Tecnologia
09 março 2024 às 18h33
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Scanner da íris. Processo “não é nada claro” e privacidade pode estar em causa

Os especialistas ouvidos pelo DN não têm dúvidas: a prática levanta questões éticas e de identidade. Comissão Nacional de Proteção de Dados ainda não atuou formalmente. Aqui ao lado, em Espanha, a atividade já foi declarada ilegal.

Digitalizar as íris em troca de uma dezenas de euros pode parecer aliciante. Mas é um risco e pode, até, ser ilegal. No fundo, esta parte do olho é como uma impressão digital: única para cada ser humano e fazer um scanner deste parâmetro pode dar acesso a várias áreas, como por exemplo contas bancárias.

O tema pode parecer um pouco distópico, ou algo saído da ficção científica, mas tem acontecido mesmo - e Portugal não ficou de fora. Segundo a Worldcoin, criptomoeda paga em troca destes scanners, o objetivo é criar um sistema de identificação global e universal, que possa enfrentar as contas que propagam desinformação, bem como combater os bots online e as fake news. Alegadamente, ao utilizar dados biométricos, seria possível então identificar quem estaria por trás dessas contas. Quem o fizer, recebe depois um valor à volta de cem euros, em criptomoedas. O montante, ao certo, não é fixo. “O mercado das criptomoedas é altamente volátil. Parece ser dinheiro fácil, mas não vale, exatamente, 100 euros”, explica Ricardo Lafuente, presidente da Associação de Defesa dos Direitos Digitais.

O público-alvo parece ser claro: “São pessoas com alguma vulnerabilidade financeira. Os anúncios nos centros comerciais são feitos de forma bastante limpa, dizendo que é o futuro e coisas semelhantes.”

Mas o processo “não é nada claro”, alerta Ricardo Lafuente. No fundo, “é apenas assinar de uma forma vaga o protocolo”, e depois importa perceber como se “passa desta recolha [de dados biométricos] para a existência de um sistema fidedigno de identificação e clarificação sobre quem está por trás do teclado, se é ou não uma pessoa. Não está esclarecido como se utilizariam os sistemas com esses dados que são recolhidos.”

Ricardo Lafuente destaca também o facto de, até agora, não terem existido “entusiastas tecnológicos, celebridades, políticos, ou mesmo pessoas das comunidades das criptomoedas a adotar isto”, o que considera ser revelador dos perigos que estes scanners acarretam.

Na passada quarta-feira, a Agência Espanhola para a Proteção de Dados declarou estas recolhas como sendo ilegais e ordenou a suspensão da atividade da Worldcoin. Apesar de algo semelhante ainda não ter acontecido em Portugal, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) anunciou que investiga a Worldcoin desde 2023, “tendo já realizado uma ação de fiscalização aos locais de recolha de dados, bem como feito diligências junto das empresas envolvidas no projeto, no sentido de obter informações relativas ao tratamento de dados pessoais”. À Lusa, a presidente da CNPD afirmou também que receber dinheiro a troco de dados pessoais é “inaceitável”.

DECO ainda sem queixas

Ouvido pelo DN, o constitucionalista Paulo Otero confessa não se lembrar de um caso semelhante a este em Portugal. E não estranharia se a empresa acabasse por ser suspensa também no país: “Poderá ser um exemplo de uma empresa cujo objeto da atividade é um objeto contrário à lei. Sendo o caso, naturalmente que há fundamento para os tribunais procederem à extinção da empresa.”A decisão, explica, pode ser tomada por “um tribunal, ou pelo Ministério Público (MP)”. Isto é, “o MP ter a iniciativa junto de um juiz. De acordo, naturalmente, com o princípio do contraditório”. Mas “essa revogação é uma decisão da administração com fundamento, por exemplo, em dolo ou má fé, porque está a desenvolver uma atividade ilícita, não tendo comunicado previamente que o objeto era esse. Aí tem de ser um tribunal. A administração não pode declarar a invalidade do objeto de uma empresa privada”, explica.

Até agora, a Associação para a Defesa do Consumidor (DECO) ainda não recebeu qualquer queixa relacionada com a Worldcoin. Mas é um “assunto que preocupa, sobretudo por ser uma situação um bocadinho anómala”, diz Luís Pisco, jurista da DECO. “Duvido, até, que quem fez esta transação tenha sido devidamente informado sobre o tratamento dos seus dados”, acrescenta, assumindo que a associação não tem mantido contacto com a CNPD, mas acreditando que a comissão pode vir a tomar a mesma decisão da sua congénere espanhola.

Como prevenir situações semelhantes no futuro?  “Isto previne-se não acontecendo. A par do desenvolvimento tecnológico que está a existir e da introdução da inteligência artificial nas novas tecnologias, há uma cada vez maior disparidade do que é a tecnologia que entra para nós adentro - neste caso literalmente. Com a introdução das tecnologias ligadas à inteligência artificial, hoje em dia é quase impossível para um consumidor, seja mais ou menos informado, conseguir prevenir eventuais violações dos seus direitos (...) Os consumidores devem ter muita atenção a quem fornecem os dados. Não devem, de alguma forma, dar o seu consentimento sem que antes lhes seja muito bem fundamentado a razão dessa recolha e tratamento, e além do mais, devem ter sempre presente o direito de que a qualquer momento podem retirar o seu consentimento.”

O que é a Worldcoin?

A Worldcoin é uma criptomoeda criada em 2019, por uma empresa maior (Tools for Humanity). Sam Altman, presidente executivo da OpenAI (criadora do ChatGPT), este envolvido nesse processo. Em 2022, foi anunciado um investimento de 115 milhões de dólares para o projeto de combate de bots no universo digital. A criptomoeda não chegou a entrar nos mercados, nos Estados Unidos, por suspeitas de que seria utilizada para propósitos fradulentos. No Quénia (onde já estava em circulação), também houve essa decisão, devido sobretudo a razões de privacidade. Há ainda uma Fundação Worldcoin, que está sediada nas Ilhas Caimão, com uma subsidiária nas ilhas Virgens Britânicas.

rui.godinho@dn.pt