Francês, nascido em 1997, editor da revista La Règle du Jeu, dirigida por Bernard-Henri Lévy, Nathan Devers é alguém que arrisca “pensar contra si próprio”. A expressão serve-lhe, aliás, de título a um belo livro auto-biográfico - Penser contre soi-même (ed. Albin Michel, Paris, 2024) -, de uma só vez uma reflexão multifacetada sobre as suas raízes judaicas e uma procura do que é, ou pode ser, um pensamento ativo e despreconceituoso, intelectual e carnal. A saber: “Pensar com as suas recordações e as suas apreensões, com as suas emoções, pensar com as suas tripas e o seu imaginário, as suas leituras e os seus divertimentos, os seus risos e os seus aborrecimentos, as suas dúvidas e os seus prazeres.”.Encontramos, aqui, a herança de Roland Barthes (1915-1980), do seu “prazer do texto” e da literatura “como religião”. E também, claro, do filósofo romeno E. M. Cioran (1911-1995), cuja abertura de A Tentação de Existir (ed. Relógio d’Água, 1988) se intitula, justamente, “Pensar contra si próprio”: “Mestres na arte de pensar contra si próprio, Nietzsche, Baudelaire e Dostoievski ensinaram-nos a apostar nos nossos perigos, a alargar a esfera dos nossos males, a ganhar existência através da divisão interna do nosso ser.”.Nathan Devers é também autor de um romance fascinante, Les Liens Artificiels (ed. Albin Michel, 2022), centrado na personagem de Julien Libérat, um professor de piano frustrado, embrenhado no desejo de concretizar uma composição cuja consistência lhe vai escapando. Dir-se-ia uma aventura de ficção científica, com Liberát a enredar-se no “Anti-mundo”, um site, ou melhor, uma experiência digital vocacionada para fornecer a cada um dos seus utilizadores a suprema ilusão de uma “duplicação” do planeta Terra em que todos os seus desejos são concretizáveis..'Modern Narcissus' (2015), de Dan Cretu..A noção de ficção científica vai-se desmanchando através de uma evidência muito básica: Les Liens Artificiels não fala do futuro, mas do nosso presente e da sua vertigem “social”. O próprio autor apresenta assim o seu livro: “Era preciso contar a história desta espiral. A espiral daqueles que andam às voltas entre o virtual e a realidade. Que se perdem à medida que desaparece a fronteira entre os ecrãs e as coisas, as miragens e o real, o mundo e as suas redes. É o círculo vicioso de uma geração que se liga a tudo, exceto à vida.”.Os “laços artificiais” do título serão um eco dos “paraísos artificiais” de Baudelaire, mas também, arrisco, das “ligações perigosas” que Laclos retratou no seu lendário romance epistolar, tão antigo quanto moderno - recorde-se que a primeira edição de As Ligações Perigosas data de 1782, tendo dado origem a várias versões cinematográficas, incluindo a que Stephen Frears dirigiu em 1988, com Glenn Close, John Malkovich e Michelle Pfeiffer..As ligações humanas são metodicamente desumanizadas, de tal modo o incauto protagonista de Les Liens Artificiels se dissolve na delirante oferta de imagens e ecrãs que mobilizam a sua identidade virtual, tratando-o como dono do mundo: “As imagens passam tão depressa que já não há movimento.” O homem torna-se um zombie, um “homem-zombie”, perdido no apoteótico vazio do seu narcisismo..A capa do livro faz-se com uma sugestiva ilustração, datada de 2015, assinada por Dan Cretu, pintor (ou devemos dizer: anti-pintor?) que se especializou em criar imagens (anti-pinturas?) que combinam referências de quadros célebres com elementos da nossa existência quotidiana. Trata-se, neste caso, de um “Narciso moderno” concebido a partir de Eco e Narciso, pintura de 1903, do inglês John William Waterhouse, ilustrando o mito de Eco e Narciso - este último alheia-se da figura feminina, observa a água e apaixona-se pelo seu reflexo..Que faz Dan Cretu? Pois bem, respeita a composição de Waterhouse, “apenas” com uma diferença: agora, Narciso contempla a sua imagem num ecrã de telemóvel. Eis o amor de perdição do herói de Nathan Devers: “Bem-vindos ao Anti-mundo!”