"Estava no bairro um miúdo a cantar. Chegou um polícia e disse que não podia cantar. Ele perguntou porquê e o polícia deu-lhe uma chapada.”
A voz é de uma residente do bairro Padre Cruz, em Lisboa. Estamos no grupo de debate sobre violência policial da primeira Assembleia Popular dos Bairros, convocada pelo movimento Vida Justa para este domingo, 24 de novembro, um mês e três dias após Odair Moniz ter morrido na Cova da Moura sob os disparos de um agente da PSP. Maria – chamemos-lhe assim – estava a exemplificar a “banalidade” do abuso policial, em resposta a um dos outros intervenientes do grupo, que sugerira que uma forma de o combater seria os polícias usarem bodycams (câmaras de corpo, na tradução à letra, como sucede com os seus congéneres americanos). “Eles podem ter câmaras que farão com elas o mesmo que fazem com as placas do nome: quando vão malhar nos putos tiram as placas”, diz Maria, com a placidez paciente de quem relata uma evidência. “Passam a desligar as câmaras.”
Este é um dos seis grupos de trabalho da assembleia – os outros são “habitação”, “salários, preços e serviços públicos”, “imigração”, “transportes” e “poder popular nos bairros”. Aqui somos uns 15, sentados no alto do auditório do Centro Cultural de Carnide, enquanto na parte de baixo reúne, em algazarra e entusiasmo, o grupo do poder popular.
Aqui, como é normal pelo tema, o tom é de gravidade e revolta. Fala Carla Sanches, 27 anos, moradora na Torre da Marinha, no Seixal: “Na noite anterior à morte do Dá [Odair Moniz, o homem negro de 43 anos que um agente da PSP baleou na madrugada de 21 de outubro na Cova da Moura, em circunstâncias em investigação pela Polícia Judiciária], estive na Cova da Moura das 11 da noite às seis da manhã. As ruas estavam cheias de gente e a PSP foi lá. Com grandes carrinhas, a abrir, cagando se atropelavam alguém no meio de tanto adulto e criança. Conto isto porque a morte do Dá não veio do nada. Aconteceu num contexto.”
Não sendo da Cova, Carla esteve lá naquele sábado à noite, a descobrir uma realidade chocante. “Eles punham-se nas entradas das ruas com aquelas armas grandes [shotguns] e tinhas de dizer onde ias, não podias ir com as mãos nos bolsos, não podias pôr o capuz, não podias ter garrafas. Como é, não podes circular? Não podes usar capuz estando frio? Não podes trazer uma garrafa que compraste com o teu dinheiro? Que loucura é esta?” Deixa a pergunta ecoar em quem a escuta. “E bateram em pessoas – por exemplo bateram num rapaz que é militar e estava a ajudar uma senhora mais velha a tirar as assadas [na Cova da Moura é comum estarem senhoras na rua a assar milho para vender]. Mas o que constatei é que as pessoas normalizam muito aquilo. A polícia ia para uma rua e eles tiravam dali a música e iam para outra. E pensei: ‘Vivo numa bolha. Se isto fosse na Torre da Marinha vinha nos jornais, mas aqui sucede e ninguém fala, é silenciado’.”
Porquê?, pergunta. Adianta uma resposta: “A cor da pele faz a diferença”. Porém, reflete, “também há negros na Torre da Marinha, não tantos como na Cova, mas há. Só que existe na Torre o que se chama polícia de proximidade, vamos aos mesmos cafés que os polícias, convivemos com eles. Mesmo sendo uma mulher negra e com rastas, o tratamento que a polícia me vai dar na Cova ou na Torre da Marinha é diferente.”
Há outra diferença: a Cova da Moura é, de génese, um bairro “ilegal”, de autoconstrução, associado à comunidade de origem africana. Um território visto como “marginal”, classificado como “Zona Urbana Sensível”, ou ZUS (expressão utilizada a partir de uma diretiva da PSP de 2006 para designar aquilo que antes se referia como “bairros problemáticos” ou “de risco”, mantendo embora toda a carga discriminatória das anteriores).