(1935-2024)
20 junho 2024 às 22h58
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Donald Sutherland. Um ícone de Hollywood que experimentou todos os géneros

Para os mais jovens foi, sobretudo, o Presidente Snow dos filmes da série The Hunger Games. Para os espectadores das décadas de 1960/70, o seu nome é indissociável de sucessos como Doze Indomáveis Patifes ou M*A*S*H - Donald Sutherland, ator de infinitas transfigurações, faleceu aos 88 anos de idade.

Ator com uma filmografia de quase duas centenas de títulos, ícone de um certo cinema “anti-sistema” das décadas de 1960/70, popularizado em anos recentes junto dos espectadores mais jovens pela interpretação do Presidente Snow na série de filmes The Hunger Games, Donald Sutherland faleceu nesta quinta-feira, Miami, após doença prolongada - contava 88 anos.

Será, por certo, algo exagerado, mas é um facto que a “imagem de marca” de Sutherland se consolidou através da interpretação de algumas personagens em que o aspeto mais ou menos agressivo, porventura sinistro, não exclui, antes parece atrair, uma dimensão irónica e divertida, por vezes à beira do burlesco. Para tal contribuiu, antes de tudo o mais, o seu capitão Hawkeye Pierce, personagem desse enorme sucesso que foi M*A*S*H, comédia negra de 1970, realizada por Robert Altman, retratando o comportamento pouco ortodoxo de uma unidade médica do exército americano, em 1951, durante a Guerra da Coreia (as iniciais do título remetem para Mobile Army Surgical Hospital).

Caricaturando regras e comportamentos do universo militar, M*A*S*H estava longe de ser uma mera atualização de um modelo tradicional de comédia. Tal como outras produções da mesma época, o filme de Altman envolvia um subtexto político visando a discussão e, mais do que isso, a contestação da Guerra do Vietname - também em 1970, o western O Pequeno Grande Homem, de Arthur Penn, com Dustin Hoffman, e Woodstock, de Michael Wadleigh, documentando o lendário festival realizado em agosto de 1969, participavam da mesma conjuntura  artística e ideológica que, para a história, ficou registada com a designação sugestiva de “contra-cultura”.

Heróis Por Conta Própria (1970): do filme de guerra ao burlesco

Em termos pessoais, Sutherland estava longe de ser estranho a tal conjuntura, desde logo através do seu envolvimento em diversas tomadas de posição contra a continuação da guerra. Através de documentos desclassificados em 2017, ficou mesmo a saber-se que, no período 1971-73, a CIA inscreveu o seu nome numa lista de cidadãos que deviam ser vigiados. No plano artístico, pode dizer-se que Hawkeye Pierce é um parente próximo das personagens tendencialmente grotescas, sem deixarem de ser humanas, que interpretou em dois filmes de guerra, ainda hoje dos mais conhecidos de toda a sua carreira: Doze Indomáveis Patifes (1967), de Robert Aldrich, e Heróis por Conta Própria (1970), de Brian G. Hutton - em ambos os casos, as matrizes do clássico filme sobre a Segunda Guerra Mundial, tão importantes na produção de Hollywood das décadas anteriores, são transfiguradas através de um humor perverso, por vezes absolutamente desconcertante.

Entre Londres e Itália

Donald Sutherland pertence a uma galeria de talentos, porventura muito mais extensa do que poderia pensar-se, que se impuseram na produção de Hollywood, tendo nascido no Canadá. Entre os atores mais populares da actualidade, Ryan Gosling é um deles; nessa galeria encontramos também personalidades tão diversas como Dan Aykroyd, Jim Carrey ou Rachel McAdams, sem esquecer o realizador de Titanic e Avatar, James Cameron.

Nasceu a 17 de julho de 1935 em Saint John, cidade portuária do leste do Canadá. Curiosamente, a sua formação universitária, adquirida em Toronto, repartiu-se por duas áreas bem diferentes: engenharia e drama. A decisão de consolidar a sua formação na Europa, mais concretamente na Academia de Música e Arte Dramática de Londres, seria determinante para o seu futuro profissional.

Obteve alguns dos seus primeiros papéis em filmes de terror, por vezes contracenando com Christopher Lee - foi a época áurea dos filmes britânicos do género e, em particular, das produções da Hammer Films. Por essa altura, o seu título mais importante terá sido The Bedford Incident (1965), de James B. Harris, obra pioneira na abordagem das convulsões da Guerra Fria, entre nós lançada como Desafiando o Perigo.

Depois de M*A*S*H, viveu entre 1970 e 1972 com Jane Fonda, nascida em 1937, na altura ainda formalmente casada com o cineasta francês Roger Vadim (o seu divórcio seria oficializado em 1973). Em 1971, o par protagonizou um dos grandes thrillers da década, Klute, filme que inaugura uma trilogia de Alan J. Pakula marcada pelos temas da conspiração política e da paranóia social - seguir-se-iam A Última Testemunha (1974), filme enraizado em memórias ambíguas dos assassinatos dos irmãos John e Robert Kennedy, e Os Homens do Presidente (1976), sobre o escândalo Watergate.

