Arte
18 maio 2024 às 09h18
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Weiwei construiu um edifício “sem propósito” em Montemor-o-Novo, mas ainda não chama “casa” ao Alentejo

A viver em Portugal desde 2021, o artista chinês tem uma exposição na galeria São Roque em Lisboa, mas foi para ver o ateliê que projetou no Monte da Boa Vista que convidou um grupo de jornalistas. No seu refúgio alentejano falou de eixos desalinhados, da sua vida “estilhaçada” e de um sítio para caminhar “sem roupa”.

"Há dois ou três anos percebi que tinha de construir algo aqui. Senão, era como viver num hotel”, explica Ai Weiwei enquanto percorre o caminho de terra batida que separa a casa principal do Monte da Boa Vista do seu novo ateliê. Quem sai de Montemor-o-Novo em direção a Coruche, e depois de passar por cima do auto-estrada, talvez nem repare na enorme estrutura de madeira e tijolo que espreita por detrás das árvores. O edifício, projetado pelo artista chinês que desde 2021 fez desta cidade alentejana a sua residência, está quase pronto e é uma réplica quase exata do que construíra em Xangai e que as autoridades chinesas mandaram destruir em 2010. 

“O edifício não tem pregos, não tem metal. É todo encaixado, toda a estrutura tem umas juntas especiais”, explica Weiwei ao grupo de jornalistas vindo de Lisboa para conhecer o seu retiro alentejano. De pé no centro do enorme edifício totalmente vazio, ainda com o blusão verde por cima da roupa de um branco imaculado com que mais tarde se deixaria fotografar, o artista olha para os pilares e as vigas de madeira e aponta para o teto: “O que fiz foi rodar o teto um grau e isso cria uma grande confusão porque todas as juntas ficam desalinhadas. Veem, os eixos estão desalinhados das vigas”, explica, antes de garantir que usou materiais “locais” - o que para alguém nascido num país com 9,6 milhões de km2 vai desde o mármore alentejano usado no soalho aos pequenos tijolos portugueses, mas também ao pinho francês que compõe a estrutura de vigas e pilares. “Limitei-me a fazer isso. Ser subversivo. Ordem e desordem obrigadas a conviver. Acho que seria um excelente método político, mas ninguém me pede para ser um político”, acrescenta. 

Leonardo Negrão / Global Imagens

Fica a achega política do ativista cujas críticas ao governo de Pequim já lhe valeram a prisão. Mas o que é que trouxe Weiwei, muitas vezes apresentado como o maior artista chinês, a instalar-se em Montemor? É sentado no alpendre da casa, com a piscina ali ao lado - menos convidativa do que seria de esperar por este ser um dia fresco e nublado, uma raridade nesta época por estas bandas - que Weiwei conta o dia em que foi ao mercado e “uma senhora diz-me ‘conheço-o! Explique-me, de todas as cidades onde podia viver porque é que veio para o Alentejo?’ E eu não sei responder. Ainda tenho de descobrir o porquê”. Mas se não sabe bem como veio parar, aos 66 anos, Weiwei sabe que gosta de quase tudo por aqui: a natureza, o sol, mas, sobretudo, as pessoas. “As pessoas aqui são muito descontraídas e muito simpáticas. Trabalham muito, são muito honestas”, diz. 

E quando, aproveitando mais tarde uma pausa de Weiwei debaixo de uma das árvores que ladeiam o caminho até ao ateliês lhe confesso ser eu própria de Montemor, onde os meus pais ainda vivem, o artista não esconde que o surpreende o número de alentejanos que vai conhecendo. “Há imensa gente a dizer-me que é do Alentejo. Espantoso, um sítio tão pequeno”. Mais uma vez, há aqui um relativismo chinês perante os “meros” 31 mil km2 desta região. 

Mas será que encontrou novas raízes em Portugal? Weiwei garante que nunca teve “um lugar a que chamasse casa, nem mesmo na China.” Nascido em Pequim em 1957, tinha apenas um ano quando o pai, o famoso poeta Ai Qing, foi exilado. “Cresci numa região muito remota, um campo árido, no Xinjiang, que é a região dos uigures”, explica, num tom de voz pausado e no seu inglês aperfeiçoado nos 12 anos que passou nos Estados Unidos, antes de regressar à China em 1993. O pai de Weiwei estudou em Paris nos anos 1930, fez parte do movimento comunista de Mao Tse-tung, tendo sido preso pelo governo nacionalista e, anos mais tarde, mandado, já pelo governo comunista, para um exílio de duas décadas, que só terminou com o fim da Revolução Cultural.

