Entrevista DN/TSF
28 junho 2024 às 07h53
Leitura: 35 min

David Justino: "Começa a haver sobreposição excessiva de posições do sistema de Justiça com as da extrema-direita”

Subscritor do Manifesto dos 50 por uma reforma da Justiça, o ex-ministro da Educação garante que as críticas dos signatários não são contra o Ministério Público no seu todo, mas contra algumas práticas, no seu entender, lesivas dos princípios do Estado de Direito.

Temos ouvido em vários palcos diversos subscritores do Manifesto dos 50 por uma reforma na Justiça garantirem que este não é um ataque ao Ministério Público (MP). Mas é só coincidência que a maioria dos casos citados na discussão pública gerada seja apontada negativamente ao MP?
Não é coincidência. É pela oportunidade. Ou seja, se por acaso há um caso ou dois ou três que ganham relevo mediático, é natural que as coisas sejam focadas sobre isso. Agora, quem ler o Manifesto tem consciência de que há muito mais dentro do sistema de Justiça que merece a nossa preocupação.

E dentro do MP nós não confundimos todos os seus 1600 procuradores, mais os funcionários, etc., com um setor muito específico do MP. Generalizações são sempre de evitar. Há um conjunto de práticas, nomeadamente, ao nível da parte processual da área penal, que nos levantam sérias dúvidas e, neste caso, eu diria quase clara e determinada oposição.

Os argumentos que ouvimos contra o Manifesto foi primeiro de que o problema do MP é um problema de limitação de recursos, que é uma coisa que eu discordo. Há recursos, mas estão a ser mal geridos, na minha opinião. Em segundo lugar, tem a ver precisamente com as pessoas e eu não quero personalizar.

Pessoalmente, não tenho qualquer problema com o MP. A única vez que tive de ir a um processo de instrução após uma queixa, o MP comportou-se impecavelmente. Não tenho a mínima razão de queixa. Portanto, as coisas não são pessoais.

As críticas são em relação a certas práticas…
Exatamente. O que se põe em causa são práticas e são processos adotados e que estão, ou estavam, em fase de normalização. E nós não suportamos que isso possa ser normalizado. Quer dizer, se fosse um caso, uma situação em particular, com certeza que não existiria problema.

É que, pelo menos, no núcleo inicial que deu origem ao Manifesto, foi a prática reiterada de determinado tipo de procedimentos que diz isto é insuportável e não é só um problema de legalidade. Há aspetos em que há a prática de crime por parte da instituição, que, em princípio, deveria zelar pela legalidade dos procedimentos.

Mais do que isso, há preconceito e, acima de tudo, uma orientação que é de base política, eu diria quase que política ou ideológica. Porquê? Porque isso foi assumido, segundo creio, publicamente. Esta ideia de se querer transformar numa espécie de regulador ético moral da vida política. Eu acho que isto é uma ameaça.

É grave que alguém, em vez de se basear em factos e em procedimentos legalmente consagrados se esteja a orientar por preconceitos de ordem ética ou moral.

Um justicialismo?
Não sei o que é que se lhe pode chamar. Quer dizer, há várias formas. Eu julgo que o fenómeno não pode ser dissociado de duas coisas. Primeiro, de que há um problema político com a organização do MP e com o sistema de Justiça.

E é um problema político de responsabilidade política que tem de ser entendido como tal. Em segundo lugar, entendo que todos têm direito aos seus preconceitos. Não os podem é carrear para a apreciação que fazem de um processo de ação penal.

Portanto, nesse sentido, os meus receios, que já não são só receios, são certezas que me incomodam, é precisamente o facto de que alguns dos princípios básicos de funcionamento do Estado de Direito não estão a ser respeitados. É nesse sentido.

Poderiam dizer, bem, é um problema da lei, mas é mais do que isso, é da organização. É o problema do contexto em que as ações são desenvolvidas. É o problema também de uma generalização relativamente à ideia de que todos os políticos têm sempre rabos-de-palha, não é? E eu sinceramente não aceito isso.

