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Sociedade
04 setembro 2024 às 00h00
Atualizado em 04 setembro 2024 às 08h24
Leitura: 11 min

Discurso de ódio na GNR e PSP. 591 suspeitos, 13 processos disciplinares, 6 castigados

A IGAI concluiu os processos disciplinares instaurados a 6 militares da GNR e 7 polícias da PSP. A decisão foi despachada pela ministra Margarida Blasco, que agravou algumas das penas propostas. A PJ está a inquirir os 13 e já constituiu arguidos. A amnistia do Papa livrou cinco.

A Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) propôs a condenação para oito dos 13 polícias que foram alvo de processos disciplinares por publicarem em redes sociais comentários racistas, xenófobos, misóginos e homofóbicos.

Há agentes, agentes principais e dois chefe da PSP; guardas, guardas principais e um cabo da GNR. As penas variam entre repreensão escrita agravada e uma suspensão de 120 dias efetiva. 

Cinco dos polícias, apesar de a IGAI ter considerado que também infringiram o Regulamento Disciplinar, não vão ser sujeitos a sanções porque as penas em causa os abrangeram pela Lei da Amnistia decretada por ocasião da visita do Papa Francisco em 2023.

O despacho da ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, foi concluído e remetido à IGAI. De acordo com informação obtida pelo DN, Blasco não terá ficado totalmente satisfeita com todas as medidas propostas, tendo agravado algumas das penas e, em três casos, pedido para serem revistas as acusações (uma das amnistias e duas repreensões escritas agravadas). 

Estes 13 processos disciplinares foram instaurador pela IGAI 14 meses depois de uma investigação de um consórcio de jornalistas, publicada em novembro de 2022 em vários órgãos de comunicação social (Expresso, na Visão, no Público, na SIC e no site Setenta e Quatro), ter denunciado 591 perfis de polícias (295 de militares da GNR e 296 de agentes da PSP) que propagavam mensagens “contrárias ao Estado de Direito, apelos à violência e à violação de mulheres, comentários racistas, xenófobos, misóginos e homofóbicos, simpatia pelo Chega e por outros movimentos de extrema-direita e saudosismo salazarista”.

PJ constituiu arguidos

A investigação jornalística - com o nome “Quando o ódio veste farda” - levou também à abertura de um inquérito-crime que o Ministério Público (MP) entregou à Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da Polícia Judiciária (PJ).

Conforme o DN já noticiou, o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, titular do do inquérito, considerou que a informação reunida pelo consórcio de jornalistas e disponibilizada às autoridades - com os nomes de todos os visados e as respetivas publicações copiadas de grupos privados de redes sociais - tinha sido obtida de forma ilegítima, sendo suscetível de enquadrar uma “ação encoberta não-autorizada” e, por isso, nunca seria aceite em tribunal.

Esta decisão criou constrangimentos na investigação criminal e a UNCT visou também os 13 elementos das forças de segurança que a IGAI tinha identificado no âmbito dos processos disciplinares, com base em fontes abertas, com as pistas ainda disponíveis nas páginas públicas dos polícias. Fonte judicial garantiu que os polícias já foram inquiridos e a maior parte constituída arguida, não querendo precisar o número.

O crime em causa enquadra-se no artigo 240.º do Código Penal, de “discriminação e incitamento ao ódio”, que determina penas de seis meses a cinco anos a quem faça a apologia à “discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas em razão da sua origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem, religião, língua, sexo, orientação sexual, identidade ou expressão de género ou características sexuais, deficiência física ou psíquica”.

PSP com penas mais graves

São da PSP os três polícias com as penas mais graves: um chefe com 45 dias de suspensão, suspensa por dois anos; um agente principal com 90 dias de suspensão, suspensa por dois anos; e outro agente principal com 120 dias de suspensão efetiva. Este último partilhou uma publicação, com fotos de casais multirraciais, na qual valorizava a supremacia do “homem branco” e se insurgia em relação à “substituição” dos “povos nativos europeus” por “pretos e mulatos”, bem como comentários homofóbicos.

O chefe partilhou vários comentários racistas, incluindo em relação à antiga deputada do Livre Joacine Katar Moreira e escreveu sobre uma medida de 2020, do então ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, destinada a admitir mais mulheres na PSP, que se tratava de uma decisão para levar para as polícias pedófilos, traficantes.

