Tecnologia
26 maio 2024 às 09h11
Leitura: 12 min

O digital tem uma pegada ambiental igual à aviação

Ao enviar um e-mail ou uma fotografia estamos a ativar dezenas de data centers, que consomem quantidades enormes de energia e emitem CO2. O mundo digital, no seu todo,  é responsável por 3% das emissões e o 4º maior consumidor de energia a seguir à China, EUA e Índia. A IA só veio agravar o cenário. 

Será que os ativistas climáticos sabem que também estão a deixar uma pegada carbónica quando convocam protestos pelo whatsapp ou publicam nas redes sociais os vídeos das suas ações que rapidamente viralizam na net? Provavelmente não, mas na verdade estarão a conectar-se a qualquer coisa como 100 data centers em simultâneo em várias partes do mundo, que consomem enormes quantidades de energia e emitem largas quantidades de gases com efeito de estufa. E se soubessem, estariam, estaríamos todos dispostos a mudar o modo de comunicarmos?

Em plena era digital vivemos na ilusão da desmaterialização. Porque usamos menos papel e comunicamos sem fios, tudo nos parece limpo, sem espinhas. Mas não é assim. Para além dos 1,2 milhões de quilómetros de cabos submarinos de fibra ótica, que ligam continentes, e de antenas cada vez mais potentes a emitir radiações, estima-se que a Internet e a indústria digital associada produzam aproximadamente as mesmas emissões de CO2 por ano do que a aviação. De acordo com estimativas do Programa da ONU para o Meio Ambiente, o setor digital será mesmo responsável por cerca de 3% das emissões globais de gases com efeitos de estufa e a tendência vai no sentido de um rápido reforço da digitalização e não o inverso.

O gesto mais singelo que fazemos todos os dias de enviar um e-mail, uma fotografia ou colocar um ‘gosto’ ou comentário nas redes sociais viaja através de múltiplas camadas da infra-estrutura cibernética, consumindo muita energia fóssil, nomeadamente, em servidores alojados em centros de dados de grandes proporções. É por isso que há quem lhe chame, à internet, “ a maior máquina movida a carvão na Terra”.

E à medida que a tecnologia vai ficando mais sofisticada, a pegada carbónica aumenta. É o caso da Inteligência Artifical generativa que usamos para obter respostas simples, que consome quatro a cinco vezes mais energia que uma busca convencional na Net, adverte Paul Gillaume Pitron, jornalista, investigador e autor de The Dark Cloud - How the Digital Industry is Costing the Earth, entre outros livros sobre a pegada ambiental do setor digital.

Não é, por isso, de estranhar a estimativa de, já no próximo ano, esta indústria se transformar no quarto maior consumidor de energia do mundo, atrás de países como China, Índia e EUA.

É um paradoxo, mas quando entramos no mundo da nanotecnologia, “quanto mais fino, discreto e pesado é o aparelho no seu bolso, mais óbvias podem ser as consequências ambientais no outro extremo do mundo, de onde esses produtos provêm, que é numa mina”, disse o especialista francês numa entrevista ao podcast norte-americano HC Insider.

Só o processo de fabrico de um smartphone, por exemplo, equivale a cerca de 80% das emissões de carbono ao longo da sua vida útil. Se pensarmos que existem cerca de 34 mil milhões de dispositivos (telemóveis, tablets e computadores) em circulação e que estes são feitos de mais de 15 metais em média, podemos logo ter uma ideia do impacte ambiental, observa Paul Guillaume Pitron. “Para extrair os minerais do solo e refiná- los é necessária água e eletricidade para transformar o recurso em metal. E para mover e juntar todos os componentes de várias partes do mundo, são necessários aviões que usam petróleo”. O especialista aprofunda a explicação: “Se calcularmos a quantidade total de recursos que são incluídos, direta e indiretamente, no produto acabado que é o seu telefone, teremos o que chamamos MIPS - uma entrada de material por unidade de serviço-, que é uma relação entre o produto final e todos os recursos usados. ​Essa proporção pode ser de 100 para um, 200 ou 300 para um, se estivermos a falar de uma caneta, uma camisa ou um livro. A proporção mais alta possível foi calculada para o microchip do smartphone e é 16.000 por 1, o que significa que requer 16.000 vezes mais recursos do que a forma final do produto”.

Os mega data centers

Este é apenas o lado das matérias-primas, mas se quisermos avaliar o impacto energético basta-nos olhar para as mega-estruturas que são necessárias para armazenar a informação na grande nuvem, os data centers. São espaços gigantes, mas ao mesmo tempo discretos, que as plataformas tecnológicas mantêm longe do olhar público, por várias razões, uma das quais para “manter a ilusão de um mundo desmaterializado”. Segundo o investigador francês, muitas vezes “são construídos sem identificação da empresa, que só vem à luz do dia à posteriori”. 