Não posso aceitar isso. Neste momento estou aqui a exercer uma atividade política, não tenho vínculo partidário, sou militante do PSD, mas afastei-me da vida partidária. Não tenho cargos, não tenho nada. Sou um mero académico que faz investigação, mas não deixo de ser um cidadão que se preocupa com o funcionamento da democracia e, acima de tudo, com o futuro da democracia em Portugal e do Estado de Direito.

Mais importante que isso, com a ideia da liberdade. Toda a gente sabe que não há liberdades absolutas nas sociedades. Agora, no que diz respeito à liberdade relativa, vai até onde eu começo a sentir que a ação do Estado - e estou a falar do Estado em geral -, o sistema de Justiça e não só, vai cortar a minha própria liberdade.

Há uma coisa que é um contrato social que decorre da aceitação da minha limitação, da minha liberdade. Há outra coisa completamente diferente, que é eu sujeitar-me ou habituar-me à sujeição a regras que não são legalmente e em termos de princípios respeitadas.

Este Manifesto, tem essa característica de juntar pessoas diversas, de origens diversas, seja políticas, seja de atividades profissionais. Há pontos que são comuns que os fez juntar a todos. Consegue sistematizar alguns?
Acredito que não há um único signatário que não tenha alguma reserva sobre o texto num determinado ponto. O que é relevante são os princípios que estão subjacentes e a oportunidade que está subjacente à apresentação do Manifesto.

Nesse sentido, o texto do Manifesto é mais um texto de alerta, de diagnóstico, do que propriamente um texto que aponta para um determinado caminho. O único caminho que apontamos é que é necessário fazer alguma coisa para que esta acumulação de aspetos lesivos da vida em comum possa ser superada e possa ser condicionada.

Depois há também uma outra questão que é geralmente levantada, que é a ideia da reforma. Nós temos sempre um bocado a mania de entender as reformas seja do que for, não é só na Justiça, como um pacote legislativo. E não é necessariamente isso.

Quer dizer, uma reforma é um conjunto de medidas e de ações organizadas planeadas como determinadas estratégias conducentes a determinado fim.

Pode ser o simples mudança do modo de fazer…
Por exemplo. Agora, se há abusos, eu tenho que limitar os abusos através da lei. Mas se há interpretações que eu diria que são interpretações muito latas da lei, então há que fazer com rigor. Até onde é que se pode ir, até onde é que não se pode ir.

Mas consegue sistematizar duas ou três ideias concretas em relação às quais já tenham chegado a acordo neste grupo tão diverso?
As ideias concretas têm a ver com os princípios que estão consagrados na Constituição. Não se pretende fazer uma reforma de maneira a alterar aquilo que é designado na arquitetura do sistema de justiça.

Falamos, por exemplo, da separação de poderes constitucionalmente consagrada. Sempre que se fala destas áreas, há sempre protestos sobre a interferência na autonomia do MP. Mas esta autonomia é essencial para a investigação criminal e esta separação de poderes também. Ou seja, qual é exatamente o vosso limite?
O nosso limite é aquilo que está consagrado na Constituição. Porque aí é que está definida qual é a arquitetura do sistema de Justiça e os princípios fundamentais do que deve ser uma organização do sistema de Justiça.

Não precisamos de fazer uma revisão constitucional, pelo menos na minha opinião. Falo por mim. A reforma fica aquém disso e essa reforma pode ser a adoção sistemática de um conjunto de medidas corretivas de situações que estão mais que identificadas e que estão diagnosticadas há muito tempo. 

Mas não que não podem ser autorrealizadas pelos próprios órgãos da Justiça. Ou seja, têm de ser os políticos a determinar a alteração…
O objetivo do Manifesto é precisamente dar, digamos, ignição aos decisores políticos... 

Um estímulo, portanto.
Um estímulo. No fundo, estimular a entenderem-se, a sentarem-se à mesa, a arranjarem compromissos no sentido de corrigir aquilo que todos reconhecem que está mal. Agora o problema é saber porque é que não o fazem.

