Relatório de Segurança Interna
29 maio 2024 às 08h22
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Crimes de ódio voltam a subir em 2023. PSD teme “radicalismo à volta da matéria”

A subida é de 27% e foi conhecida quando a ministra da Justiça estava ao parlamento a responder sobre crimes de ódio. Mas Rita Júdice pouco adiantou sobre o assunto, recusando declarar uma preocupação específica: “Sou contra todos os crimes”. Já o PSD disse temer “radicalismo à volta desta matéria”.

De 2022 para 2023, registou-se um aumento de 27% nos crimes “contra a identidade cultural e integridade pessoal” (consistindo sobretudo em crimes de discriminação e incitação ao ódio e à violência) - que já tinham aumentado 69% de 2021 para 2022. É um dos maiores aumentos percentuais constatados no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), o qual chegou à Assembleia da República ao fim da tarde de terça-feira, exatamente quando decorria a audição da ministra da Justiça sobre crimes de ódio, requerida pelo Bloco de Esquerda (BE) e viabilizada por todos os partidos.

“Mediante análise dos dados estatísticos relativos a todos os casos classificados como crimes de ódio, comunicados à Polícia Judiciária de 2019 a 2023, constata-se uma tendência de aumento, o qual ocorreu de forma mais acentuada de 2019 para 2020, coincidindo com a ocorrência da pandemia”, lê-se no documento, ao qual o DN teve acesso.

Apesar de “mais atenuado”, o aumento, referindo-se sobretudo a “ambiente digital”, prosseguiu nos anos seguintes, informa o RASI, que anota uma subida “da atividade online de alguns grupos e organizações de cariz extremista, assim como atores isolados, explorando cada vez mais os processos de radicalização em ambiente virtual e visando em especial os indivíduos vulneráveis, para os influenciar a cometer atos violentos e tendentes ao terrorismo” e, no capítulo das “ameaças globais à segurança interna”, menciona “a retoma da atividade de organizações neonazis e identitárias”, considerando existir um agravamento da ameaça representada por esses setores, mencionando também “a criação de projetos e organizações por jovens que estendem o alcance da mensagem extremista a uma nova geração com um perfil distinto”.

Já no relatório de 2022 a disseminação do discurso de ódio e o perigo de resultar em atos terroristas fora sublinhada, sendo associada à “migração da extrema-direita para o ambiente online, com crescente audiência”, e à respetiva “propaganda extremista, teorias da conspiração e desinformação, num ataque permanente à democracia, aos atores do sistema político e às minorias étnicas, religiosas ou sexuais.” Assinalava-se “a crescente adesão de jovens militantes de extrema-direita a grupos online, de âmbito nacional ou transacional, dedicados à difusão de conteúdos propagandísticos extremistas, incluindo conteúdos ‘aceleracionistas' (terrorismo de extrema-direita).” E concluía-se: “A radicalização online nestes meios poderá agravar o risco de surgimento de pequenas células ou de atores isolados dispostos a atuar com violência, por motivação ideológica.”

Não espanta pois que se preveja, nas “orientações estratégicas” do documento, a elaboração de “instrumentos de atuação/operacionalização para combater a discriminação e reduzir os crimes de ódio”.

“Não podemos criar radicalismo à volta desta matéria”

Estas preocupações dos RASI de 2022 e 2023, assim como o aumento de terrorismo de extrema-direita no mundo e das suas vítimas mortais, foram, precisamente, citadas pelo deputado bloquista Fabian Figueiredo na sua pergunta à ministra da Justiça, Rita Júdice, querendo saber se o combate a estes fenómenos são por ela considerados prioritários e se acha que está a ser feito tudo o que é necessário em termos de prevenção dos mesmos em Portugal.

Garantindo estar “contra todos os crimes” (afirmação que lhe mereceu um gracejo do deputado comunista António Filipe: “Disse que é contra todos os crimes, não esperávamos outra coisa, que escapassem alguns”), a governante relegou a discussão sobre o RASI para o debate da respetiva apresentação ao parlamento e, de cada vez que lhe perguntaram se considerava ser preciso fazer mais, na área que tutela, para prevenir o discurso e os crimes de ódio, repetiu: “Confio em absoluto na Polícia Judiciária e estamos apostados em dar todos os meios à PJ”.

