Numa minissérie relativamente recente, vemos uma jovem, a própria protagonista, a tentar travar conversa com um rapaz que se destaca no meio de um ambiente de festa... por estar a ler um livro. Quando se encontram a sós, retirados da animação dentro do bar, e ela lhe pergunta sobre o objeto da sua leitura, ele responde que está a reler A Metamorfose, “sobre um homem que um dia acorda e se dá conta de que é um inseto”. Di-lo com uma certa presunção intelectual, acrescentando que o autor do livro era um “visionário”, tópico pouco entusiasmante para a pobre rapariga que, com ar de arrependimento, se limita a oferecer um gole na sua garrafinha de whisky, antes de correr para junto das amigas impelida pela consciência instantânea de que escolheu mal o engate. Mais tarde, este estranho primeiro encontro dá frutos; mas entretanto já se colou a ideia de que o “autor visionário”, Franz Kafka (1883-1924), não combina com o romantismo exigido pelas circunstâncias. É, pelo menos, isso que sugere a sua referência...
Obviamente, a cena descrita tem o seu quê de caricatura - pertence a Uma Pequena Luz (Disney+), série sobre Miep Gies, a secretária do pai de Anne Frank que ajudou esta família a esconder-se no anexo durante a ocupação nazi -, mas diz algo sobre o sentimento geral suscitado pela literatura de Kafka. Senão vejamos, por que razão relia o jovem A Metamorfose? Porque estava a passar um mau bocado.
Clichés mais ou menos inofensivos como este são agora colocados em perspetiva no notável volume Sobre Franz Kafka, editado pela Relógio D’Água (tradução de Susana Schnitzer da Silva e Ana Falcão Bastos), que reúne os três escritos fundamentais de Max Brod sobre esse seu contemporâneo e amigo próximo: Franz Kafka, Uma Biografia, A Fé e a Doutrina de Franz Kafka e Desespero e Redenção na Obra de Franz Kafka. Um livro da autoria do executor testamentário desse ícone checo de língua alemã a surgir no ano do centenário da morte, a 3 de junho, em jeito de reflexão sobre o lugar da sua obra num mundo que, segundo Brod, reteve mais facilmente os elementos “excêntricos” da sua literatura do que a luz escondida na escuridão das suas palavras.
Sobre Franz Kafka junta-se assim a um conjunto de discretas ações comemorativas, um pouco por toda a parte, como a produção de uma série alemã (que não chegou cá) ou o anúncio de um filme biográfico, assinado por Agnieszka Holland (com estreia em 2025), para além de reedições dos títulos mais conhecidos e um pequeno ciclo de cinema organizado, no início do ano, pelo Goethe-Institut, no âmbito do festival KULTURfest. Sendo que, neste contexto, a compilação dos escritos de Max Brod são a verdadeira novidade editorial no mercado português, acrescentando uma camada humana de conhecimento e análise literária aos traços largos da biografia de Kafka, desde o nascimento à morte, por tuberculose, um exato mês antes de completar 41 anos.