Nós conseguimos, neste manifesto e com os 101 subscritores que já temos, para além de muitas outras intenções que estão praticamente em stock. Ainda vai crescer. É natural. O problema é saber se nós queremos crescer muito ou não.

A dúvida que pode existir é se queremos ter aqui uma dimensão missionária. Não é aquilo que nós queremos. Mas admitindo que pode chegar a isso... Não estou a ver.

Havia outras vias, eventualmente mais interessantes. Nomeadamente, digo eu a título pessoal, no caso das escutas, ou interceções. O problema é saber se há crime ou se não há crime. Então há que identificar.

Ou seja, se é uma investigação sobre um outro crime qualquer de corrupção, seja do que for, deve haver investigação para saber. Esta coisa de lançar inquéritos é tudo muito bonito, quando na verdade as coisas se desenvolvem em vaso fechado e nós nunca chegamos a saber quais são os resultados do inquérito.

Portanto, de uma vez por todas, é necessário que se saiba porquê. Quer dizer, se é possível identificar crimes de colarinho branco que são crimes complexos, então este torna-se muito mais simples. Até porque o círculo de probabilidades de identificação de culpados é muito mais reduzido.

Gostava de ter ouvido o PSD a falar sobre esta questão das escutas?
Gostava. E confesso que me sinto muito incomodado com este silêncio ruidoso que o PSD está a revelar. Então que diga claramente que não concorda com aquilo que se pretende e que não está disponível para o fazer agora.

Confesso que fico triste. Pelo menos não me desiludo. Só posso desiludir-me quando estou previamente iludido e eu nunca estive iludido sobre isso, não é? Nomeadamente com a atual direção do PSD. A única coisa que eu estranho é, precisamente, este silêncio que é comprometedor, na minha opinião. E tenho pena.

Não se fala no Manifesto sobre o que é necessário para garantir investigações isentas, céleres e de qualidade, com mais recursos humanos e tecnológicos? Ficou de fora por algum motivo? 
Nós não fazemos propostas. As propostas são exclusivas de quem tem o poder legislativo e o poder, de gestão de processos. A nossa área de ação é o diagnóstico e, acima de tudo, desenvolver o sobressalto cívico.

Ou seja, reivindicar para o cidadão o direito de se poder pronunciar sobre o que não é um serviço, mas é um poder do Estado que não está a ser exercido conforme nós entendemos que deveria ser. Agora, quanto a propostas, há muita gente que tem propostas, nos últimos anos produziram-se propostas de alteração em larga escala.

A única coisa que eventualmente nós poderemos fazer é identificar e fazer uma espécie de levantamento exaustivo de quais são as propostas que foram sendo produzidas ao longo dos últimos tempos.

Separar as que são mais das que são boas, por exemplo? 
Não, até é melhor ter conhecimento de todas, porque o problema de ser mau ou de ser bom tem em grande parte a ver com a conceção que temos subjacente. E nós não temos uma conceção única sobre quais são os aspetos que devem ser mudados.

Também sabemos que se entrássemos no domínio das propostas, uma grande parte dos subscritores não estavam de acordo uns com os outros e, portanto, esse é o nosso limite.

Acreditam que as escutas dos processos criminais que têm maior visibilidade são libertadas intencionalmente para condicionar os próprios processos e mesmo para ter efeitos políticos?
Há aquela velha frase se non è vero, è ben trovato. Na verdade, eu julgo que já não são coincidências, porque não é um problema dos dois ou três últimos casos.

É uma prática reiterada, já de há alguns bons anos para cá, de divulgação de escutas, divulgações oportunas em função de um determinado objetivo que se quer atingir. E esse objetivo tem a ver com a ação política. Portanto, a partir dessa altura eu já não me ponho em dúvida sobre isso.

