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Sociedade
24 novembro 2024 às 00h16
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Comissão da Carteira de Jornalista abre processo a Maria João Avillez. Ricardo Costa admite “lapso”

Avillez entregou título de jornalista em 2006. Mas foi assim identificada ao entrevistar Montenegro na SIC. Agora, o órgão que fiscaliza o exercício da profissão instaurou-lhe um processo de contraordenação. Direção da SIC admite que chamar-lhe jornalista foi  “lapso”; ela diz que "nunca mais se lembrou" da carteira.

“Jornalista, colunista do Observador”. É assim que Maria João Avillez (MJA) é identificada numa publicação da sua autoria nesta quarta-feira, 20 de novembro, naquele jornal digital. Foi precisamente a identificação como jornalista, ocorrida a 8 de outubro na entrevista que Avillez fez ao primeiro-ministro, Luís Montenegro, no Jornal da Noite da SIC, e essa mesma entrevista decorrer num espaço de informação, o motivo do processo de contraordenação que lhe foi instaurado pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) e do qual terá sido notificada por estes dias.

Em causa o facto de, como o DN noticiou logo a 8 de outubro, Avillez não possuir carteira profissional de jornalista desde 2008, depois de a ter entregado por ordem da CCPJ, por esta considerar que fizera publicidade ao Banco Privado Português na revista Única, do Expresso, quando era redatora principal deste semanário.

O Estatuto do Jornalista, que é lei da República, determina que a publicidade e o exercício do jornalismo são mutuamente incompatíveis (para fazer publicidade o jornalista tem de entregar a carteira), e que “é condição do exercício da profissão de jornalista a habilitação com o respetivo título, o qual é emitido e renovado pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista” (Artigo 4º, número 1). No mesmo diploma, no artigo 20º, esclarece-se que a violação da norma citada “constitui contraordenação punível com coima de 1000 a 7500 euros”.

A 10 de outubro, dois dias depois da emissão da entrevista de MJA a Montenegro, a CCPJ publicou um comunicado no seu site no qual considera “incompreensíveis algumas manifestações públicas por parte de alguns jornalistas, ou de quem se considera jornalista, (não estando no entanto no ativo) de desafio e até de soberba, considerando-se acima das leis, apenas porque não gostam ou não concordam com elas”. Recordando que “estas atitudes alimentam desinformação e agravam a iliteracia em relação à condição e ao estatuto dos jornalistas na nossa sociedade”, a CCPJ lembrava que “o facto de se praticar atos próprios da profissão não faz dessa pessoa jornalista. Assim como, o facto de o ter sido no passado, independentemente do número de anos em que legalmente desempenhou funções, garante que pode exercer presentemente a profissão de jornalista, identificar-se e ou permitir que o identifiquem como jornalista, sem que para tal esteja munido da respetiva carteira profissional atualizada, de acordo com a legislação em vigor.”

Em resposta às perguntas do jornal sobre a situação de MJA, a CCPJ informou que recebeu sete queixas a ela relativas e “já analisou o caso, tendo sido desencadeados os procedimentos que se consideraram adequados a uma situação desta natureza”. Invoca porém um parecer da Comissão Nacional de Proteção de Dados – segundo o qual há um possível “efeito estigmatizante” e/ou “potencial discriminatório” na “divulgação” ou “acesso generalizado a informação relativa a queixas apresentadas contra profissionais ou sobre a abertura de procedimentos sancionatórios” – para não esclarecer quais. Sendo que, como já referido, de acordo com o Estatuto do Jornalista o  “procedimento adequado” ao uso do título de jornalista não possuindo a respetiva habilitação legal é o processo de contraordenação.

“É como pedir a carta de condução ao Shumacher”

Anote-se que a identificação de MJA como jornalista na referida entrevista ao PM e no Observador está longe de ser excepcional: em muitas outras ocasiões, incluindo noutras entrevistas televisivas – como foi o caso da que fez ao papa em setembro de 2022, para a TVI –, tal tem acontecido.

O DN tentou chegar à fala com a antiga jornalista  para obter a sua reação ao processo, sem êxito. Também o diretor do Observador, Miguel Pinheiro, foi contactado pelo DN devido à identificação de MJA como jornalista no seu jornal, não havendo  resposta. Este sábado, porém, no programa Alta Definição, na SIC, MJA falou extensamente sobre desenvolver atividade de jornalista e dizer-se jornalista sem o competente título – o qual em 2007, numa entrevista ao Diário Económico, designou de “a merda da carteira” – alegando que este “caducou em 2008” e nunca mais se lembrou de o renovar.

