Ministério da Saúde
21 setembro 2024 às 18h20
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Administradores hospitalares dizem que “problema das urgências não são as escalas, mas a falta de médicos”

Plano para o inverno passa a despacho com vista a obrigar médicos a rever escalas de forma a que não haja lacunas. Mas estes dizem que não é a gestão que está em causa, mas sim a falta de profissionais no SNS.

O Ministério da Saúde decidiu passar uma recomendação do Plano de Contingência para o Inverno, sobre a gestão das escalas médicas, a legislação, através de um despacho, que será publicado em breve. O objetivo é "evitar" situações como as que se viveram neste verão. Mas sindicatos e administradores contestam. De uma forma geral, dizem que o problema não é de gestão de meios mas de falta de recursos humanos.

No documento que chegou em agosto aos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) com a elaboração do Plano de Contingência para o Inverno já era recomendado que as escalas médicas tinham de ser “elaboradas de forma a “assegurarem o funcionamento dos serviços, face ao previsível aumento da procura de cuidados”, em determinados períodos críticos. Na altura, e segundo explicaram ao DN, tal significava que seria necessário melhor gestão nas escalas de férias dos médicos, já que neste verão chegou a haver serviços de urgência no país que em alguns horários tinham apenas um médico escalado. Resultado: o serviço de urgência tinha de fechar portas para o exterior. 

Esta recomendação constante no Plano de Inverno foi noticiada pelo DN a meio de agosto, mas agora o Ministério da Saúde decidiu passá-la a “obrigatoriedade”, dando-lhe forma legislativa. E tal como noticiava na sua edição de ontem o jornal Público, os hospitais vão poder alterar as férias dos médicos sempre que estas colidam e não assegurem as necessidades.

Fonte do ministério, que confirmou também ao DN a existência de um despacho sobre o assunto - avançado este sábado pelo Público -, explicou que o objetivo “é sensibilizar os conselhos de administração para a gestão das escalas de urgência no período de férias dos médicos, garantindo com tempo que estas não tenham buracos”.

Do lado dos profissionais, a presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam) já veio reagir dizendo que um despacho neste sentido “é absolutamente inaceitável" e que vai "afastar ainda mais os médicos do SNS". Segundo afirmou a vários órgãos de comunicação Joana Bordalo Sá, “o documento vai criar mal-estar" nas equipas que "estão a trabalhar em exaustão", acusando o ministério de "publicar unilateralmente alterações às regras que prejudicam os médicos".

Administradores criticam ministério por não investir na carreira de gestor hospitalar

O DN ouviu o lado dos administradores hospitalares sobre o assunto. Para Xavier Barreto, “a gestão das escalas já é uma obrigatoriedade dos hospitais", sublihando que "a perceção que temos é que, na grande generalidade dos casos, essa gestão é feita”.

O presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH) diz mesmo: “As escalas já têm em conta as férias dos médicos, que já são desfasadas e distribuídas pelo ano todo de maneira a assegurar os horários. É natural que possa ter existido neste verão problemas com escalas num ou noutro hospital, mas não podemos confundir um caso com a generalidade dos hospitais do SNS”.

O administrador refere ao DN que percebe “a preocupação da tutela e a sua necessidade de recordar aos hospitais que têm de assegurar as escalas, mas, em boa verdade, isso já é feito”.

A questão é que o problema das urgências do SNS “não está nas escalas nem nas férias dos médicos, está na falta de profissionais. Este é o tema, não nos desfoquemos do essencial”, comenta, acrescentando que “o essencial neste momento é garantir que há mais médicos no SNS, porque se melhorou as suas condições de trabalho, que se avança também com a concentração de uma rede para as urgências e com a redefinição das equipas e até com mais investimento na gestão”.

Xavier Barreto aproveita para tecer criticas aos discursos sobre a gestão, que não é a primeira vez que esta ministra faz, para perguntar: “Que investimento é que este e outros governos têm feito na gestão do SNS? Há uma carreira para rever há muitos anos e, neste momento, muitos hospitais não têm sequer estruturas de gestão”.

E dá um exemplo: “Quando um diretor de serviço faz uma escala quem está lá para rever se a lei está a ser cumprida e se aquela é a forma mais eficiente de aloucar os recursos ao longo do ano? Deveria ser o gestor hospitalar, responsável por aquele serviço, e não o conselho de administração, mas na maior parte dos hospitais este gestor não existe, precisamente porque os governos continuam a não investir na gestão dos hospitais e nem na carreira de administrador hospitalar”.

Inspeção da IGAS em 2022 já recomendava melhorias nas escalas médicas

Em relação à gestão das escalas médicas, o DN recorda que, no início do verão de 2022, quando se percebeu que muitos hospitais teriam de encerrar portas temporariamente devido aos buracos nas escalas médicas, sobretudo na área da Ginecologia e Obstetrícia - o que levou na altura a  então ministra Marta Temido a criar um Grupo de Trabalho para criar uma rede de referenciação de cuidados para esta área - a Inspeção Geral das Atividades da Saúde (IGAS) foi para o terreno e investigou o que se passava em várias unidades. E, no final, concluiu que podia ter havido "desleixo" por parte de alguns hospitais, acabando por recomendar “melhorias na gestão das escalas médicas”.

Mas Xavier Barreto aproveita o exemplo para destacar que "esta investigação serviu como alerta para as dificuldades na alteração das escalas médicas”, porque “é um tema muito sensível”, e, ao mesmo tempo, para expor que, afinal, "a principal razão dos problemas nas escalas era a falta de médicos”. "Pode ter havido algum descuido na gestão das escalas nalgumas unidades, mas a conclusão deste relatório está lá, preto no branco: a principal razão dos problemas nas escalas é a falta de médicos”, reforça ao DN.

Por isso, faz questão de lembrar à tutela que “o problema das escalas resolve-se com mais profissionais. As férias têm de ser geridas com enorme sensibilidade e consenso, porque os médicos também são pais e os filhos só têm férias em determinados períodos. E, hoje em dia, muitos deles não estão disponíveis para pagar o preço de não poder gozar férias nesses períodos, preferindo rescindir contrato com o SNS”, percebendo que "os sindicatos já venham dizer que este despacho vai crial mal-estar nas equipas".

Para o administrador, a pergunta correta aqui, mais do que um despacho sobre alterar férias a médicos é: “O que vai fazer o Governo para investir na gestão dos hospitais?”

Aos órgãos de comunicação social, a ministra confirmou que o despacho vai ser publicado com indicações para os conselhos de administração e que o seu principal objetivo é garantir, pelo menos três meses antes, que as escalas das urgência estão acauteladas durante os períodos mais críticos do inverno, como Natal e Ano Novo. “É preciso garantir que temos as escalas completas e quando não as temos é preciso garantir que conseguimos arranjar soluções. Esse é o grande objetivo deste despacho”, disse ministra.