Boi-Cavalo dentro de dois meses, faz outro tipo de planos. “Quero deixar de ser patrão e de me preocupar com contas. Vou dedicar-me apenas a cozinhar”, partilha. 

Para Ivo Tavares, o aeroporto será, provavelmente, o próximo destino e não para rumar de férias. “Emigrar para a Dinamarca ou Reino Unido são opções em cima da mesa. Vou ficar com uma dívida absurda e tenho de a liquidar. Não é uma dívida ao banco, mas sim a familiares e amigos. Tenho de a pagar e em Portugal não consigo arranjar um trabalho que me permita isso”, remata.