Neste momento, tenho a certeza de que à margem da política, tem havido uma agenda política com determinados fins. Não sou ingénuo ao ponto de dizer que, no fundo, não há outras intenções que não sejam o querer fazer justiça.

Não acha que isso também pode ser, um pouco, efeito colateral da bandeira que tem sido levantada nos últimos anos do combate à corrupção? A de que não pode haver impunidade e que a justiça é igual para todos. E tem havido, de facto, aqui quase um mostrar de conquistas. Quanto maior o número de políticos arguidos, melhor…
Mas aquilo que eu digo é que do conhecimento que eu tenho da classe política, entre aspas, é que essa ideia da classe tem uma conceção um bocado corporativa. Quer dizer, há políticos corruptos, toda a gente sabe que há e, portanto, não vale a pena estarmos aqui a dizer que somos todos bonzinhos.

Agora, também na política há gente séria, competente e honesta e que na enxurrada acabam por ver a sua vida privada, a sua vida familiar, etc., afetada precisamente por algum deste tipo de procedimentos. Portanto, tal como eu separo as águas entre aquilo que são alguns setores do MP e aquilo que é, se calhar, a grande maioria dos magistrados do MP que fazem o seu trabalho como deve ser, que são competentes e que não tem preconceitos, faço o mesmo em relação aos políticos.

Esta ideia de que todos os políticos são potencialmente corruptos, que foi divulgada e promovida, não só pelo MP, a partir de certa altura, também a própria comunicação social acaba por cair um bocadinho nisso. Felizmente não é toda a comunicação social. As generalizações devem sempre ser evitadas.

Essa ideia também tem sido muito alimentada pelo partido de direita radical, não é?
Esse é que é o problema. É que quando eu começo a ver um partido como o Chega a tomar determinadas posições, a defender determinado tipo de situações... É que parece que eles não são políticos, eles referem-se aos políticos como se fossem outros, não é?

E já consegue ligar os pontos, é isso?
Tenho essa tentação. Começa a haver sobreposição excessiva de posições que identifico ao nível do próprio sistema de Justiça, com outras posições ao nível da extrema-direita.

Nesse sentido, a Procuradora-Geral da República já deveria ter explicado alguns dos atos processuais que foram mais polémicos?
Deveria de haver uma preocupação pedagógica para poder chegar ao grande público, no sentido de esclarecer porque é que se fez assim e não se fez de outra maneira. Diria que não há política de comunicação porque há política, mas não há comunicação.

Julgo que toda a gente converge a dizer que estas coisas não são um problema só da transparência, é um problema de salvaguarda da integridade institucional de um órgão como o MP. Ou seja, se não querem sujeitar-se a este tipo de, desculpem-me o termo, situações quase de enxovalho, então era bom que se pudesse explicar.

Acima de tudo, que não se fizesse uma coisa que acho muito pouco aconselhável, que é quando se tem alguma coisa a dizer, por o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público a falar. Acho que os sindicatos não servem para isso.

A não ser que tenham um poder para além daquele que lhe é natural e esse poder o leve precisamente a tomar posição pública sobre aspetos que não são do seu foro sindical. 

Mas não acha que o sindicato está a usar da palavra porque mais ninguém fala?
Eventualmente. Mas isso não é um bom princípio. Não me vou pôr aos gritos só porque os outros estão calados. Não é assim que se fazem as coisas. As instituições tem que ter uma prática corrente de esclarecimento, de escrutínio das suas ações e, acima de tudo, também de escrutínio dos seus resultados.

Sente necessidade de agora ouvir a procuradora-geral da República no Parlamento a dar estas explicações que ainda não deu no espaço público?
Temos de perceber um bocadinho qual é o contexto do exercício neste final de mandato da senhora procuradora. Por aquilo que concluo, a senhora não está disponível para isso, não é? Agora, pode-se sempre chamar a senhora procuradora à Assembleia da República. Já houve duas propostas para se fazer uma audição.

