Premium
Sociedade
23 novembro 2024 às 00h05
Leitura: 15 min

F-16, bombas e muito treino. Enquanto não há novo aeroporto, a missão no Campo de Tiro dispara

A instalação militar, que dará lugar ao novo aeroporto de Lisboa, continua a cumprir diariamente o desígnio principal: treinar os militares para cenários de guerra e as forças de segurança para lidarem com armas de fogo. O DN acompanhou, em exclusivo, um raro exercício de dois F-16, com uso de bombas e munições reais.

À entrada do Campo de Tiro (CT) estão cerca de 10 militares, perfeitamente fardados e alinhados. Aguardam o general João Cartaxo Alves, Chefe do Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA), que é recebido ao portão pelo comandante da instalação militar, o coronel Manuel Bernardo da Costa, investido no cargo há pouco mais de um ano. A presença do chefe do Ramo naquela manhã de quarta-feira no CT, vizinho da vila de Alcochete, tem um motivo: assistir a um treino de tiro Ar-Solo, com munição real, e largada de bombas por dois caças F-16 das esquadras 201 e 301, sediadas na Base Aérea de Monte Real. Um tipo de treino raro, desde logo porque exige semanas de preparação e tem de obedecer a uma série de critérios de segurança.

A começar pelas condições meteorológicas, que permitam aos pilotos dos F-16 terem clara visibilidade dos alvos a atingir, sendo que este tipo de exercício não pode ser realizado no período de verão devido ao risco de incêndios. Depois, é necessária a presença, no CT, de equipas multidisciplinares que envolvam profissionais de inativação de engenhos explosivos, de assistência e socorro, de comunicações e controladores aéreos especializados. Antes de tudo isso, também é preciso informar as autarquias mais próximas do tipo de treino que vai ter lugar, para que estas, por sua vez, passem mensagem à população e evitem algum tipo de alarme face ao ruído causado pelos rebentamentos.

Este é também um tipo de treino que tem os dias contados no CT. Em maio deste ano, o Governo liderado por Luís Montenegro anunciou que o novo aeroporto que irá servir a cidade de Lisboa (e que terá o nome Luís de Camões) será construído nos terrenos onde hoje funciona o CT. Numa fase inicial será dotado de duas pistas, mas o plano permite a expansão da infraestrutura até quatro.

O Governo, que aponta o prazo de conclusão da obra apenas para 2034, argumenta que o novo aeroporto terá “a capacidade de acomodar a procura” crescente por Portugal, estimando-se que possa “ultrapassar os 100 milhões de passageiros” após 2050. O investimento inicial para a construção das duas pistas será de 6105 milhões de euros, mas a esta verba ter-se-á de somar os custos das deslocalização do Campo de Tiro para outra região – uma fatura que poderá ser na casa dos 250 milhões de euros, de acordo com o que chegou a ser noticiado pelo Público.

A hipótese mais forte é a zona de Mértola, já identificada em estudos realizados há mais de uma década (quando já se falava na possibilidade de o aeroporto vir para Alcochete). Na altura, foi feita uma pesquisa em várias zonas do país, que pudessem servir de solução, sem densidade populacional, sem estarem integradas na Rede Natura ou em zonas de aquíferos. Mértola emergiu como principal alternativa e à Força Aérea foi pedido que listasse os requisitos operacionais que necessitava, em termos de dimensões e espaço aéreo, para manter a continuidade do treino de tiro com todas as especificidades que este envolve.

A inevitável mudança de instalações do CT, seja para Mértola ou para outro destino, não tira, para já, o sono ao general João Cartaxo Alves, garantindo que estão abertas as linhas de diálogo entre os militares e o Governo na busca da melhor solução. “Sinceramente, na Força Aérea estamos muito tranquilos com essa matéria, porque é uma questão de que o Ministério das Infraestruturas está ciente. Já falou connosco, tem esse estudo, e sabe, claramente, quais são os requisitos funcionais que precisamos”, explica o CEMFA ao DN.

Algumas das mais altas patentes da Força Aérea assistiram ao treino. Da esquerda para a direita: coronel Aires Marques (chefe do Centro de Recrutamento da Força Aérea); major-general Luís Nunes Serôdio (chefe do Gabinete do CEMFA), tenente-general António Matos Branco (Comandante Aéreo); general João Cartaxo Alves (Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, CEMFA); coronel Manuel Bernardo da Costa (comandante do Campo de Tiro de Alcochete); tenente-coronel João Martins Gonçalves (comandante do Grupo Operacional da Base Aérea 5). -- FOTO: LEONARDO NEGRÃO

