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Internacional
07 novembro 2024 às 00h11
Leitura: 8 min

Medo, desilusão e indiferença no país que voltou a não estar pronto para eleger uma mulher

A noite acabou cedo em Los Angeles, Califórnia, onde a maioria das pessoas esperava uma vitória de Kamala Harris. Mas os apoiantes de Donald Trump também apareceram. 

As luzes penduradas pelas ruas do bairro Historic Core, em Los Angeles, prenunciavam uma noite brilhante para a democracia norte-americana: vários bares e restaurantes tinham organizado eventos especiais para a divulgação dos resultados presidenciais e as pessoas estavam entusiasmadas. 

Na 4th street, o Continental Club já só tinha lugares de pé pelas 20h00 locais. O espaço estava decorado com vermelho, azul e branco. Os cocktails tinham nomes alusivos à eleição. Havia grupos de mulheres sorridentes ladeados por homens com chapéus vermelhos MAGA. Um grupo de jovens afro-americanos puxava por Donald Trump, irritando os que tentavam ouvir o que John King dizia na CNN, plasmada num ecrã gigante. Havia esperança dos dois lados. Mas só um terminou a noite a sorrir. 

“Não gosto dele como pessoa”, disse Peter, um nome que disse ser um pseudónimo porque não quer que os amigos descubram que votou em Trump. “Mas o povo estava descontente.” Queriam o presidente da economia favorável de volta.

Entre o grupo de afro-americanos que batia palmas e gritava a cada novo estado que Trump ganhava, um dos mais velhos, Terry, disse que queria apenas saber do corte de impostos que o candidato prometeu. “Só votei em Trump porque um dos meus colegas de trabalho me pediu”, admitiu. “Porque é que metade do meu salário vai para o governo? É muito irritante.”

Quando se tornou evidente que a “miragem vermelha” era na verdade um tsunami, os lugares foram ficando vazios. Uma dupla de repórteres da Noruega tentava levantar o queixo do chão, dizendo que não entendiam o resultado. Várias mulheres recusaram reagir, mostrando total indiferença ao que estava a acontecer. “Estou aqui a divertir-me, não me apetece falar de política”, atirou uma. “Sou neutra, não quero dizer em quem votei”, referiu outra. 

Para Alexander Tines, de 41 anos, a noite foi um desastre que terá consequências profundas. Envergando um boné Biden-Harris e uma T-shirt com “Kamala” escrito em letras gordas, Tines envolveu-se numa discussão com um apoiante de Trump, perguntando-lhe se era um fascista que ele queria. 

“Que parte disto é fascismo?”, respondeu o apoiante de Trump, clamando que estava contente porque quer que os Estados Unidos saiam na NATO e parem de enviar dinheiro para a Ucrânia. 

Tines baixou os olhos e suspirou, afastando-se. “Sinto-me zangado com os meus compatriotas, que viveram quatro anos com este tipo e tinham toda a informação sobre o seu passado criminal”, disse ao DN o eleitor democrata. “Tínhamos uma escolha iminentemente superior em termos de liderança, articulação e experiência e escolheram o outro”, continuou. “Em vez da pessoa que queria unir-nos, foram para o tipo que representa a demonização e divisão e não tem uma bússola moral.”

Tines achou que as pessoas se iam lembrar do caos da administração de Trump e iam perceber que ele só está interessado nele próprio. “Também pensei que o aborto ia ser uma questão mais motivadora”, admitiu. 

“Acreditei honestamente que a América estava pronta para eleger uma mulher”, afirmou. “Vi as tendências em relação a direitos reprodutivos, referendos, as outras eleições, e pensei que as mulheres e os jovens iam salvar o dia.”

Não foi isso que aconteceu e Tines ressalvou que não será ele a sofrer as consequências da escolha, mas está muito preocupado com o futuro. 

“É uma posição desconfortável para estar, como alguém que não vai ser afetado por isto. Sou um homem branco. Mas as pessoas que amo sim”, considerou. “As mulheres na minha família vão ser afetadas. Acho que muita gente não tem consciência disso.”

Gabriel Montoya, eleitor registado pelo Peace and Freedom Party, votou em Kamala Harris mas culpa o aparelho partidário pelo resultado. 

“Espero que isto seja um alarme para acordar os democratas, que tentaram pôr uma cara progressista em políticas de direita e esperaram que ninguém se apercebesse porque não eram Trump”, disse ao DN. “Aparecer ao lado dos Cheneys, promover um pacote para a fronteira escrito pelo partido republicanos e financiar o genocídio do povo palestiniano nunca ia ser uma plataforma inspiradora”, apontou. 

“Como resultado deste erro de cálculo grosseiro dos democratas, a demolição tecnofascista dos Estados Unidos está prestes a começar.” Montoya disse esperar que a sociedade consiga lidar com os problemas no futuro em vez de os disfarçar. “Sexismo, xenofobia e racismo são as raizes mais profundas da árvore dos Estados Unidos”, afirmou. “Talvez seja possível arrancá-las e lidar com elas em vez de as mascarar. De outra forma, os EUA continuarão a dar o fruto do racismo, sexismo e xenofobia.”

Portugueses em Los Angeles lamentam resultado

Para a atriz Kika Magalhães, que acabou de estrear uma curta-metragem com o realizador de Homem-Aranha Sam Raimi, este desfecho é muito negativo. “Estou preocupada com o futuro das mulheres, imigrantes e da comunidade LGBTQ na América”, afirmou a atriz, que vive em Los Angeles há quase uma década. 

Alexandre Ribeiro, pseudónimo de um português que trabalha como duplo em LA há 13 anos, mostrou receio sobretudo pelas consequências internacionais do regresso de Trump ao poder. 

“O que mais me preocupa é a política externa e o reinstalado potencial para o desastre”, explicou. “Sendo que Trump já mostrou publicamente o seu afeto por Putin, sinalizando também que a Ucrânia se deveria render e conceder os territórios ocupados pela Rússia à mesma, e o seu conhecido e crescente desdém pela NATO em adição”, continuou. 

“Juntos, representam todo um perigo à Europa e claro perigo a nível global.”, considerou. “E por mais deficiências que venham a decorrer nos próximos quatro anos a nível doméstico, as consequências internacionais são ainda mais preocupantes tal como são alarmantes.”

Rogério Manuel, empresário em Los Angeles, mostrou-se abismado pelo resultado e preocupado pela família. “Como pai de um filho transgénero, estou completamente preocupado com a vida do meu filho e todos LGBTQ“, afirmou. 

Também Beatriz Pardelhas, que vive em LA e é gestora de desenvolvimento de negócio na Flix, mostrou desilusão e preocupação face aos resultados. 

“Acima de tudo, estou desapontada”, disse ao DN. “Moro nos Estados Unidos há três anos e durante este tempo tenho vivenciado uma divisão dramática da população fomentada por um discurso que se baseia no medo e ódio”, descreveu. “Estou desapontada que o pais ‘líder do mundo livre’ tenha votado para reduzir a liberdade de muitos.” 

Pardelhas prevê que os próximos quatro anos vão deixar o país e as pessoas piores. “A maioria da população votou no Donal Trump. Essa é a realidade”, sublinhou. “Estou desapontada, triste e de coração partido porque o ódio e intolerância venceram no país que escolhi chamar de casa.”