Klute (1971): em ambiente de thriller, na companhia de Jane Fonda

Por essa altura, Sutherland e Fonda produziram e protagonizaram F.T.A. (1972), uma referência cinéfila do movimento contra a Guerra do Vietname. Entretanto, a carreira de Sutherland foi-se diversificando, sobretudo a partir do impacto de Aquele Inverno em Veneza (1973), o célebre Don’t Look Now, cruzamento insólito do thriller com o género de terror em que contracenava com Julie Christie, sob a direção de Nicolas Roeg. A partir desse título, os grandes acontecimentos da filmografia de Sutherland são mesmo de raiz europeia, com destaque para duas produções italianas de 1976: 1900, de Bernardo Bertolucci, e Casanova, de Federico Fellini.

O menos que se pode dizer desse “interregno” italiano de Sutherland é que o leva a experimentar de forma decisiva as fronteiras das suas próprias qualidades de interpretação. No filme de Bertolucci, assume a figura sinistra de Attila Mellanchini, um capataz fascista na Itália da Grande Guerra, personagem cuja violência física e moral está muito para lá de qualquer forma de compaixão humana. Sob a direção de Fellini, o próprio Sutherland fez saber que nem sempre compreendeu o que estava a acontecer na rodagem, mas o seu Giacomo Casanova, através de uma calculada ambivalência épica, persiste como um dos mais radicais retratos do desejo masculino, incluindo a irrisão dos seus fantasmas.

Casanova (1976): viajando pelo mundo de Federico Fellini

Principal & secundário

Sem nunca se fixar num modelo de personagem, ainda menos num qualquer sistema de produção, Sutherland foi prosseguindo uma atividade necessariamente marcada por altos e baixos. Vimo-lo, por exemplo, em A Invasão dos Violadores (1978), de Philip Kaufman, uma aposta bizarra na recriação do clássico de terror e ficção científica Invasion of the Body Snatchers (1956), de Don Siegel. E vimo-lo também numa pequena obra-prima, ainda hoje mal conhecida (apesar de ter ganho quatro Óscares, incluindo o de melhor filme de 1980), sobre a desagregação emocional de uma família: chama-se Gente Vulgar e marcou a estreia na realização de Robert Redford.

Não terá sido uma “especialização”, mas dir-se-ia que, com o passar dos anos, Sutherland foi assumindo cada vez mais papéis não necessariamente principais, ainda que sustentados pelo prestígio adquirido e por uma certa aura romântica que a sua figura imponente - e as modulações da sua voz - terão ajudado a consolidar.

Surgiu, assim, ainda como protagonista, em Assassinato sob Custódia (1989), de Euzhan Palcy, um drama sobre o Apartheid na África do Sul (com Marlon Brando num papel secundário). Ou numa figura discreta, mas vital na estrutura narrativa do genial JFK (1991), de Oliver Stone, sobre a investigação da morte de John Kennedy. Ou ainda em O Senhor da Guerra (2005), notável panfleto anti-guerra com assinatura de Andrew Niccol e Nicolas Cage no papel central.

Além da tetralogia de The Hunger Games (2012-2015), os seus títulos finais com maior projeção terão sido Ad Astra (2019), aventura galática de James Gray protagonizada por Brad Pitt, e The Undoing (2020), excelente mini-série policial criada por David E. Kelley, com Nicole Kidman e Hugh Grant.

De uma maneira ou de outra, durante várias décadas, foi símbolo do conceito global de entertainment, faltando-lhe, segundo muitos observadores, pelo menos uma nomeação para um Óscar que sublinhasse o seu contributo para a respetiva indústria. Tal nomeação nunca aconteceu, mas em 2018 a Academia de Hollywood homenageou-o com uma estatueta dourada pela sua carreira. Na altura dos agradecimentos, Sutherland pediu licença para recuperar as palavras que o comediante Jack Benny usou ao receber um Emmy: “Não mereço este prémio, mas sofro de artrite e também não o mereço.”

Reações

“Nunca se deixou intimidar por um papel, fosse bom, mau ou feio. [O meu pai] amava o que fazia e fazia o que amava, e nunca se pode pedir mais do que isso. Uma vida bem vivida.”
Keith Sutherland,
ator e filho de Donald Sutherland

“Donald Sutherland foi um dos atores mais inteligentes com quem já trabalhei. Ele tinha um cérebro maravilhoso e curioso.”
Helen Mirren,
atriz

“Um dos atores de cinema mais inteligentes, interessantes e cativantes de todos os tempos. Diversidade incrível, coragem criativa e dedicação para servir a história e o público com excelência suprema.”
Ron Howard,
ator

“RIP, o grande Donald Sutherland, um ator favorito e sempre fascinante presença na tela. Protagonizou dois dos meus filmes favoritos e mais influentes - Aquele Inverno em Veneza e A Invasão dos Violadores.”
Edgar Wright,
realizador