Convenção do Chega
13 janeiro 2024 às 22h47
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André Ventura não se modera e aposta tudo em guerras culturais

Reeleito com 98,9% dos votos, diz que a escolha se faz entre “o Portugal de 2024” do Chega e o de 1974, de Pedro Nuno Santos. Ataca ideologia de género e imigrantes islâmicos.

O combate à “política de retrete”, como Rita Matias chamou à lei que impede a discriminação de crianças trans e não binárias na escola, aos imigrantes, que “vêm obrigar as nossas mulheres a usar burcas”, e às políticas de promoção da “ideologia e igualdade de género”. Foram estes os pratos fortes do segundo dia da Convenção Nacional do Chega, em Viana do Castelo. Apostado em captar os descontentes e em capitalizar o ressentimento de quem sente estar a ficar para trás e a ver falhar o Estado social, o Chega aposta tudo nas chamadas guerras culturais.

Números manipulados

No primeiro discurso que fez ao Congresso, André Ventura - que foi reeleito com 98,9% dos votos - não hesitou sequer em manipular números dados pelo governo sobre o Orçamento do Estado para 2024 para dizer que vai cortar 400 milhões em políticas de combate à discriminação entre homens e mulheres. “Garanto-vos uma coisa, aquele dinheiro todo que vamos dar às ideologias de género, supostamente para promover a igualdade de género, eu vou pegar nesses milhões todos e vou dizer a essas associações todas: ‘Esqueçam, que não vão receber um tostão’”, declarou.

Na verdade, este número baseia-se numa “avaliação de impacto” das medidas orçamentais que, em várias áreas, se considera contribuírem “direta ou indiretamente” para o combate à desigualdade entre homens e mulheres. Nem todas estas 564 medidas, que perfazem os 426 milhões de euros, são exclusivamente para combater a desigualdade de género. Aliás, segundo dados avançados pelo jornal Público em outubro, 39% apresentavam a igualdade como “um objetivo importante”, mas não a “razão principal” do que é proposto, sendo que 81% destes mais de 400 milhões de euros cabem nesta categoria.

Isso não impediu André Ventura de dizer que vai transferir essas verbas para reforçar as remunerações das forças de segurança. De resto, o líder do Chega voltou a colocar-se ao lado do protesto que nos últimos dias tem decorrido por todo o país, protagonizado por PSP e GNR, que reclamam um subsídio equiparado ao que ganha a PJ.

A ameaça da imigração

Tentando descolar da imagem racista e xenófoba, Ventura aproveitou o facto de na primeira noite ter tido dois brasileiros (um deles racializado) a discursar para garantir que não há xenofobia no Chega. Deu Marcus Santos, dirigente do Chega do Porto, brasileiro e negro, como exemplo dos imigrantes de bem, que respeitam os valores nacionais, por oposição aos que “vêm obrigar as nossas mulheres a usar burcas pelas cidades” e que associou ao tráfico humano e ao terrorismo. “O que eu gostaria era que todos os portugueses tivessem este amor à bandeira que o Marcus e outros como ele têm”, declarou, para se referir ao brasileiro que bateu continência à bandeira nacional quando saiu do palco.

O discurso de Ventura serviu ainda para marcar outra fronteira: uma que separa o Portugal de 2024, que associa ao Chega, e o de 1974, ano da Revolução, que colou a Pedro Nuno Santos, acusando-o de querer voltar ao PREC. E não hesitou sequer em revisitar uma ferida aberta dos tempos da Guerra Colonial, pondo-se do lado dos antigos combatentes e atacando a decisão do governo de apoiar com 34 milhões de euros um museu em Angola. “São uns traidores, põem dinheiro em quem matou portugueses e sangue português, são traidores da nossa memória e da nossa pátria”, atacou.

De resto, também está apostado em passar a ideia de que as eleições se vão jogar entre o Chega e o PS, para contrariar o discurso de voto útil na AD de Luís Montenegro. E acenou com o “trio dos horrores”, que, em seu entender, seria um governo com Pedro Nuno Santos, Paulo Raimundo e Mariana Mortágua no Conselho de Ministros.

Neste primeiro discurso, André Ventura não falou de saúde nem de escola pública, mas falou para professores e idosos (a quem prometeu pensões mínimas no valor do salário mínimo em seis anos), para jovens (afirmou como “desígnio” o regresso dos que emigraram) e forças de segurança, a quem garantiu aumentos salariais. Tudo isto sem se comprometer com números nem contas, mas admitindo que será preciso “cortar muito” para cumprir as promessas e dando como único exemplo de corte os tais 400 milhões de euros que disse servirem hoje para promover a ideologia de género.

Se alguns vaticinavam um Chega mais moderado, a previsão falhou. Ventura apresenta-se como “alternativa” e “candidato a primeiro-ministro”, mas isso não implica qualquer moderação. E isso foi visível em várias intervenções. Numa delas, a deputada Rita Matias apresentou-se contra as casas de banho mistas, levantando a sala. Noutra, o militante Rui Cruz, que escreveu uma moção com o ex-militante do PSD António Pinto Pereira a pedir um código de ética, nem hesitou em apresentar-se como defensor do fascismo. “Sou pai, sou avô e… sou fascista”, declarou.

“Não podemos permitir que terroristas entrem no país e criem aqui as suas raízes”, defendeu o deputado Filipe Melo, enquanto a vice-presidente Patrícia Carvalho usou o seu exemplo como dirigente para tentar provar que o Chega não é machista e atacou “as manas Mortágua”, que acusa de apoiarem uma “imigração islâmica” que põe em causa os direitos das mulheres e que as “obriga” a “usar véu”.

margarida.davim@dn.pt