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Sociedade
26 novembro 2024 às 01h26
Leitura: 17 min

Violência policial: “Polícia abusa dos que estão mais frágeis”

Odair Moniz morreu há um mês, baleado por um agente da PSP na Cova da Moura. Na primeira Assembleia Popular dos Bairros, convocada pelo coletivo Vida Justa, relatos de abusos policiais cruzam-se com propostas de defesa, ação e sobrevivência. E uma conclusão: a polícia ataca os que identifica como mais fracos.

"Estava no bairro um miúdo a cantar. Chegou um polícia e disse que não podia cantar. Ele perguntou porquê e o polícia deu-lhe uma chapada.”

A voz é de uma residente do bairro Padre Cruz, em Lisboa. Estamos no grupo de debate sobre violência policial da primeira Assembleia Popular dos Bairros, convocada pelo movimento Vida Justa para este domingo, 24 de novembro, um mês e três dias após Odair Moniz ter morrido na Cova da Moura sob os disparos de um agente da PSP. Maria – chamemos-lhe assim – estava a exemplificar a “banalidade” do abuso policial, em resposta a um dos outros intervenientes do grupo, que sugerira que uma forma de o combater seria os polícias usarem bodycams (câmaras de corpo, na tradução à letra, como sucede com os seus congéneres americanos). “Eles podem ter câmaras que farão com elas o mesmo que fazem com as placas do nome: quando vão malhar nos putos tiram as placas”, diz Maria, com a placidez paciente de quem relata uma evidência. “Passam a desligar as câmaras.”

Este é um dos seis grupos de trabalho da assembleia – os outros são “habitação”, “salários, preços e serviços públicos”, “imigração”, “transportes” e “poder popular nos bairros”. Aqui somos uns 15, sentados no alto do auditório do Centro Cultural de Carnide, enquanto na parte de baixo reúne, em algazarra e entusiasmo, o grupo do poder popular.

Aqui, como é normal pelo tema, o tom é de gravidade e revolta. Fala Carla Sanches, 27 anos, moradora na Torre da Marinha, no Seixal: “Na noite anterior à morte do Dá [Odair Moniz, o homem negro de 43 anos que um agente da PSP baleou na madrugada de 21 de outubro na Cova da Moura, em circunstâncias em investigação pela Polícia Judiciária], estive na Cova da Moura das 11 da noite às seis da manhã. As ruas estavam cheias de gente e a PSP foi lá. Com grandes carrinhas, a abrir, cagando se atropelavam alguém no meio de tanto adulto e criança. Conto isto porque a morte do Dá não veio do nada. Aconteceu num contexto.”

Não sendo da Cova, Carla esteve lá naquele sábado à noite, a descobrir uma realidade chocante. “Eles punham-se nas entradas das ruas com aquelas armas grandes [shotguns] e tinhas de dizer onde ias, não podias ir com as mãos nos bolsos, não podias pôr o capuz, não podias ter garrafas. Como é, não podes circular? Não podes usar capuz  estando frio? Não podes trazer uma garrafa que compraste com o teu dinheiro? Que loucura é esta?” Deixa a pergunta ecoar em quem a escuta. “E bateram em pessoas – por exemplo bateram num rapaz que é militar e estava a ajudar uma senhora mais velha a tirar as assadas [na Cova da Moura é comum estarem senhoras na rua a assar milho para vender]. Mas o que constatei é que as pessoas normalizam muito aquilo. A polícia ia para uma rua e eles tiravam dali a música e iam para outra. E  pensei: ‘Vivo numa bolha. Se isto fosse na Torre da Marinha vinha nos jornais, mas aqui sucede e ninguém fala, é silenciado’.”

Porquê?, pergunta. Adianta uma resposta: “A cor da pele faz a diferença”. Porém, reflete, “também há negros na Torre da Marinha, não tantos como na Cova, mas há. Só que existe na Torre o que se chama polícia de proximidade, vamos aos mesmos cafés que os polícias, convivemos com eles. Mesmo sendo uma mulher negra e com rastas, o tratamento que a polícia me vai dar na Cova ou na Torre da Marinha é diferente.”

Há outra diferença: a Cova da Moura é, de génese, um bairro “ilegal”, de autoconstrução, associado à comunidade de origem africana. Um território visto como “marginal”, classificado como “Zona Urbana Sensível”, ou ZUS (expressão utilizada a partir de uma diretiva da PSP de 2006 para designar aquilo que antes se referia como “bairros problemáticos” ou “de risco”, mantendo embora toda a carga discriminatória das anteriores).

“Não se explica tudo com a cor da pele”

“Porque é que nós pretos não podemos estar na Cova a ouvir música e a beber na rua e no Bairro Alto os brancos podem estar a fazer porcaria e não lhes acontece nada?”

