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05 setembro 2024 às 00h06
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Lisboa está entre as cinco cidades da UE mais poluídas por gases de navios

A febre dos cruzeiros - que largam 750 mil passageiros em Lisboa - e a falta de tomadas para se abastecerem de energia ajudam a explicar a má qualidade do ar na Baixa. Os navios europeus emitem 4 vezes mais emissões do que todos os automóveis da UE.

À boleia do imparável crescimento dos navios de cruzeiro, Lisboa é uma das cinco cidades portuárias europeias com maiores níveis de poluição causada pelas suas emissões. Depois de Barcelona, Civita Vecchia (Roma), Porto de Pireu (Atenas) e Palma de Maiorca, a capital portuguesa é a que tem maior concentração de óxido de enxofre (NO2) e de partículas finas, de acordo com um estudo da organização ambientalista europeia Transport &Environment, relativo a 2023. Níveis elevados destas partículas finas estão associados ao desenvolvimento de doenças respiratórias e risco acrescido de cancro de pulmão, entre doenças cardiovasculares e até do foro mental, como ansiedade e depressão. Essa razão motivou, aliás, uma ação contra Portugal pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, em 2023, contra os efeitos nefastos para a saúde destes níveis de poluição.

A posição pouco favorável de Lisboa explica-se pela intensificação sempre crescente desta atividade ao longo dos últimos anos, mas também pelo facto do Porto de Lisboa ainda não dispôr de tomadas elétricas para os navios poderem carregar a energia que precisam para se manterem operacionais quando estão atracados. Por isso, as embarcações continuam a queimar combustível para terem energia, mesmo paradas, emitindo gases em permanência.

É uma situação que deverá manter-se por, pelo menos, mais cinco anos, visto que a eletrificação daquela infraestutura só deverá estar concluída em 2029, quase no limite do prazo concedido por Bruxelas, que termina em 2030. A estimativa foi avançada pelo presidente da Administração do Porto de Lisboa, Carlos Correia, em entrevista ao DN, especificando que os processos e projetos conducentes à obra de eletrificação já estão em andamento.

O responsável assegurou ainda que, de acordo com o sistema de monitorização instalado, “o nível de gases com efeitos de estufa na zona do Porto de Lisboa está dentro dos limites legais ou mesmo abaixo”. O assunto tem, no entanto, uma dimensão que extravasa os estritos parâmetros da legalidade. É o que defende o coordenador da organização ambientalista ZERO para a área do Clima e Mobilidade, Pedro Nunes: “ o problema é que os limites máximos permitidos são o quádruplo daquilo que a Organização Mundial de Saúde considera como recomendáveis para a saúde humana”. Por isso, “já deveríamos estar mais avançados na eletrificação dos portos”, observa o especialista.

O regulamento comunitário AFFIR obriga à eletrificação dos portos até 2030, como parte da estratégia de Bruxelas para reduzir em 50% as emissões de gases com efeitos de estufa até 2030. Na União Europeia alguns portos já se encontram eletrificados, como os de Hamburgo, Bilbao, e outros em vários países nórdicos.

Mais de 750 mil passageiros

A atividade de cruzeiros em Lisboa foi a melhor de sempre em 2023, ultrapassando pela primeira vez, os 750 mil passageiros, o que correspondeu a mais 54% do que no ano anterior. E por um conjunto de características, entre as quais a proximidade ao centro histórico da capital, foi considerado o melhor porto de cruzeiro da Europa pelo 8º ano consecutivo.

Passaram pelo terminal de cruzeiros um total de 347 navios em 2023 , mais 20 do que no ano anterior, 107 dos quais em escalas turnarround. Carlos Correia sustenta que cada euro ali investido tem um efeito multiplicativo de 3,70 euros, e um impacto direto de cerca de 83 milhões de euros. E diz que, segundo entrevistas feitas aos turistas, “estes gastam entre 82 e 400 euros”, consoante estejam em trânsito ou desembarquem na cidade.

Se é verdade que esta atividade tem um impacto económico positivo, não deixa de ter também uma pesada pegada ambiental.

Para se ter uma ideia, em 2022, os 218 navios de cruzeiro que existem na Europa “emitiram mais gás sulfúrico tóxico do que mil milhões de automóveis”, ou seja, “4,4 vezes mais do que todos ao automóveis que circulam no continente”, revelou um novo relatório da Transport & Environment. Tal signigfica, que, apesar da intenção manifestada pela indústria dos cruzeiros em atenuar os seus impactos, a poluição causada pelos mega-navios está a agravar-se, tendo passado das 465 toneladas de óxidos de enxofre registadas em 2019 para 509 toneladas em 2022, indica aquele estudo.

Cada vez maiores

O aumento da carga ambiental desta atividade deve-se não apenas à crescente popularidade deste meio de transporte como conceito de turismo cada vez mais acessível, mas também ao próprio aumento da dimensão das embarcações. Ao mesmo tempo que ainda mantêm uma aura luxuosa, as viagens em cruzeiro tornaram-se uma opção de férias massificada nos países desenvolvidos, com quase 36 milhões de passageiros esperados pelo setor este ano.