Mas, nem de propósito, foi o partido Chega que obstaculizou e dificultou isso. Portanto, há aqui qualquer coisa que eu sinceramente, ou melhor, percebo, mas não quero tomar posição pública sobre isso. Acho que já são coincidências a mais.

A ideia aqui é que é um princípio, é uma porta aberta, é uma porta que vale a pena ser aberta. É normal ser aberta, não é? 
Devíamos ajudar a senhora procuradora a sair bem do mandato em que está. Não vale a pena. Vale a pena é começar a pensar sobre quais são os critérios e qual é o perfil do que se pretende que seja o próximo procurador-geral…

Quais são?
Acho que nós temos direito a saber quais são os critérios e qual é o perfil. Embora seja o senhor primeiro-ministro a apresentar a proposta ao senhor Presidente da República e o senhor Presidente da República concorda ou não concorda, pode haver várias vias.

Ora bem, isto não pode ser feito por trás das cortinas do poder. Os cidadãos têm o direito de saber. Face à situação do MP, face ao que se pretende o MP, face á política de orientação que existe relativamente às prioridades da Justiça, etc., tem todo o sentido que o perfil do próximo procurador possa, pelo menos, nos seus critérios de seleção, ser explícito. 

No seu entender ou no entender dos subscritores do Manifesto, já há alguns requisitos identificados?
Não, não tenho. Creio que nunca chegámos a discutir isso. Ao contrário do que muita gente possa pensar não nos perdemos por aí... 

Mas houve uma agenda?
Não, na verdade, é uma coisa que nos escapa. A única coisa que nós podemos e temos o direito de pedir é que haja transparência e que sejam enunciados, ou pelo menos publicados e conhecidos quais são os critérios de escolha. Tão simples quanto isto.

Só para fechar aqui esta questão do Manifesto. Há a perceção pública de que é uma Justiça para pobres e uma para ricos e que os sucessivos usos e abusos de recurso servem a quem tem dinheiro. Na Operação Marquês temos o ex-primeiro-ministro que só num processo, interpôs mais de 40 recursos. Há quem chame isto até o “terrorismo judiciário”. Há intenção de também de tomar posição em relação a esta matéria? 
Eventualmente. Mas entramos no domínio das medidas, não é? Aquilo que era importante é fixar bem os prazos para que todos possam saber com o que é que contam e fixar em que condições é que se aceita o recurso para uma instância superior.

Também reconheço que a multiplicação de recursos também não é bom para o funcionamento do sistema de Justiça e não é bom para se fazer justiça. Porque às vezes funciona como manobra dilatória. Agora, sem querer retirar o direito do recurso e isso é intocável.

O problema é que temos que regular esse mesmo direito. Porque senão temos aí a diferença entre aqueles que têm dinheiro para pagar a um advogado para fazer todos os recursos possíveis e imaginários, e aqueles que, não tendo esses meios, obviamente, não conseguem fazer qualquer recurso.

"A importância das competências não deve ser menosprezada, mas não sacrificando o conhecimento"

David Justino foi ministro da Educação, foi presidente do Conselho Nacional de Educação, foi professor universitário. A nossa escola é um caso de sucesso na perspetiva do que sabem fazer os jovens e do que sabem de conhecimento? 
Temos aqui dois problemas ao nível de funcionamento, da escola e do sistema de ensino. Acho que nós fizemos progressos assinaláveis no que diz respeito à escolarização da população, à redução do abandono escolar e, em alguns aspetos, no combate ao insucesso.

É claramente um saldo positivo. Em termos quantitativos, temos mais gente escolarizada durante mais tempo, temos a escolaridade obrigatória e isso é positivo.

O que é que não é positivo? É aquilo que os testes internacionais demonstram. Que nos últimos anos baixámos o nível de desempenho dos alunos nesses mesmos testes. Isto revela que há fragilidades ao nível da aprendizagem.

É bom que possamos distinguir que uma coisa é aquilo que se ensina, outra coisa é aquilo que se aprende, não é. Até posso ter bom ensino e não ter uma boa aprendizagem. A responsabilidade de um professor é para além de ensinar bem, fazer, aprender.