Agora é Margarida, 30 anos, a perguntar. Como Carla, é negra; como outras pessoas neste grupo, pede que o DN não use o seu nome verdadeiro. Vive na linha de Sintra, integra o coletivo Vida Justa e é técnica de intervenção social. “Temos de defender os nossos direitos. Quando a polícia abusa tem de haver queixas. Já me quiseram, do nada, revistar e avisei: ‘Não me podem revistar sem me dizerem de que sou suspeita’. Liguei a uma familiar advogada e ela largou tudo para ir ter comigo. Sei que não é toda a gente que tem um advogado na família, mas não podemos aceitar tudo, admitir estas ilegalidades. E há muita ilegalidade. Por exemplo, há uma coisa inacreditável que acontece: é comum as escolas chamarem a polícia quando há um problema e eles vão lá falar com miúdos de 10 e 11 anos. Falam com crianças sozinhas, sem sequer avisarem os pais. Isto não pode acontecer, é completamente ilegal.”

Outra coisa que não pode acontecer, acusa Margarida, é sentir que a polícia só está para oprimir e abusar e não para ajudar, socorrer e proteger. “Uma vez precisei da polícia e fui à esquadra de Rio de Mouro”, conta. “Disseram algo do tipo ‘vocês são pretos que se entendam’. Só quando fui à Polícia Judiciária é que foi para a frente.” O caso, explica depois ao DN, remonta a 2009, e dizia respeito a uma agressão sexual; os perpetradores foram condenados por várias agressões semelhantes e ainda cumprem pena.

Passou muito tempo, não é de esperar que as coisas tenham entretanto mudado no acolhimento policial? Margarida torce o nariz. “Não mudou muito. Uma amiga minha (vizinha) teve problemas de violência doméstica há pouco tempo e na esquadra de Rio de Mouro tiveram uma atitude fria – palavras dela.”

Uma mulher branca que pediu, no início da conversa, para que as suas palavras não fossem gravadas intervém. “Vocês sentem que a polícia usa muita violência nos bairros e que isso tem a ver com a cor da pele. Mas a polícia também faz isso com pessoas não negras. O que me trouxe aqui foi a situação mais recente com o meu filho, que tem 17 anos. Ele começou a ter comportamentos menos adequados e foi tomado de ponta. E foi agredido com um estalo. Quando fomos denunciar isso à esquadra o superior disse ‘Isso não pode ter acontecido’, chamou os agentes todos e perante nós perguntou a cada um se viu alguma coisa. E eles, claro, responderam em uníssono que não viram nada.” Faz uma pausa, olha em volta. “O que quero dizer é que o abuso de poder por parte da polícia recai sobre os que estão mais frágeis, sobre quem a polícia vê como mais fraco. E que estou aqui para ajudar a lutar contra isso, estou disposta a intervir em situações nas quais seja preciso denunciar por escrito.”

Diogo, negro, corrobora: “Vivo em Setúbal na Bela Vista [complexo de bairros sociais naquela cidade] e cresci a ver situações de violência da polícia. Quando era criança estava na escola e houve uma morte de uma pessoa que tinha cometido um crime [estará a referir o ocorrido em 2009, quando um jovem da Bela Vista foi atingido por uma bala da PSP durante um assalto no Algarve], e não podíamos sair porque a polícia tinha ocupado o bairro. Quando deu para sair fomos todos a correr e quando cheguei a casa vi pela janela a polícia a passar como se fosse, sei lá, a guerra na Síria. Tem muito racismo, é verdade, mas eu conhecia o Rúben, que foi assassinado pela PSP no bairro com um tiro na cabeça porque ia de moto sem capacete. O Rúben era branco e também era perseguido.” (Refere-se à morte de Rúben Marques, em março de 2013, explicada pela PSP como devendo-se ao despiste da moto que o jovem, de 18 anos, conduzia, após agentes terem disparado tiros de balas de borracha “para o ar” como “advertência”. A autópsia não encontrou indícios de que tenha sido atingido por qualquer projéctil).

E ainda no outro dia, continua Diogo, “estava com amigos na Bela Vista a fazer um bocado de barulho. A polícia veio e começou a revistar – o costume – e um colega meu branco começou a filmar. E veio um agente, deu-lhe uma cabeçada, levaram-no e espancaram-no.” Respira fundo. “Acho que é importante sabermos os nossos direitos, os jovens saberem que não têm de dar o BI e aceitar ser revistados só porque apetece à polícia. E saberem falar e dar a volta – é por aí.”

“Se és negro e andas na rua, és suspeito – e não é só nos ‘bairros’”

Marta, que se apresenta como jurista com “especialidade de Direito Penal”, pega no repto de Diogo: “Falámos aqui de vários tipos de comportamentos da polícia que não são legais, mas quando a policia faz algo que não é legal, que podemos fazer?”  

