Livro
20 julho 2024 às 09h59
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Um amigo chamado Kafka

No ano do centenário da morte do autor de A Metamorfose, a Relógio D’Água acaba de lançar um dos mais completos testemunhos acerca da sua personalidade. ´Sobre Franz Kafka' é muito mais que uma biografia – o amigo Max Brod escreve a partir do lugar da intimidade.

Numa minissérie relativamente recente, vemos uma jovem, a própria protagonista, a tentar travar conversa com um rapaz que se destaca no meio de um ambiente de festa... por estar a ler um livro. Quando se encontram a sós, retirados da animação dentro do bar, e ela lhe pergunta sobre o objeto da sua leitura, ele responde que está a reler A Metamorfose, “sobre um homem que um dia acorda e se dá conta de que é um inseto”. Di-lo com uma certa presunção intelectual, acrescentando que o autor do livro era um “visionário”, tópico pouco entusiasmante para a pobre rapariga que, com ar de arrependimento, se limita a oferecer um gole na sua garrafinha de whisky, antes de correr para junto das amigas impelida pela consciência instantânea de que escolheu mal o engate. Mais tarde, este estranho primeiro encontro dá frutos; mas entretanto já se colou a ideia de que o “autor visionário”, Franz Kafka (1883-1924), não combina com o romantismo exigido pelas circunstâncias. É, pelo menos, isso que sugere a sua referência...  

Obviamente, a cena descrita tem o seu quê de caricatura - pertence a Uma Pequena Luz (Disney+), série sobre Miep Gies, a secretária do pai de Anne Frank que ajudou esta família a esconder-se no anexo durante a ocupação nazi -, mas diz algo sobre o sentimento geral suscitado pela literatura de Kafka. Senão vejamos, por que razão relia o jovem A Metamorfose? Porque estava a passar um mau bocado.  

Clichés mais ou menos inofensivos como este são agora colocados em perspetiva no notável volume Sobre Franz Kafka, editado pela Relógio D’Água (tradução de Susana Schnitzer da Silva e Ana Falcão Bastos), que reúne os três escritos fundamentais de Max Brod sobre esse seu contemporâneo e amigo próximo: Franz Kafka, Uma Biografia, A Fé e a Doutrina de Franz Kafka e Desespero e Redenção na Obra de Franz Kafka. Um livro da autoria do executor testamentário desse ícone checo de língua alemã a surgir no ano do centenário da morte, a 3 de junho, em jeito de reflexão sobre o lugar da sua obra num mundo que, segundo Brod, reteve mais facilmente os elementos “excêntricos” da sua literatura do que a luz escondida na escuridão das suas palavras.  

Sobre Franz Kafka junta-se assim a um conjunto de discretas ações comemorativas, um pouco por toda a parte, como a produção de uma série alemã (que não chegou cá) ou o anúncio de um filme biográfico, assinado por Agnieszka Holland (com estreia em 2025), para além de reedições dos títulos mais conhecidos e um pequeno ciclo de cinema organizado, no início do ano, pelo Goethe-Institut, no âmbito do festival KULTURfest. Sendo que, neste contexto, a compilação dos escritos de Max Brod são a verdadeira novidade editorial no mercado português, acrescentando uma camada humana de conhecimento e análise literária aos traços largos da biografia de Kafka, desde o nascimento à morte, por tuberculose, um exato mês antes de completar 41 anos.   

Max Brod, o biógrafo e executor testamentário de Kafka.

Um requinte principesco

Comecemos pelo físico e presença deste judeu de Praga, que na capa do livro, em vez da tradicional fotografia a preto e branco, vem revestido de uma coloração de pintura “realista”. Será uma forma de sinalizar a prosa de Brod como o grau máximo de proximidade das cores do amigo?
  “À primeira vista, Kafka era um jovem saudável, embora notavelmente calmo, observador e reservado. As suas tendências mentais de modo nenhum se inclinavam para o doentio, ainda que interessante, para o bizarro ou o grotesco, mas sim para a grandiosidade da natureza e para o que há de salutar, firme e simples”, “(...) a pessoa em si exercia influência (...), apesar de toda a sua modéstia de porte”, lê-se no início das memórias de Brod, que se tornou confidente do futuro escritor nos tempos da universidade. Três centenas de páginas mais à frente: “Quero aqui de novo evocar a figura do meu amigo: magro, alto, um tanto curvado, os olhos cinzentos, brilhantes e audazes, a tez morena (...), um sorriso simpático e delicado, quando, por vezes, uma expressão distraída e tristonha não lhe ensombrava o belo rosto de feições bem acentuadas (...), de um requinte principesco - é assim que o evoco.”  