Hoje Weiwei garante: “o Alentejo é o sítio que escolhi. E por isso decidi que tinha de construir qualquer coisa aqui” - o ateliê, ali a pouco mais de cinco minutos a pé da casa. Mas se há uma coisa que Weiwei - que em 2011 passou 81 dias numa prisão chinesa e viu o passaporte apreendido, tendo-lhe sido devolvido quatro anos depois, quando se exilou em Berlim - aprendeu é a nunca ter certezas de nada. “Não sei se vou ficar aqui para sempre. Para sempre, para mim, podem ser só mais uns anos”, vai dizendo, antes de acrescentar: “Talvez amanhã me mude para outro lugar. Deixe tudo aqui e mude. Talvez. Não tenho o privilégio de dizer que esta é a minha casa”. 

Depois de Berlim, que deixou em 2019 por considerar que a Alemanha “não é uma sociedade aberta”, indo instalar-se em Cambridge, no Reino Unido, que acabaria por trocar por Montemor, apesar de o continuar a ir lá com frequência, uma vez que é onde o filho, de 15 anos, está a estudar. “A minha vida está bastante estilhaçada”, resume Weiwei, comparando-se a uma “ruína romana” - “encontramos uma peça que pode pertencer a um pilar ou um edifício, mas não conseguimos voltar a montar tudo. Para mim, é muito difícil unir a minha vida”.

Leonardo Negrão / Global Imagens

Enquanto a vida não o leva para outras paragens, é no Monte da Boa Vista que vive, numa casa onde, garante, não tocou na decoração. “Não vejo o meu trabalho como uma coisa que se pendura na parede. Esta conversa pode ser o meu trabalho, ou o edifício do ateliê pode ser o meu trabalho. As pessoas ficam surpreendidas por eu não ter obras minhas em casa. Nunca tive obras minhas penduradas nos meus ateliês. Eu sou a obra. O resto podem ver em museus ou galerias”, explica. Quanto à casa, “a decoração é a do dono anterior. Mesmo no meu quarto os quadros são os que ele deixou - umas aguarelas, talvez compradas numa viagem turística à Grécia ou assim. Até tem lá uma imagem de Buda, não mexi em nada!” A única coisa que fez antes de se mudar foi mandar limpar e pintar tudo - “mas voltaram a pôr tudo no lugar”. E quem passa pelos corredores reparará, de facto, na ausência de obras de Weiwei, encontrando antes várias peças em cortiça, provavelmente também elas uma “herança” do dono anterior.

E estes anos no Alentejo já inspiraram a sua arte? É com o mesmo tom de voz sereno que responde: “acho que a arte tem de ser a vida. A vida tem de ser arte. Caso contrário a arte não vale a pena”. 

Vazio, sem qualquer obra à vista está também o ateliê, cuja construção pôs à prova toda a paciência do artista, confrontado com a burocracia portuguesa.  E também aqui Weiwei, sempre seguido pelos seus dois rafeiros alentejanos brancos e cinzentos, mostra o seu desprendimento: “Não preciso de um edifício. As pessoas às vezes perguntam-me: ‘é para quê?’ E eu respondo: ‘para nada’. Sou um homem sem propósito, com um edifício sem propósito, o que é agradável”. Para já a única finalidade que lhe tem dado é “todos os fins de tarde, venho caminhar para aqui. Preciso de um sítio muito plano para caminhar, porque quando se é velho é preciso um terreno plano. E não há aqui ninguém. Posso andar sem roupa. Aqui no Alentejo o tempo é bom para andar sem roupa”. 

Porcelanas e retratos com LEGO para ver em Lisboa

Leonardo Negrão / Global Imagens

Se em Montemor a única obra de arte de Weiwei que podemos ver é mesmo o próprio, quem sabe numa qualquer ida ao mercado, quem quiser apreciar as obras do artistas chinês pode ir até Lisboa, à Galeria São Roque, onde até 31 de julho está patente a exposição Paradigm, onde se podem ver 17 peças, sobretudo em porcelana, mas também uma nova série de retratos feitos com peças de LEGO. 

Sentado no alpendre, ao lado de Mário Roque, proprietário da Galeria São Roque, Weiwei lembrou que “a porcelana é o mais antigo produto humano”. Trata-se, garantiu, de “um produto artificial que atingiu uma qualidade muito elevada desde tempos muito antigos, talvez desde o tempo das cavernas, e, até hoje, ainda usamos porcelana. É claro que muitas são substituídas por plástico, mas, ainda assim, a porcelana detém uma qualidade muito especial.”

Já Mário Roque destaca a importância da porcelana na relação entre a China e Portugal, com os portugueses a terem sido os primeiros a trazer porcelana chinesa para a Europa, provocando uma revolução. Portugal trouxe o branco e o azul da China”, levando a faiança portuguesa a ser “comprada e divulgada por toda a Europa e pelo mundo”. E o azul-cobalto até serviu para os azulejos portugueses, “um objeto icónico”, pelo que é clara a fusão de culturas, frisou.