Celso Lopes, o “animador” do grupo sobre violência policial e um dos “cinco da Cova da Moura” (o grupo de cidadãos negros que em fevereiro de 2015 foram sequestrados, gravemente agredidos e insultados com impropérios racistas na esquadra de Alfragide, num caso de que resultaram, em 2021, oito condenações, incluindo a do chefe da esquadra) falara disso ao lançar o mote da discussão. Contou como uma vez ia a passar na rua na Cova da Moura e a PSP estava a mandar toda a gente encostar à parede para a revista. “Nesse dia por acaso não tinha a identificação comigo mas tinha o manual de sobrevivência, um manual que fizemos sobre as leis e os nossos direitos, e quando veio o agente eu sabia que ele não podia pedir-me a identificação sem apresentar um motivo válido. Comecei a ler-lhe o que está no manual – e ele irritado quis tirar-mo da mão, pôs-se a puxar e rasgou-o. Entretanto chegou o superior dele, muito mais calmo, e expliquei-lhe o que se estava a passar e ele acabou por admitir que eu tinha razão.”

Tudo começa, prossegue Celso, “no facto de eles serem formados de uma forma em que nós não somos vistos como pessoas, como cidadãos. Há um problema muito grave com os agentes que policiam uma comunidade como a minha: incapacidade de diálogo. Mas nestas comunidades também precisamos da ação da polícia. É muito importante que eles percebam que não é com a violência que devem lidar connosco. Não se pode categorizar ou marginalizar comunidades inteiras só porque somos provenientes de backgrounds diferentes.”

Não se pode. Mas que dirá sobre isso Eduardo, de 26 anos, que, numa voz pausada e com forte sotaque guineense, conta o que se passa com ele, morador no centro de Lisboa, no bairro de Alvalade? Estudante do 3º ano de Direito  na Universidade de Lisboa, estava um belo domingo a caminho do supermercado, na zona da Avenida de Roma, quando foi mandado parar por um carro da polícia. “Eles vinham atrás de mim, não tinha dado por isso. Apitaram e saíram do carro e perguntaram o que estava a fazer naquela zona. Pediram a minha identificação e um deles levou-a a pôs-se ao telefone imenso tempo. Eu só perguntava: ‘O que é que fiz?’

Esteve uns 30 minutos à espera de que o deixassem prosseguir. “Tinha a consciência de que não tinha feito nada de mal, mas é muito desconfortável estar num país que não é o meu e saber que só porque estou a andar na rua me veem como bandido. E ter de explicar, de provar que não sou.”

Como se prova não ser um bandido? No caso de Eduardo, mostrando o cartão de estudante. “Quando os agentes o veem mudam logo de atitude. Mas estou habituado a que as pessoas olhem para mim como um perigo. Naquela zona da cidade, fogem de mim. No outro dia estava a sair da faculdade e ir para casa, já era de noite, e uma menina mudou de caminho para não se cruzar comigo. Muitas vezes isso sucede, as pessoas mudarem de caminho. Retirei daqui que se és negro e andas na rua, és suspeito. Não é só no bairro social: há zonas da cidade em que não é suposto andares.”  

Este estudante de Direito questiona-se sobre o porquê desse olhar. “Já pensei que se calhar há mais presos negros, e é por isso que as pessoas agem assim. Temos em crioulo um ditado que é: ‘Um peixe só pode estragar uma rede’.”

Ao longo da conversa com o DN, Eduardo mantém um olhar sereno, refletido, como se a revolta fosse um gasto inútil de energia. “Isto da polícia não é nada para mim, é júnior. E não tenho nada para criticar aos portugueses, tenho amigos portugueses incríveis, que me ajudaram muito. Ao contrário de alguns guineenses que acham que se és preto não podes ter ambições, não podes fazer certas coisas.” Coisas como o sonho que trouxe da Guiné este filho de uma família “sem possibilidades”: estudar.

À assembleia dos bairros veio neste domingo “a convite de uma amiga” e porque pensou que “podia dar uma contribuição e aprender”. E aprendeu: “Conheci a realidade de como as pessoas vivem nos bairros e de como age a polícia. E que doravante se voltar a acontecer alguma coisa comigo devo perguntar por que me mandaram parar, quais os motivos, e vou colaborar com eles de maneira a que percebam que todos precisamos de ser tratados de forma igualitária e sem discriminação.”

Ao longo do evento, que decorreu das 10 às 19, ouviu-se muitas vezes o grito “estamos juntos, estamos fortes”. No comunicado final, anunciou-se uma nova assembleia, e “uma grande marcha dos bairros” em março de 2025, “que vai percorrer os territórios populares da Área Metropolitana de Lisboa”. O objetivo, como se lia no documento distribuído à chegada, é "construir uma comunidade de luta". Lutar por uma vida justa.