Por outro lado, os navios não têm parado de crescer e tornaram-se autênticos monstros marinhos. Os maiores cruzeiros do mundo têm atualmente o dobro do tamanho que tinham no ano 2000. E se eram 21 na década de 70, hoje são 515. “Se os navios continuassem a aumentar de tamanho na mesma proporção do que tem acontecido até aqui, em 2050 seriam quase oito vezes maiores do que o mítico Titanic e transportariam quase 11 mil passageiros”, estima a Transport & Environment. Certo é que em apenas três anos, entre 2019 e 2022, as emissões lançadas subiram 20%.

Aquela organização questiona a razão pela qual os navios de cruzeiro estão isentos de impostos sobre combustíveis, bem como da maioria dos impostos corporativos e de consumo. E sustenta que uma taxa de 50 euros sobre um bilhete típico de viagem renderia qualquer coisa como 1,6 mil milhões de euros a nível mundial, dos quais 410 milhões seriam angariados na Europa, podendo ajudar a financiar projetos de mobilidade sustentável.

Cidades contra cruzeiros

É em face dos crescentes valores de poluição e de balanços políticos nem sempre favoráveis _entre o que se ganha em receitas de turismo e o que se perde em qualidade de vida _que algumas cidades iniciaram movimentos para retirar os navios de cruzeiro dos seus centros. Veneza liderou o exemplo ao impedir, em 2021, a atracagem de navios de grandes dimensões. Os níveis de óxido de enxofre caíram 80% e a cidade desceu da liderança para o 41º lugar no ranking de poluição.

Agora, mais recentemente, foi a vez de Amesterdão seguir pelo mesmo caminho, anunciando que até 2035 não haverá navios de cruzeiro a atracar no centro da cidade, transferindo-os para outra zona, e mais de 40 a serem canalizados para o porto de Roterdão. E, já partir de 2026, a capital dos Países Baixos quer reduzir para metade o número de embarcações autorizadas a atracar no seu terminal de passageiros, das atuais 190 para um máximo de 100.

A proibição dos navios de cruzeiro faz parte de um vasto pacote de medidas destinadas a limitar o crescimento do turismo e acombater os seus transtornos.

Também Barcelona, o pior porto da UE em qualidade do ar, deverá seguir o exemplo. “40% dos navios de cruzeiro param durante quatro horas. Não há retorno económico para a cidade, e milhares de pessoas desembarcam, criam grandes problemas de mobilidade e vão embora. É uma indústria que temos que limitar”, disse a presidente da Câmara Municipal de Barcelona, Ada Calau, ao The Times, em fevereiro. O autarca de Marselha, em França, também se queixa do setor por estar “a sufocar” a cidade com a poluição.

Será que é um cenário que se coloque em Lisboa? O presidente da APL está convencido que não. “Primeiro, porque não há alternativa física para a localização do Terminal de Cruzeiros, depois porque esta infraestrutura é um investimento muito recente e avultado, que ainda nem sequer está amortizado”.

Investimento de 31 milhões vai cortar emissões em 77%

A eletrificação do Terminal de Cruzeiros deverá estar concluída em 2029 e também vai reduzir o ruído e a vibração provocados pelos navios.

Carlos Correia, presidente da Administração do Porto de Lisboa

“A eletrificação do Terminal de Cruzeiros do Porto de Lisboa vai reduzir as emissões de gases com efeitos de estufa em 77%”, disse o CEO da Administração do Porto de Lisboa em entrevista ao DN. O investimento, cujo prazo de conclusão está previsto para 2029, deverá custar 31 milhões de euros, adiantou Carlos Correia.

A primeira fase do sistema, em desenvolvimento, vai ter um financiamento comunitário da ordem dos 14 milhões de euros e diz respeito à ligação, em alta tensão, à rede elétrica. “Como não existe capacidade disponível, é preciso fazer a ligação à E-Redes, mas o projeto da obra já foi contratada à E-Redes”, adiantou . É também necessário construir uma subestação, que também já foi adjudicada a um consórcio liderado pelo arquiteto Carrilho da Graça. A segunda fase do projeto consiste em dotar os navios do acesso à ligação elétrica, sendo que esta parte será feita pelos concessionários, explicou Carlos Correia.

Para além da redução das emissões de gases com efeito de estufa, o projeto visa ainda diminuir a vibração e o ruído, que pode ser bastante incomodativo para quem vive, circula ou trabalha perto destes terminais.

As várias fases de execução deste projeto serão acompanhadas por um grupo de trabalho criado ainda em 2022, por despacho do então ministro do Ambiente, João Galamba - composto pelo Porto de Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, E-Redes e Ministério do Ambiente, para acelerar o andamento das obras.

Carlos Correia está otimista quanto à capacidade do Porto de Lisboa reduzir substancialmente as emissões, porque acredita que “o reforço da sustentabilidade desta atividade é do interesse dos próprios operadores”. Não só “há investimentos em novos navios, menos poluentes, mas também uma aposta numa economia mais circular em todo o setor”