“Ainda ontem um grande amigo perguntou: ‘Como viveste a história de não ter carteira?’ Faz-me lembrar se tivessem pedido ao Schumacher, aquele grande campeão de Fórmula 1, a carta de condução antes ou depois de uma corrida”, disse MJA no referido programa de entretenimento, no qual é anfitrião o diretor de programas da SIC, Daniel Oliveira. “Não estou a dizer com isto que estou contra a lei, só que de facto a minha carteira caducou em 2008 e basta lembrar do que estava a acontecer no mundo, com a crise económica e tudo aquilo, e depois logo a seguir o que aconteceu em Portugal com a queda do governo Sócrates e depois logo a seguir com a vinda da troika e depois houve um logo a seguir que não parou até hoje – e eu não me lembrei da carteira profissional, tenho muita pena.”

Também em 2006, quando a CCPJ lhe abriu um processo de averiguação para determinar se tinha violado o Estatuto do Jornalista fazendo publicidade, a então jornalista se escusou com falta de lembrança, dizendo ao Público que não se lembrara da lei que rege aquela que era a sua profissão"Nem sequer pensei nisso. Não sei se estou a violar qualquer legislação. Terei de ver isso junto do meu advogado".

Nessa altura, a CCPJ anunciou que iria decidir, face a essa violação da lei, se lhe aplicava uma coima (que poderia ir até 5000 euros), tendo, como referido, ordenado que entregasse o título, e adiantado que o pedido de renovação da carteira, a existir, poderia ou não ser deferido.

“Não estou contra a lei, o jornalista deve ter a sua carteira. Aquilo que se tentou fazer-me é ridículo”

Aparentemente, MJA não terá tentado, desde então, reaver ou renovar a carteira. Em 2007, na citada entrevista ao Diário Económico, disse sobre o assunto: "Não teve importância nenhuma. Foi mais uma manifestação exuberante da invejazinha. Já nem me lembro." Agora, no Alta Definição, explica que nunca precisou dela: “Não precisei de a mostrar [à carteira profissional] nem no Vaticano, ninguém ma pediu, nem no gabinete do PM, nem o Dr Mário Soares quando fiz os livros com ele, ninguém ma pediu. Não estou contra a lei. O jornalista deve ter a sua carteira. Estou só a dizer que aquilo que se tentou fazer-me pareceu sobretudo ridículo.”

Malgrado reconhecer que a habilitação com carteira profissional é uma obrigação legal de quem desempenha funções jornalísticas e se apresenta como jornalista, aplicando-se assim a todos os jornalistas, MJA apresenta-a, no que lhe diz respeito, como um ataque (à imagem do que diz sobre o processo da CCPJ em 2006) do qual agradece ter sido “defendida” e de que promete “não fazer caso”: “Houve uma inacreditável generosidade e até pessoas com espaço televisivo, de algumas que eu não esperava, vieram por elas dizer ‘ela é jornalista, caramba’. E portanto eu meti uma coisa na cabeça muito muito a sério, que é não fazer caso.”

Já em 2022, numa “entrevista de vida” ao Expresso, descrevera a situação que em 2006 a levou a perder a carteira como “uma campanha motivada pela inveja”. Mas, curiosamente, nessa altura – há dois anos – dava a entender possuir o título: “Sei de quem partiu a ideia de fazer uma campanha contra mim, aliás, gorada. (...)  O que eu quero dizer é: um, foi motivado pela inveja; dois, não me afetou minimamente; três, pedi ao José Miguel Júdice que me ajudasse a desenvencilhar-me daquilo e a reaver a carteira. Demorou muito pouco tempo.”

E, mais à frente na mesma entrevista, reclama, tendo então 77 anos, estar a “fazer jornalismo” há mais de cinco décadas: “Como é que eu posso sentir-me fora do baralho quando ando há mais de 50 anos a fazer jornalismo?”

Conselho de Redação da SIC questionou Ricardo Costa  

Mas voltemos a 8 de outubro, quando o DN noticiou o facto de o primeiro-ministro ter, no mesmo dia em que fizera comentários sobre a atividade dos jornalistas e a necessidade da respetiva “valorização”, escolhido uma pessoa sem título profissional para conceder a primeira “grande entrevista” desde que entrara em funções.

Então confrontado pelo DN com a circunstância de Avillez não ter carteira profissional, Ricardo Costa, o diretor de informação da SIC, respondeu: “Não percebo a questão, nem eu nem ninguém.”