Ou seja, promover as aprendizagens. Há muitas maneiras de o fazer para além da ação do próprio professor dentro da sala de aula. E aí tenho algumas reservas e preocupações relativamente ao nível de desempenho que os alunos estão a ter, não só ao nível do que são os conhecimentos, do que é necessário conhecer, mas também ao nível da formação integral do aluno. 

O problema está na formação do professor ou na forma como os programas são desenhados? 
Está em várias coisas, não só nos conteúdos, nas práticas pedagógicas e, acima de tudo, está numa coisa que é o facto de a escola ser uma instituição muito conservadora, independentemente de ser mais de esquerda ou mais direita.

A escola é uma coisa que muda muito dificilmente e está a ser assolada por um conjunto de desafios com os quais não estavam habituados a lidar. O problema da digitalização é um dos desafios, é necessário desenvolver uma pedagogia do digital.

Eu não sou contra a utilização de instrumentos digitais na sala de aula, agora tem é que haver uma pedagogia para isso.

Há países que já só estão a permitir o uso de telemóveis nas escolas a partir de uma certa idade…
Exatamente.

Mas se a sociedade está a evoluir nesse sentido, como é que a formação dos professores não acompanha?
Verdade. A formação dos professores anda sempre a reboque. Porquê? Porque é impossível ao nível destas instituições ligadas ao sistema de ensino ter um ritmo de acompanhamento e um ritmo de dança idêntico ao ritmo de dança do nível tecnológico. 

É uma estrutura demasiado pesada, não é?
Pesada. Mas as instituições são isso mesmo. Quer dizer, as instituições são identidades que têm dificuldade em mudar. E a escola é uma instituição, para todos os efeitos.

Agora isto não quer dizer que a escola não tenha mudado. Tem mudado sempre. E a ideia que nós ainda temos uma escola do século XIX é a ideia mais ignorante que eu conheço. 

Continua a haver uma grande clivagem entre aquilo que os jovens sentem que precisam para a sua vida profissional e aquilo que a escola lhes oferece?
É preciso ter cuidado também. Porque muitas vezes aquilo que sentem que é preciso não corresponde àquilo que é mesmo preciso. Aí também sou conservador no sentido de dizer que se tivermos de mexer, tenhamos a certeza do que é que vamos mexer.

Porque quando se mexe sem ter um propósito e acima de tudo, uma estratégia como deve ser, o risco de disrupção é elevado. Agora eu julgo que é possível reforçar a componente do conhecimento.

Devo confessar que não sou um grande adepto de sacrificar o conhecimento ao desenvolvimento de competências, por exemplo.

Mas as competências são o que as empresas procuram mais hoje em dia…
Sim, mas é um problema das empresas. Não conheço ninguém que, sendo competente, seja ignorante. Não há competências sem conhecimento.

Eu tenho que garantir que os miúdos dominam as literacias fundamentais, os códigos de interação que são fundamentais. Se não os dominam como deve ser, dificilmente podem aceder ao conhecimento. Portanto, podem ser competentes em quê? Não podem ser competentes em nada.

Eu prefiro ter uma pessoa que tenha determinado tipo de valores, mas que tenha o conhecimento do que é que quer fazer e que tenha adaptabilidade a situações que estão sempre a mudar no mercado de trabalho. Porque eu não posso ter um perfil fixo ao longo do tempo.

Esse perfil de formação dos jovens tem de adaptar-se àquilo que as empresas mudam de perfil dos seus recursos humanos constantemente.

Têm de ser as empresas a cumprir a parte final, é isso?
Têm que ser elas, não há dúvida nenhuma. Mais importante ainda é que temos de nos habituar que em vez de termos empregos para a vida, temos que ganhar competências em vários empregos ao longo da vida. Isso é a parte mais importante.