Estas descrições da aparência e aura de Kafka não são apenas um fator de curiosidade. De cada vez que Max Brod recorre às marcas específicas da presença do biografado está a imprimir no leitor a noção de que a forma de estar e linguagem corporal dele eram indissociáveis de uma essência que passou para a sua arte, sem que a maioria dos “comentadores” da obra, como lhes chama o autor, tenha conseguido ultrapassar a barreira de certas impressões superficiais - ou leituras apressadas à luz de fenómenos do tempo - que, grosso modo, definiram o “kafkiano”, esse adjetivo quotidianamente usado no discurso mediático para caracterizar situações absurdas e intoleráveis.  
O que se entende por kafkiano, sobretudo na medida dos romances publicados postumamente, O Processo e O Castelo, está hoje um pouco mais esclarecido do que à época em que Brod escreveu as suas dissertações sobre o amigo. Porém - e como se verifica pelo exemplo com que abri este texto -, é verdade que persiste um lugar-comum negativo e pessimista onde se deveria vislumbrar alguma redenção. Diz Brod a páginas tantas: “(...) a totalidade da obra de Kafka, que expõe, transido de dor, o anão mecânico ‘homem’, isolado no mundo moderno, sem amor, reduzido a si mesmo, na sua solidão, no isolamento entre os seus semelhantes - a totalidade dessa obra não é senão uma perífrase de um enunciado fundamental do Antigo Testamento: Ama o teu próximo como a ti mesmo.”     

A burocratização da existência

Defensor acérrimo do que se pode chamar a “alegria” de Franz Kafka no mundo e na vida, é claro que o autor não deixa de reconhecer a nuvem da depressão que envolve esta obra. Mas ao fazê-lo, situa-nos naquilo que foi a evolução do perfil do amigo dentro das condicionantes do cenário familiar, do trabalho como jurista na Companhia de Seguros para Operários (que limitou a sua verdadeira vocação para a literatura), dos sucessivos noivados e da consciência da morte, que veio com a deterioração progressiva da saúde. Ainda assim, os últimos anos de vida correspondem a uma das fases mais bonitas do espírito de Kafka, embelezada pelo amor de Dora Dymant - voltaremos a ela.  
Portanto, a modernidade que se evidencia em qualquer livro de Kafka, partindo de uma absoluta exigência pessoal (necessidade de perfeição) cuja ironia se mistura com um sofrimento solitário, traduz-se na tal dimensão visionária da sociedade de massa, que burocratiza a existência a um ponto irresolúvel. Esse aspeto dominador, no sentido da base da sua popularidade, mas também a manifestação subtil do judaísmo na sua letra - ou a particularidade da sua fé -, assim como os detalhes mais quotidianos, a sua paixão por autores como Flaubert, as viagens, passeios e intensa prática de correspondência, a análise da ficção e dos aforismos, tudo isso preenche as páginas de Sobre Franz Kafka, com a qualidade singular do élan emocional. 

A verdade é que o empenho de Brod em descortinar o fascínio humano de Kafka (génio que recusou votar ao esquecimento, publicando o que este lhe pedira para destruir), num tempo em que a “tralha” das interpretações equívocas se começavam a sobrepor à pureza que ele conheceu desde o princípio, longe do olhar do público, torna esta edição valiosíssima no registo de um ponto de vista íntimo, capaz de identificar com ternura aquilo que a frieza das lentes contemporâneas não alcança. E nessa atitude, que implica igualmente uma reflexão contínua sobre o ato de biografar, capta-se a justeza de um labor que, acima de tudo, só quer firmar a ideia de que “não se pode separar o conteúdo da estrutura”, ou seja, “a mestria estilística especial é não só um fenómeno estético, mas também moral, e a consequência da extrema honestidade de Kafka.” 

A história da boneca

Um dos episódios que demonstram às claras a tão defendida bondade do escritor é a (muito comovente) história real de uma boneca. Foi já no seu último ano de vida que, um dia, passeando no parque de Steglitz em Berlim com a sua amada companheira Dora Dymant, encontrou uma menina a chorar. Perguntou-lhe porque estava triste e ela contou que perdera a sua boneca; ao que Kafka, segundo o relato de Dora, negou esse desaparecimento, para espanto da criança. “Foi só viajar”, disse-lhe ele. “Ainda há pouco a encontrei e falei com ela. Prometeu-me enviar-te uma carta. Amanhã a esta hora vem aqui que eu trago-ta.” E assim aconteceu: o então desconhecido literato passou a escrever, ao longo de semanas, as cartas da boneca, até ser obrigado a mudar-se para o destino final (o sanatório), tendo ainda conseguido deixar à menina uma boneca apenas “transformada” pelos ares das viagens…  
Esta história não se encontra em nenhum dos seus livros, mas há uma curta de animação de Bruno Simões que a narra em imagens. Chama-se A Boneca de Kafka (2022) e pode ser vista na plataforma Filmin. Fica a dica.  

Sobre Franz Kafka
Max Brod
Relógio D'Água Editores
440 páginas