Entrevista a Cláudia Viegas
16 outubro 2024 às 00h06
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“Em vez de se reduzir o consumo de carne, promove-se o veganismo, o que cria posições extremistas”

O Dia Mundial da Alimentação, celebrado a 16 de outubro e instituído pela FAO, propõe um tema a debate: “Direito aos alimentos para uma vida e um futuro melhores”. Conversámos com Cláudia Viegas, nutricionista e docente da Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa.

“Apesar da consciência que existe a nível mundial acerca da importância e do direito à alimentação, cerca de 3,1 mil milhões de pessoas no mundo (42%) não têm condições de pagar uma dieta saudável. As dietas pouco saudáveis ​​são a principal causa de desnutrição, que inclui a subnutrição, as deficiências de micronutrientes e a obesidade”. Em duas frases a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) lança os pressupostos para a celebração de mais um Dia Mundial da Alimentação. A data, instituída em 1981, traz a cada 16 de outubro um tema para reflexão. Em 2024, os 194 Estados-membros (mais a União Europeia) que integram a FAO são desafiados a debater o “Direito aos alimentos para uma vida e um futuro melhores”.

A alimentação é a terceira necessidade humana mais básica, depois do ar e da água. Os direitos humanos, como o direito à alimentação, à vida e à liberdade, ao trabalho e à educação, são reconhecidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e por pactos internacionais juridicamente vinculativos. Contudo, não basta existir o alimento, há que provir uma rede de produção de bons alimentos e distribuição dos mesmos. A esse propósito a instituição criada em 1945 sublinha que “deveria existir uma maior diversidade de alimentos nutritivos disponíveis nos nossos campos, nas redes de pesca, nos mercados e nas nossas mesas, para benefício de todos”.

A FAO junta à equação uma outra variável: “um mundo com fome zero para 2030”. É esta uma meta viável? Responde-nos Cláudia Viegas: “os sistemas alimentares são muito complexos, com um número de variáveis e fatores que se interligam e que são codependentes que vão desde a produção alimentar, ao seu processamento, distribuição e marketing. Neste contexto, há inúmeros intervenientes, onde se incluem os decisores políticos, os consumidores, e até o desenvolvimento tecnológico. Neste momento, temos dois grandes problemas de saúde pública. Por um lado a malnutrição, que se prende ao excesso de peso. Por outro lado, enfrentamos as alterações climáticas. O grande problema é que estas duas questões estão intimamente ligadas e ambas se reforçam mutuamente. Logo, têm de ser combatidos em simultâneo. Gosto de acreditar que é possível, mas, sejamos racionais, temos de mudar radicalmente o nosso estilo de vida e o modo como nos alimentamos”.

Olhar para os alimentos e não para os nutrientes

No tema que lança a debate, a FAO sublinha a importância no acesso a alimentos nutritivos. O que se entende por alimento nutritivo? “Um alimento é tão mais nutritivo quanto maior a quantidade de nutrientes que contém, em particular micronutrientes. Podemos dividir os nutrientes em duas categorias, os macronutrientes [glícidos, lípidos, proteínas] e micronutrientes [vitaminas, minerais]. Em relação aos macronutrientes é relativamente fácil atingir as necessidades, podendo até estes nutrientes estar presentes em grandes quantidades em produtos alimentares com pouco interesse por serem pobres em micronutrientes. Os hortícolas, as frutas, as leguminosas, o pescado são exemplos de alimentos muito nutritivos, pois fornecem-nos um leque variado de micronutrientes, fornecendo ainda proteína [leguminosas e pescado], ácidos gordos omega-3 [pescado] e fibra [hortícolas, as frutas, as leguminosas]”, destaca a docente.

“Dados recentes [Global Burden of Disease 2021] continuam a identificar como principais causas de morte e de carga de patologia, as doenças crónicas, como as isquémicas do coração ou a diabetes. Os principais fatores de risco também estão claramente identificados. E, curiosamente, as mensagens em que habitualmente está a atenção, ou muito promovidas pela indústria alimentar, centram-se muito na redução do consumo de açúcar ou na redução do consumo de gordura e estas são, efetivamente, as reformulações que observamos na maioria dos produtos. Se olharmos para os fatores de risco associados às doenças que referi, à exceção do sal [sódio], que está no topo da lista, os seguintes relacionam-se com aquilo que comemos abaixo das recomendações – cereais integrais, fruta, frutos oleaginosos, hortícolas, pescado, fibra, leguminosas. Como constatamos, o enfoque está maioritariamente não no consumo de nutrientes específicos, mas sim nos alimentos. A mensagem que gostaria de passar é a seguinte: centremo-nos no consumo de alimentos e não no consumo de nutrientes. Se ingerirmos alimentos reais, ou seja, nada ou minimamente processados, garantimos o aporte de nutrientes”, adianta Cláudia Viegas.