Enquanto esse dia não chega, a atividade no CT não sofre interrupções. E é intensa. De acordo com dados obtidos pelo DN, até 13 de novembro deste ano realizaram-se 739 eventos naquela infraestrutura, divididos em atividade terrestre (691) e aérea (48), o que quer dizer que todos os dias o CT dá algum tipo de treino às forças militares e de segurança. Sem surpresa, a Força Aérea – o Ramo das Forças Armadas  que tem a tutela do CT – é o maior ‘cliente’ (326 utilizações), seguido da GNR (131), Indústria da Defesa (115, 90% são ensaios de munições executados por empresas privadas), Exército (71), Marinha (56) e PSP (35). Este ano, também recorreram ao CT forças militares estrangeiras, aliadas de Portugal na NATO, para treinos aéreos, nomeadamente da República Checa (3, tiro Ar-Solo) e da Bélgica (1 treino de paraquedistas).

Para 13 de novembro, dia da visita do DN, estão agendadas três atividades. À porta principal do CT, na Estrada Nacional 118, que liga Alcochete ao Porto Alto, estão paradas seis viaturas do Comando Territorial da GNR de Setúbal à espera de autorização para entrar para um treino de tiro. “As forças de segurança vêm aqui regularmente para manter a sua proficiência do tiro, o que é extraordinariamente importante também para a nossa segurança do dia a dia. É, ao mesmo tempo, um sinal da importância acrescida da missão deste campo”, frisa João Cartaxo Alves.

Também a KNDS, uma holding europeia de Defesa, tem agendado um ensaio de munições. Mas o momento alto do dia é mesmo o treino com munição real dos F-16. E está tudo a postos.

Todos de olhos postos no céu: “Já largou!”

O DN entra a bordo de uma viatura militar na companhia do CEMFA, o tenente-general António Matos Branco (Comandante Aéreo) e do comandante do CT, que é quem vai ao volante.

Seguimos por uma estrada reta, primeiro de alcatrão e depois em terra batida, e Manuel Bernardo da Costa vai decifrando alguns marcos que vemos pelo caminho, como uma bandeira vermelha içada que é sinal de uma carreira de tiro a ser usada nesse momento, pelo que ninguém pode ali entrar sem autorização. Assinala também a limpeza dos terrenos junto ao montado de sobreiros para evitar risco de incêndios e a passagem por uma das três barragens do complexo que, em certas altura do ano, recebe a visita de flamingos. A gestão e exploração florestal do complexo e a preservação da fauna ali existente são também elementos estruturais para a atividade do CT.

O trajeto até aos alvos que vão ser bombardeados ainda é longo. Afinal, estamos numa das maiores instalações militares da Europa. Criado por decreto régio em 1904, com 1680 hectares, o CT foi expandido em 1985 (dando resposta à evolução do armamento utilizado) para os atuais 7560 hectares, que se estendem por freguesias dos concelhos de Benavente (Samora Correia) e Montijo (Canha). Foi batizado como Campo de Tiro de Alcochete por ser a localidade mais próxima, mas não ocupa um único metro deste município – desde 2009, a unidade passou a ser designada, apenas, Campo de Tiro. Para se ter uma ideia, o CT ocupa uma área equivalente à da cidade do Funchal.

A amarelo, os mais de 7500 hectares ocupados pelo Campo de Tiro, que ocupa zonas de dois concelhos: Benavente (Samora Correia) e Montijo (Canha). A vermelho, vemos a área da Base Aérea 6 do Montijo. A diferença é esmagadora.

A sua ampla dimensão acaba por ser determinante para garantir a segurança dos militares e das populações que vivem em redor do CT, face ao tipo de testes que ali se realizam e que incluem, por exemplo, a largada de bombas reais e bombas guiadas, dispondo ainda de uma pista de aviação com 1000 metros. Isso mesmo é reconhecido pelo comandante Manuel Bernardo da Costa: “Os militares, portugueses ou de outros países, e as nossas forças de segurança veem aqui um espaço onde podem praticar em segurança. Nós controlamos tudo o que se passa aqui e isso ajuda a transmitir essa sensação de segurança, que é um aspeto fundamental para nós, para os utilizadores e para quem mora aqui ao lado”.

Lá fora já se escuta o barulho dos motores dos dois F-16 e a marcha acelera um pouco. Paramos na área de largada de bombas reais, a cerca de 1500 metros dos alvos, duas rampas de areia de elevada altura. Estão ali reunidas algumas das mais altas patentes da Força Aérea, todos de olhos no céu à procura dos caças, que vão fazer dois tipos de largadas de bombas Mark 82 (cada uma com 250kg de carga explosiva): um a maior altitude; e outro em voo mais rasante, seguido de um rápido movimento ascendente para se afastar do impacto da explosão. 

