Ciência Vintage
15 abril 2024 às 06h56
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Dorothy Gibson, a sobrevivente a dois naufrágios do Titanic

A madrugada de 15 de abril de 1912 assinalou uma tragédia sem precedentes. Em três horas um colosso dos mares afundou-se. Perto de 1500 vidas sucumbiram ao naufrágio do Titanic. Entre os sobreviventes encontrava-se a atriz Dorothy Gibson. Um mês após o desastre, Dorothy encenou no cinema a sua experiência no naufrágio.

Na madrugada de 15 de abril de 1912, “o mar parecia vidro, tão suave que as estrelas estavam nele claramente refletidas”, assim escreveu Archibald Gracie IV, escritor, historiador amador e empresário. Poucas horas volvidas, o mesmo mar setentrional, 650Km a leste da Terra Nova, entraria num tumulto de aço, ferro, madeiras e vidas. Às 2.20, perto de 46 000 toneladas de peso bruto, sob a forma de um transatlântico, inclinavam-se num ângulo mortal de 45 graus e desciam a pique num mar coalhado de gelo. A queda rumo ao fundo do Atlântico Norte, 3795 metros sob as ondas oceânicas, fez-se em poucos minutos.

É por demais conhecido o fado do RMS Titanic, com os seus 260 metros de comprimento, 53 metros de altura e motores com estatura de 12 metros. A viagem inaugural entre os portos de Southampton, no Reino Unido, e de Nova Iorque, nos Estados Unidos da América, terminou num torvelinho de tragédia, com perto de 1500 mortes. Sobre os segundos finais, antes do silêncio nas águas geladas, escreveram-se as seguintes palavras: “Os gritos dos que pediam ajuda permanecerão na minha me- mória até ao dia em que eu morrer.”

As palavras entregues às páginas da revista Motion Picture News, na edição de 27 de abril de 1912, são creditadas a Dorothy Gibson. A atriz, modelo e dançarina americana não só testemunhou in loco o naufrágio do Titanic, como reiterou na tragédia: 31 dias decorridos sobre o confronto do icebergue com o colosso da engenharia naval do século XX, a debutante da 7.ª Arte levava ao ecrã a recriação do momento.

Dorothy Gibson, nascida em Nova Jersey no ano de 1889, protagonizou a película Saved From the Titanic, obra de dez minutos, filha do cinema mudo. A primeira entre muitas dramatizações da tragédia suscitou louvores, mas também críticas e fez de Dorothy a única mulher que sobreviveu duas vezes à tragédia do Titanic, uma real, outra ficcionada.

A vida da heroína do filme saído dos estúdios de cinema Éclair, também escreveu alguns capítulos dignos de uma obra de ficção. De modelo-fetiche do ilustrador norte-americano Harrison Fisher, autor de inúmeras capas das revistas Cosmopolitan e Saturday Evening Post, Dorothy Gibson singrou nos palcos, no cinema e protagonizou uma fuga de uma prisão italiana no decorrer da Segunda Guerra Mundial.

Em 1909, encontramos Dorothy a trabalhar como modelo para publicações comerciais. O rosto da jovem de 20 anos ilustrava o ideal feminino da época. Harrison Fisher materializava esse ideal em pinturas sumptuosas. Gibson, então uma estrela em ascensão no cinema e também cantora em teatros de Vaudeville, entregava às capas das revistas femininas uma aura de charme.

Fora do circo mediático, a atriz saía de um casamento com George Battier Jr.. Em 1911, Dorothy encanta-se por Jules Brulatour, magnata do cinema, cofundador dos estúdios da Universal Pictures, casado com Clara Blouin. Com Jules, Dorothy viria a casar-se em 1917 para se divorciar pouco depois.

No início dos anos de 1910, Gibson recebia críticas favoráveis pela sua participação em comédias. Em 1912, a atriz empreenderia um périplo europeu culminando numas férias mediterrânicas, em Itália. Uma chamada dos Estados Unidos com a proposta de um novo projeto cinematográfico atrairia a jovem Dorothy para um camarote de 1.ª classe no Titanic.