Mas obviamente não se vai mudar de um momento para o outro. Depois tem um problema também no próprio funcionamento da escola. Como é que eu avalio competências? Os professores estão habituados a avaliar conhecimentos.

Tínhamos que fazer uma reformulação completa em termos de formação da classe docente para se avaliar competências. Uma coisa é termos boas intenções, mas nem sempre as boas intenções dão bons resultados e, neste caso da avaliação de competências, os resultados são muito limitados.

Portanto, devemos ter em atenção que a importância das competências não deve ser menosprezada, mas que isso não seja feito sacrificando o conhecimento.

Fez bem o Governo em ceder aos professores no capítulo da recuperação do tempo de serviço?
Acho que fez muito bem. Só tenho que dar os parabéns. Foi uma atitude responsável da parte do ministro e da parte da equipa ministerial.

Enquanto esse problema não fosse resolvido, não tínhamos a paz na Educação de que precisamos. Agora é natural que temos outros problemas para as quais para os quais precisamos de ter também alguma paz, como seja o problema da falta de professores.

Admitindo que existe, quero saber onde, em que escolas, em que regiões? Onde é que eu tenho professores a mais? E saber também em que grupos de docência. É que eu tenho falta de professores, porque há uns que têm e outros não têm. É um trabalho que tem que ser feito de forma meticulosa e com tempo.

Uma pergunta política para terminarmos. É dos que acredita que este Governo vai durar quatro anos?
Não me regulo por problemas de fé e, portanto, não tenho qualquer fé sobre isso. Vivemos um período de incerteza muito grande, cada vez maior. Os fatores não previsíveis e de certa forma contingentes, são cada vez mais numerosos e com impactos cada vez maiores sobre a vida política social, não só em Portugal, mas como em todo o lado.

Julgo que o Governo tem que fazer como dizem os jogadores nos jogos de futebol, pensar só no próximo jogo. Depois, o campeonato logo se vê. Se for assim, devo dizer que este Governo está a comportar-se até melhor do que eu estava à espera. Devo confessar. Não tenho problemas nenhuns em dizer isso.

Agora que tenha uma estratégia mais ou menos delineada, mas sujeita precisamente a estes fatores contingentes que aparecem quando menos se espera e onde menos se espera. Um governo que esteja preparado para lidar com a incerteza é o governo que melhor é capaz de responder às necessidades do país. Um governo convencido que vai durar dois ou três anos, está nas mãos precisamente da incerteza.

Sinceramente acho que governos nas mãos da incerteza são maus. São aqueles que andam sempre atrás de tudo o que mexe e depois aparece uma avalanche qualquer que não mexe e às duas por três estão soterrados. Nesse aspeto, penso que o Governo tem andado bem.

Agora tem que se preparar para fatores que não são previsíveis e, acima de tudo, para comportamentos, nomeadamente de outros partidos políticos que, sendo previsíveis, não são necessariamente benéficos para a ação governativa.

Há uma coisa que me faz alguma confusão, que é nós temos uma espécie de governação por segmentos. Esta medida para os jovens, esta medida e para os profissionais disto, esta medida para os idosos. Ainda estou à espera de medidas que contrariem tudo isto, que se respeite o interesse nacional. 

Falta a cola é isso? 
Falta a cola. Acima de tudo, falta a ideia de bem comum que é a base do funcionamento das democracias. Parte-se do princípio de que há um interesse que se sobrepõe a todos os outros interesses setoriais. E isso eu não tenho visto.

E por isso é que também, como eu disse há pouco, no caso da Justiça, é um daqueles bens que só se justifica pela lógica do interesse nacional, não pela lógica dos magistrados, do MP, dos advogados, dos professores como eu, ou seja do que for. 

No caso do pacote anticorrupção que a ministra da Justiça anunciou recentemente, foi uma resposta ao partido Chega? 
Claramente. Claramente, isto é por taticismo. Se houver esta ideia do que é o interesse nacional e uma reflexão clara sobre o que é que interessa ao país, há coisas que nem valeria a pena estar a mexer.
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