Em relação ao agente principal com pena de suspensão, publicou comentários contra a etnia cigana, incentivando à violência e à morte.

Os outros polícias publicaram também comentários que colocam em causa deveres definidos no estatuto disciplinares, como o dever de isenção, imparcialidade e o de respeitar os princípios de igualdade e não-discriminação consagrados na Constituição.  Publicações contra a etnia cigana, publicações grosseiras contra órgãos de soberania, ofensas a deputados, governantes e ao Presidente da República, islamofóbicas, misóginas e homofóbicas.

As três sanções mais graves homologadas pela Ministra enquadram-se no Estatuto Disciplinar da PSP e estão classificadas como “suspensão simples” (5 a 120 dias), a terceira de seis penas previstas, que vão desde a repreensão até à demissão. Estas suspensões consistem no afastamento completo do serviço, na perda, para efeitos de antiguidade e aposentação, de tantos dias quantos tenha durado a suspensão e na perda de um terço do vencimento.

Sindicalistas de fora

Nenhum dos sindicalistas que faziam parte da lista dos 591 visados na investigação jornalística foi sujeito a algum dos 13 processos disciplinares. Do maior sindicato, por exemplo, a Associação Sindical de Profissionais de Polícia da PSP, foram cinco os nomeados nas reportagens como autores de publicações consideradas discurso de ódio.

Questionado, na ocasião, pelo DN, o presidente Paulo Jorge Santos, considerou que “a forma como a peça foi divulgada parece ter subjacente um propósito de afetar o funcionamento do maior sindicato da PSP e maltratou dirigentes sindicais que nunca e em tempo algum traduziram comentários, opiniões e ideais racistas ou xenófobos”.  Paulo Jorge Santos sublinhou que “a ASPP tem uma história bastante rica na defesa da democracia e atua dentro de quadros de valores e princípios conhecidos” e que, “daí a estranheza da colocação de dirigentes da ASPP na peça em questão”.

Na sua primeira entrevista, ao DN e à TSF, a ministra da Administração Interna mostrou-se intransigente com “movimentos radicais” nas forças de segurança e prometeu “tolerância zero”.

“Os polícias são cidadãos, mas não são uns cidadãos quaisquer. São cidadãos que defendem a ordem pública, defendem o cidadão. São um dos pilares da democracia e do Estado de Direito e não é admissível que haja movimentos radicais dentro das forças de segurança. É a isso que, quer eu, quer os comandos, quer toda a cadeia hierárquica, estamos muito atentos e os procedimentos estão a ser verificados”, afirmou Margarida Blasco. É sua convicção que “a formação” que está a ser dada “vai retirar a fruta podre do grande cesto que são as forças de segurança”.

Por seu lado, a IGAI tem no terreno, desde 2021, o Plano de Prevenção de Manifestações de Discriminação nas Forças e Serviços de Segurança, tendo realizado ações de sensibilização em todos os comandos da GNR e da PSP. “Quem acha que alguém que seja homossexual é merecedor de menos dignidade ou menos respeito, não tem lugar nas forças de segurança. Quem acha que alguém que veio de um país que não é o nosso é recebedor de menos dignidade ou menos respeito, também não tem lugar nas forças de segurança”, assinalou a inspetora-geral, Anabela Cabral Ferreira, numa dessas ações em Braga, que o DN acompanhou.

Quando a grande investigação do consórcio de jornalistas veio a público provocou um intenso debate a vários níveis: político, social e na segurança interna. Não porque fosse uma surpresa haver polícias com estes comportamentos - o DN já os havia noticiado -, mas essencialmente pela dimensão (quase seis centenas) e pelo sentimento de impunidade que transparecia nas mensagens que a investigação jornalística transcreveu das redes sociais utilizadas por estes polícias.

O então ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, reconheceu a “extrema gravidade” da situação, afirmando que esta exigia uma abordagem com “grande lucidez, firmeza, determinação e consequência”.

Salvaguardando que importa “não confundir a parte com o todo” - ou seja, que a “esmagadora maioria” dos agentes da PSP e da GNR “zela pela defesa dos valores constitucionais e pelo Estado de direito” -, impôs que quanto aos que não o fazem, “não podemos tergiversar na necessidade de apurar responsabilidades”.

(Texto atualizado às 8h25 com a correção de que são seis e não oito os polícias sancionados, pois há dois processos que ainda não estão concluídos)