Na noite fatídica, a atriz jogava bridge num dos sumptuosos salões do paquete. Algumas dezenas de metros abaixo, a ponta de um icebergue trilhava 91 metros de casco a bombordo. Nos 40 minutos seguintes, 13 700 toneladas de águas gorgolejavam no interior do navio. Dorothy teria nessa noite de 15 de abril um encontro com o primeiro barco salva-vidas a abandonar o Titanic, o n.º 7. Às 00.40, 28 passageiros e tripulantes sentiram o embate do salva-vidas nas águas do Atlântico.

Com Dorothy entraram na pequena embarcação um punhado de famosos, entre eles Pierre Maréchal, aviador francês; Alfred Nourney, hedonista neerlandês e Margaret Bechstein Hays, ilustre na sociedade nova-iorquina, que assumiria mais tarde o cuidado daquelas que ficaram conhecidas como as duas crianças órfãs do Titanic, Michel e o seu irmão Edmond. Nas quatro horas seguintes ao naufrágio, restou aos ocupantes do salva-vidas suportar o frio glacial até à chegada do navio Carpathia, na sua colheita de almas sobreviventes.

Dorothy Gibson regressou a Nova Iorque com uma história para contar. Jules Brulatour, dono dos estúdios Éclair quis transpô-la para filme. A atriz foi convocada a escrever o guião. A premência de estrear no cinema a recriação da história que chocava o mundo obrigou a filmagens em tempo recorde. Uma semana foi quanto bastou para ilustrar um enredo que envolvia Dorothy Gibson a interpretar-se a si mesma e a contracenar com pais e um noivo fictícios.

As filmagens nos estúdios em Fort Lee e no Porto de Nova Iorque, intercalavam imagens diversas de icebergues, do lançamento à água do Titanic; do seu comandante, Edward Smith e do navio irmão, o Olympic. Dorothy contracenava com a roupa que usara na madrugada fatídica, um vestido de noite branco, tecido a seda, coberto com um casaco de lã.

Os Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha renderam-se ao filme. O presidente dos Estados Unidos, William Howard Taf, recebeu uma cópia da película. As receitas de bilheteira evidenciavam o filão comercial do filme. Na imprensa, a revista Motion Picture News tecia louvores à obra: “Maravilhosos efeitos mecânicos e de iluminação do filme, cenas realistas, reprodução perfeita e verdadeira história da viagem fatídica.”

Ainda em maio de 1912, a publicação Moving Picture World escrevia a propósito de Gibson: “Uma atuação única no novo filme sensacional da Éclair Company”. Outros, porém, como a revista New York Dramatic Mirror, criticavam o oportunismo do filme, realizado aos ombros da dor dos sobreviventes. Gibson defendeu-se: “O filme é a oportunidade de prestar homenagem àqueles que deram as suas vidas naquela terrível noite.”

Dorothy só reiteraria frente às câmaras na série The Revenge of the Silk Masks. Na Europa, onde se radicaria nos anos seguintes, a americana foi acusada de simpatizante do nazismo, algo que refutou. Em Itália, seria presa sob a acusação de agitadora antifascista. Dorothy Gibson, a par de outros dois presos, evadiu-se da cadeia de San Vittore, em Milão, apoiados pela Fiamme Verdi, uma organização de resistência partidária de orientação católica romana.

Os últimos dois anos de vida de Dorothy Gibson fizeram-se sob os céus de Paris. A sobrevivente ao naufrágio do Titanic sucumbiria a um ataque cardíaco em 1946. Tinha 56 anos. Para a posteridade, o único filme de Gibson que sobreviveu foi a comédia de 1912, The Lucky Holdup.

Saved From the Titanic  afundar-se-ia num mar de fogo em 1914, num incêndio que deflagrou nos estúdios Éclair. Da película entraram no barco salva-vidas do tempo apenas alguns pósteres, umas quantas fotografias e as críticas na imprensa.