Já o Conselho de Redação (CR) da SIC, que o DN ouviu também nesse dia, teve uma reação bastante diferente, assegurando estar atento à questão mas não poder pronunciar-se “antes de discutir o assunto com a profundidade necessária e com os devidos interlocutores, nomeadamente a direção de informação”.

Uma semana depois, a 14 de outubro – de acordo com o respetivo comunicado, ao qual o DN teve acesso – este órgão eleito pelos jornalistas da SIC, que representa a redação e é presidido, por inerência, pelo diretor, reuniu com Ricardo Costa e colocou-lhe várias questões a propósito da entrevista de MJA.

A saber: o facto de “a entrevistadora não pertencer aos quadros da SIC, ter sido identificada como jornalista sem ter carteira profissional e ser uma comentadora declaradamente de direita, com posições em antena consistentemente mais críticas à oposição do que à AD”. Para os membros eleitos do CR, a redação teria de conhecer as razões da escolha de alguém exterior à mesma, “algo não habitual nas entrevistas políticas da SIC e SIC Notícias”.  

Montenegro escolheu Avillez; SIC “comprou”

Ainda de acordo com o comunicado do CR, Ricardo Costa explicou que Montenegro decidira conceder a sua primeira entrevista a Avillez e que esta contactara, em julho, a direção de informação da SIC para saber do respetivo interesse. O qual teria sido de imediato garantido, sendo “os jornalistas titulares do Jornal da Noite (...) avisados atempadamente da entrevista, bem como a editora de política”.

Assegurando nunca ter estado em causa que “a esmagadora maioria das entrevistas – políticas ou outras – deve ser feita por profissionais da SIC”, Costa  disse aos representantes da redação “não abdicar de poder aceitar propostas casuísticas de colaboradores”.

Qualificando Avillez como “a mais perene e importante entrevistadora da democracia portuguesa”, o responsável pela informação da estação asseverou não ter tido “em momento algum” dúvidas sobre “as capacidades de MJA”, certificando porém que a sua “identificação como jornalista em oráculo [legenda identificadora] foi um lapso e não deveria ter acontecido”.

Costa também disse considerar importante sublinhar que não tem quaisquer dúvidas sobre a importância da carteira profissional de jornalista, mas que “a realização de colaborações pontuais não se enquadra na mesma circunstância”.

Os membros eleitos do CR, no entanto, insistiram em que “as entrevistas nos espaços de informação da SIC e da SIC Notícias devem ser feitas por jornalistas da SIC”. Admitindo embora haver “outros exemplos de colaborações pontuais e que seria difícil a recusa neste caso concreto”, defenderam que “a realização de entrevistas por comentadores, ainda mais quando têm posições próximas do partido do entrevistado, pode gerar no telespectador dúvidas sobre a credibilidade do trabalho e, no limite, sobre a informação da SIC.”  

“Não cabe ao PM definir as questões nem o tom das perguntas”

Na mesma ocasião, os membros eleitos do CR abordaram as críticas que o primeiro-ministro fizera aos jornalistas a 8 de outubro, na conferência “O futuro dos media”. Referiram nomeadamente as acusações de Montenegro de que “a maior parte dos jornalistas tem um auricular no qual lhes estão a soprar a pergunta que devem fazer e outros pegam no telefone para fazer a pergunta que já estava previamente feita”, e o seu conselho à “comunicação social de que deve ser mais tranquila na forma como informa, na forma como transmite os acontecimentos, e não tão ofegante”.

Também foi referida pelo CR a observação feita pelo PM, exatamente no dia da sua entrevista a MJA na SIC  (na qual , recorde-se, disse à entrevistadora: “É muito fácil ser entrevistado pela Maria João Avillez, porque faz as perguntas e dá as respostas”), de que “os jornalistas não estão a valorizar a sua própria profissão, porque parece que está tudo teleguiado, está tudo predeterminado”.

Para os membros eleitos do CR, Montenegro tem direito à sua opinião, mas não lhe cabe “definir nem os temas, nem as questões nem o tom das perguntas que lhe são feitas”. A gravidade das declarações do PM deveria, advogam, “ter motivado uma explicação e uma contextualização maiores e mais aprofundadas nos espaços de informação da SIC e da SIC -N”.

Ricardo Costa respondeu que as declarações foram “infelizes e desastradas” mas que não tiveram “gravidade” para justificar uma nota da Direção de Informação nem uma peça nos jornais, para além das que foram feitas a relatar a situação”.  

Lembrando que a RTP e a TVI “expuseram a questão e tomaram uma posição”, os membros eleitos do CR concluíram: “A Direção de Informação deveria ter tomado uma posição pública para defender a redação”.