Nota-se a agitação entre os militares, alguns dos quais nunca tinham assistido a este tipo de exercício com munição real. O Comandante Aéreo, António Branco, chama a atenção para a chegada iminente dos F-16, que voam a aproximadamente 900km/h, e o olhar treinado do major-general Luís Nunes Serôdio, chefe do Gabinete do CEMFA, permite-lhe anunciar: “Já largou [a bomba]!” 

Uma das quatro explosões a que o DN assistiu no CT, na área própria para a largada de bombas reais. -- FOTO: LEONARDO NEGRÃO

Segundos depois dá-se o rebentamento. O som provocado pela explosão é alto e sente-se também perfeitamente a vibração que causa no terreno. No horizonte ergue-se uma espessa coluna de detritos e fumo negro. No total, foram largadas quatro bombas. Um dos mais entusiasmados com o exercício é o coronel Aires Marques, chefe de Centro de Recrutamento da Força Aérea, que arrisca mesmo sugerir um título para o que acabámos de assistir: “Treino real dos pilotos de combate.”

A palavra “real” é, de facto, importante neste contexto. Mas já lá iremos.

Tensão e confiança no processo

Voltamos à viatura militar e seguimos rapidamente para a carreira de tiro Ar-Solo. O general João Cartaxo Alves é dos primeiros a subir a íngreme escadaria em ferro até ao topo da torre de controlo aeronáutica, pintada num padrão xadrez, de amarelo e preto, e que não é visível do exterior do CT.

Já do lado de fora da torre, com visibilidade desimpedida para os enormes alvos circulares vermelhos e brancos, reparamos na aproximação do primeiro F-16 pela direita, que desta vez vai passar bem mais perto de nós. O rugido provocado pela deslocação de ar é intenso, mas o barulho da rajada de tiros de munições 20mm (o canhão do F-16 pode disparar até 6000 projéteis por minuto) sobrepõe-se a tudo o resto. A comunicação com os pilotos é feita em tempo real e coordena-se uma nova passagem baixa das aeronaves.

Os dois F-16 em ação no Campo de Tiro. -- FOTO: LEONARDO NEGRÃO

Todos os dados sobre o voo e a precisão dos rebentamentos e tiros estão a ser compilados para posterior análise, mas, findo o exercício, há um sorriso estampado no rosto do tenente-coronel João Martins Gonçalves, comandante do Grupo Operacional da Base Aérea 5, em Monte Real. “Se correu bem? Claro que sim, conseguimos tudo o que planeámos. Este tipo de treino é também uma etapa importante na formação e habilitação de um piloto para participar nas missões que o país seja chamado a integrar, como a que aconteceu recentemente na Lituânia”, quando, entre abril e julho deste ano, quatro F-16 e 240 militares da Força Aérea foram destacados para uma missão NATO de policiamento do espaço aéreo nos países do Báltico, recorda o piloto-aviador, de 40 anos, que também participou nessa ação.

Mas, existindo hoje todo o tipo de simuladores, por que é que o treino com munição real é importante? “Porque precisamos da paciência e da necessidade que toda esta cadeia de eventos implica, não apenas para o piloto, mas para toda a equipa. É preciso fazer o ensemble da bomba, fazer o carregamento da mesma no avião, preparar todo o armamento e é assim que ganhamos confiança no processo total. Depois, para o piloto, voar com munição real também representa um desafio, pela tensão que traz estar a transportar explosivos a bordo e pela largada que tem de ser feita de modo muito dinâmico. A munição real aumenta a exigência e os níveis de concentração do piloto. É todo um contexto que só fortalece o nosso treino e aptidão enquanto militares. É por isso que este treino é especial”, descreve o tenente-coronel João Martins Gonçalves, um dos mais experientes pilotos nacionais, com mais horas de voo em missões internacionais.

Agora é hora de outra equipa entrar em ação, para efetuar a limpeza do terreno e retirar os detritos metálicos dos explosivos. Isso é uma tarefa assegurada em exclusivo pelos efetivos do CT, unidade onde prestam serviço 139 pessoas, entre militares e civis.

Na despedida, um militar pergunta se gostámos da experiência e a resposta é “sim, foi espetacular”. “Agora imagine que há quem tenha de assistir a isto todos os dias, pelo mundo fora”, responde. O ar sério com que o diz torna desnecessárias mais palavras para percebermos do que fala e mais uma vez o real impõe-se: a realidade dura e cruel da(s) guerra(s), que afeta milhões de pessoas no planeta, e para a qual o CT ajuda a preparar os militares portugueses que possam vir a ser destacados. É esse o desígnio, que se aplica também às forças de segurança que operam no país e têm de lidar com armas de fogo. E é por isso que o Campo de Tiro importa.