Rita Júdice também negou a necessidade de alterar o enquadramento legislativo dos delitos em causa: “O quadro legal penal já e bastante completo, houve aliás uma alteração em janeiro de 2024 no artigo 240º (“Discriminação e incitamento ao ódio e à violência”), que foi ampliado para incluir também nos motivos de discriminação o território de origem” (além desse foram também aditados a expressão de género e características sexuais a deficiência física ou psíquica). A ministra referiu ainda ter havido um agravamento da pena do crime - o que não sucedeu na alteração de 2024, a qual manteve a moldura penal, de resto a mesma desde 1995 -, para concluir: “A lei é competente para fazer face a qualquer situação das que foram referidas nesta reunião.”

Desta forma, Rita Júdice despede a necessidade, inscrita no programa do Governo (o qual afirma ser seu propósito “combater a discriminação, a violência e os crimes de ódio contra todas e quaisquer minorias”) de “avaliar o enquadramento jurídico atualmente existente e a sua eventual revisão na resposta ao assédio sexual, à ‘ciberperseguição’, ao ‘ciberassédio’, ao incitamento à violência e ao ódio online”.

Essa foi aliás uma das questões colocadas pela deputada do PSD Andreia Neto: “O próprio programa do Governo menciona a necessidade de combate ao discurso de ódio. Perguntamos se o governo tenciona promover alguma medida para promover o enquadramento legislativo.” Reforçando que “a luta contra os crime de ódio e o discurso de ódio deve ser uma prioridade”, a parlamentar, vice-presidente da bancada do seu partido, advertiu no entanto: “Não podemos criar radicalismo à volta desta matéria. Temos a consciência de que devemos deixar as autoridades investigar. Tolerância zero, claro, contra o ódio e a violencia xenófoba, mas temos de aguardar pela investigação.”

Mais queixas, muito poucas acusações - problema está na definição do crime?

Em causa na advertência da deputada social-democrata estaria o facto de o requerimento do BE partir, para o questionamento à ministra, do ataque a imigrantes ocorrido no Porto na madrugada de 3 de maio.

Aliás a própria governante disse a dada altura da audição: “Estamos aqui, atrevo-me a dizer, por alguma desinformação”.

Certo é que, de acordo com o noticiado em primeira mão pelo DN a 5 de maio, o caso está a ser investigado pela PJ como crime de ódio. E foi como tal, aliás, desde logo condenado quer pelo Presidente da República quer pelo primeiro-ministro: “Condeno veementemente, em meu nome pessoal e do Governo português, os ataques racistas desta noite no Porto. Exprimo a nossa solidariedade com as vítimas e reafirmo tolerância zero ao ódio e violência xenófoba”, escreveu Luís Montenegro no Twitter  4 de maio.   

O crescimento das denúncias de crimes de ódio em Portugal e o reconhecimento, por parte das polícias e dos serviços de segurança, da gravidade do fenómeno, não tem contudo resultado em muitas acusações. Como o Público revelou no início do mês, se o Ministério Público (MP) abriu, entre 2020 e 2023, 792 inquéritos, os despachos de acusação foram, no mesmo período, apenas 14. 

“Segundo dados da Procuradoria-Geral da República (PGR) fornecidos ao Público, entre 2020 e 2022 foram instaurados 530 inquéritos, e só foram proferidos três despachos de acusação em cada ano. Já em 2023, quando foram instaurados 262, apenas cinco tiveram acusação” lê-se no diário, que esclarece serem os crimes em causa os que têm como base ou agravante ódio - ou seja, incluem os previstos no artigo 240º do Código Penal, mas não só (podem incluir também outros crimes que a investigação considere terem uma motivação de ódio - por exemplo homicídios, ofensas à integridade física, etc).

Como menciona ainda o Público no mesmo artigo, vários estudos indicam que “a maioria das pessoas que se sente alvo de discriminação não faz queixa”. Outra questão é abordada pela Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI, organismo do Conselho da Europa), a qual, no seu relatório de 2018 sobre Portugal, diz: “A definição de discurso de ódio e de crimes de ódio usada pelas polícias e pelo MP é demasiado estreita”. Não fica claro se esta asserção se refere à redação do tipo criminal ou à forma como este é interpretado e operacionalizado pelas instituições referidas.