Mudar de atitude. Como o podemos fazer?

A FAO também nos convoca a uma mudança e com esta a promover um mundo mais equilibrado no que toca à disponibilidade de alimentos e à sua distribuição. Sobre esta questão, adianta a nutricionista: “sem dúvida que podemos todos intervir política e socialmente e há, por certo, muito a fazer em relação a políticas alimentares, nomeadamente ao nível das políticas agrícolas ou de regulamentação em relação à disponibilidade em determinados contextos, por exemplo. Mas, muito daquilo que se consegue fazer a nível político ou mesmo de propostas de alterações a nível da oferta alimentar só consegue fazer caminho e encontrar o sucesso se todos conseguirmos alterar os hábitos no sentido daquilo que é recomendado pela FAO e outras entidades relevantes neste contexto”.

Convocada a detalhar esta questão, a especialista em alimentação acrescenta que “os dados, quer do último inquérito alimentar e de atividade física (2015/2016), quer da última balança alimentar (2020), mostram-nos que continuamos a consumir produtos de origem animal, nomeadamente carne, em quantidades muito superiores ao recomendado, com um consumo de fruta, hortícolas e leguminosas também significativamente abaixo do recomendado. É imperativo invertermos este padrão de consumo, que tem impacto não apenas na nossa saúde, mas também na saúde do planeta”.

Para Cláudia Viegas, “a mudança está longe de acontecer. Penso que é necessário motivarmos mais os profissionais de saúde e da nutrição para uma abordagem e pensamento mais focado na prevenção versus tratamento, e é preciso envolver ativamente alguns stakeholders do lado da oferta alimentar, como a restauração, capacitando-os para a mudança e acompanhá-la de estratégias de comunicação e investimento em literacia. Não podem ser medidas avulso”, concretiza a docente da Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa do Politécnico de Lisboa, para acrescentar: “por outro lado, considero, que muitas vezes se procura promover a mudança sob um paradigma errado, ou seja, em vez de promovermos uma mudança gradual para um padrão de base vegetal, mas não vegetariano, defendemos passar do oito para o 80. Ou seja, em vez de se reduzir o consumo de carne, advoga-se e promove-se o veganismo. Uma abordagem que cria mais resistência e posições extremistas”.

Indústria alimentar: Entre Deus e o Diabo

Tendemos a diabolizar a indústria alimentar. Não será lícito afirmar que devemos grandes desenvolvimentos na disponibilidade alimentar, assim como novos e bons produtos, à indústria alimentar? Responde-nos Cláudia Viegas: “sem dúvida que a indústria alimentar teve um impacto muito positivo nas nossas vidas. Sem ela não teria sido possível o nível de evolução que temos e a enorme quantidade de produtos que nos facilitam a vida. Mas, há um ponto a partir do qual temos de parar para pensar e verificar se o que nos está a ser disponibilizado faz, de facto, sentido. Se quisermos um bom exemplo, podemos pensar nas leguminosas, um alimento cujo consumo é muito baixo face às recomendações, que é central na Dieta Mediterrânica, central como fornecedor relevante de proteína, hidratos de carbono de excelente qualidade, fibra e outros nutrientes. A indústria alimentar disponibiliza-nos este alimento de uma forma prática, pronto a consumir. A questão que se pode colocar é a quantidade de sal ali presente, embora já existem no mercado alternativas com baixo teor de sal”.

Convocar à conversa a indústria alimentar leva-nos a tocar num outro ponto inerente à dieta humana atual, os alimentos processados e ultraprocessados: “um grupo de investigadores brasileiros desenvolveu uma classificação – NOVA – para categorizar os alimentos/produtos alimentares de acordo com o seu grau de processamento. Não é uma classificação perfeita, mas serve-nos de orientação. Esta classificação, organiza os produtos em quatro grupos, sendo que num dos extremos temos os alimentos em natureza ou minimamente processados, como as frutas, os hortícolas, os cereais, ovos, leguminosas, hortícolas ou pescado congelado e, no outro extremo, os alimentos ultraprocessados que, na prática, são aqueles em que o processo industrial deixa de nos permitir identificar o alimento que deu origem àquele produto, como por exemplo uns cereais de pequeno-almoço ou bolachas.

A maioria destes produtos possui uma elevada densidade energética, ou seja, um grande número de calorias por unidade consumida. É certo que a indústria tem feito e continua a fazer um esforço para reduzir a energia desses produtos, mas, em muitos casos, as diferenças observadas não são muito relevantes. Acresce a isto aspetos importantes: estes produtos são muito palatáveis e, portanto, a tendência é consumir sempre mais do que a recomendação. O grau de processamento destes produtos é muito elevado. Em termos de estrutura molecular, podemos dizer que estes alimentos já estão digeridos, o que vai influenciar a forma como são absorvidos e utilizados pelo nosso organismo”, conclui a nutricionista.