Por outro lado, porque estes centros necessitam de muita refrigeração e com um impacto visual e ambiental que não dá para esconder, algumas empresas estão a optar por lugares frios e remotos. É o caso da Meta, dona do Facebook, que deslocou a sua ‘nuvem’ para o local mais frio do Planeta, a Lapónia norueguesa, a 100 Km do Círculo Polar Ártico, onde a refrigeração é gratuita. Entre os dez maiores data centers mundiais, três situam-se nos Estados Unidos, mas o maior está na China, a sul de Pequim, e ocupa uma área de 600 mil metros quadrados, o equivalente a 110 campos de futebol.

E porque precisamos tanto deles? Basicamente porque já nem admitimos a hipótese de não ter a net rápida e disponível a toda a hora, seja em que parte do mundo for, e para isso é preciso assegurar redundância para garantir que não há falhas. Podiamos pensar que enviar um simples mail por telefone para um colega dentro do mesmo escritório não exige grande coisa, mas, como explica Pitron, na verdade “o e-mail vai percorrer milhares de quilómetros, primeiro alcançará uma antena de 4G no topo do prédio onde estou, então o sinal será transformado em sessões pulsantes de luzes no cabo de fibra óptica que descerá pelo prédio até ao solo, debaixo do alcatrão. E aí vai juntar-se a outros likes e e-mails num data center, viajar até à costa do meu país, onde estou agora, que é a França, vai passar por um cabo submarino de fibra ótica pelo Oceano Atlântico até aos Estados Unidos, porque a minha ligação foi provavelmente produzida por um motor de busca americano. Ele será novamente armazenado em data centers na costa leste ou oeste dos EUA e viajará de volta quase à velocidade da luz , 200.000 quilómetros por segundo, através do Atlântico novamente e chegará ao telefone do colega.”

A expansão do tráfego virtual promete continuar a aumentar o investimento nestes centros. Parte desse reforço deve-se também à crescente política de cookies dos sites que consultamos, que consomem hoje muito mais dados do que aqueles que realmente chegam a ser utilizados. 

Paul Guillaume Pitron considera que há uma coleta exagerada de dados que, com grande probabilidade, não são todos utilizados. E se é verdade que também há esforços de mitigação destes impactes negativos, com cada vez mais centros de dados a terem processos de energia renovável para a sua refrigeração, “o ritmo da mitigação é menor do que o crescimento exponencial de todos os dados”. 

Enquanto os dados significarem conhecimento e conhecimento for poder, não se vai abdicar desse poder, ou seja, da contínua coleta e tratamento de dados, acredita o investigador.

COMO BAIXAR A PEGADA DIGITAL?

1. Pensar antes de clicar
A partir do momento em que tomamos consciência de que cada gesto online tem um impacto ambiental podemos adotar novas rotinas e comportamentos para reduzir a nossa pegada digital e ambiental. Aqui ficam algumas publicadas noThe Guardian.

2. Evitar a Inteligência Artificial
Ao evitar fazer perguntas à Inteligência Artificial generativa também ajudamos a baixar o consumo energético, uma vez que fazer perguntas e obter respostas gasta quatro a cinco vezes mais do que fazer uma pesquisa normal.

3. Cancelar newsletters indesejadas
Priorizar os conteúdos que queremos receber na nossa caixa de correio eletrónico é um passo para reduzir o tráfego virtual. Por isso, cancelar a assinatura de newsletters que já não abrimos ou de outros conteúdos indesejados, como spam, também é um contributo para esse objetivo de sustentabilidade.

4. Limpar a desordem virtual
Rever e apagar e-mails antigos, na maior parte das vezes nem lidos, e mais pesados deve ser uma rotina que o ambiente agradece. O mesmo se aplica à eliminação de fotos em duplicado que deve ser feita regularmente, porque ocupa muito espaço no telefone e na nuvem. Pode pesquisar-se periodicamente por “1 MB ou maior” e excluir todos os e-mails com anexos grandes de que já não precise. A pesquisa pelo nome do remetente permite excluir em massa centenas de e-mails de marketing com um clique satisfatório.
Android e iPhone oferecem funcionalidades básicas de libertação de espaço de exclusão em massa para fotos e arquivos. Ou experimente o aplicativo GetSorted.

5. Manter os dispositivos o maior tempo possível
Por muito tentador que seja comprar a última versão do smartphone, convem ter em mente que é no fabrico de um telemóvel novo que está 80% da sua pegada carbónica em toda a sua vida útil. Recondicionar telemóveis e computadores está a tornar-se mais comum e existem sites de comunidades de TI, como  o ifixit.com, que podem ajudar a consertar os produtos por conta própria. Limpar a desordem cibernética também ajuda a prolongar a vida útil do seu dispositivo.

6. Minimize o armazenamento em nuvem
Se é daqueles que tem um grande arquivo fotográfico pode optar pelo analógico para reduzir a sua dependência do armazenamento em nuvem, que consome muita energia. Pode armazenar todas as fotos e arquivos em discos rígidos, protegidos por senha, que só consomem energia quando conectados. Pode ter um backup na casa de um familiar ou amigo, para prevenir risco de roubo ou incêndio. Isso ajuda a economizar dinheiro, pois paga apenas uma assinatura de nuvem.