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Óbito
24 outubro 2024 às 23h28
Leitura: 10 min

Marco Paulo (1945-2024). O adeus ao rei do vinil

Caso raro de popularidade, Marco Paulo é um nome maior da música ligeira, de que a maioria dos portugueses, mesmo que não sejam seus fãs, conhecem uma ou outra canção. Morreu esta quinta-feira, aos 79 anos.

Não havia Natal dos Hospitais ou querido mês de agosto sem Marco Paulo. Ao longo de mais de meio século de carreira, o cantor terá completado várias voltas a Portugal em palcos, uns melhores do que outros, ao mesmo tempo que, nos anos dourados do vinil, colecionava discos de ouro e platina correspondentes aos sucessos de vendas. Morreu esta quinta-feira, aos 79 anos, vítima de cancro, sem que algum português com mais de 20 anos possa dizer que o desconhece.

No princípio de tudo, Marco Paulo era um menino chamado João Simão da Silva, nascido a 21 de janeiro de 1945, em Mourão, mas que, por causa do trabalho do pai (funcionário das Finanças), começou a calcorrear meio Portugal ainda na infância. Foi também nesses tempos, em que a rádio era rainha incontestada dos lares portugueses, que o miúdo descobriu que gostava de cantar e, mais importante ainda, que os outros também gostavam de o ouvir.

Como escreveu, no DN, António Araújo (no último episódio da rubrica Prova de Vida, a 1 de setembro último): “Uma vez, estava João na rua com os amigos, jogando à bola e trinando músicas de Joselito, quando um dos convidados de uma boda próxima - mais precisamente, o senhor Renato, que tinha uma tipografia e que era muito amigo do seu pai - decidiu fazer uma surpresa à noiva e convidar o miúdo a cantar. João esmagou com Campanera (…).” Joselito, dois anos mais velho do que o pequeno João, era, com Marisol, uma das crianças-prodígio que o cinema espanhol internacionalizou, e que, em Portugal, valia a filmes como O Pequeno Rouxinol meses consecutivos em cartaz.

Ora, a sua aproximação ao repertório de Joselito valeu o primeiro grande êxito à futura vedeta portuguesa. Como recorda ainda António Araújo no citado artigo: “Sucede que naquela boda estava o diretor do jornal A Verdade de Alenquer, ou seja um representante dos media, e estava também um tio da noiva que, não muito depois, tinha João 12 anitos, organizou as Festas do Orfanato de Alenquer. Foi lá que João Simão se estreou nos palcos, sendo o cachê nesse ensejo um arroz de cabidela e um punhado de rebuçados.”


Marco Paulo, cantor, no Natal dos Hospitais em 1986.
Arquivo DN.

Pouco depois, seria convidado a integrar, como vocalista, o rancho folclórico de Alenquer, onde esteve dois anos, para descontentamento do pai, que não apreciava a vida artística. Em 1963, já a viver no Lavradio, João começou a ter aulas de canto com Corina Freire, antiga cabeça de cartaz do Parque Mayer. Foi aí que o descobriu a fadista Cidália Meireles, que, por essa época, tinha um programa de televisão de grande sucesso intitulado Tu Cá, Tu Lá.

Os anos seguintes foram de afirmação do aspirante a cantor, apesar da Guerra Colonial lhe ter batido à porta e ter sido enviado como escriturário para a Guiné-Bissau. O seu primeiro disco, editado em 1966, foi um EP com os temas Não Sei, Estive Enamorado, O Mal às Vezes é Um Bem e . Em 1967, participa no Festival RTP da Canção, com Sou Tão Feliz, de António Sousa Freitas e Nóbrega e Sousa. Não ganha, mas pouco depois grava com Simone de Oliveira, então no auge da popularidade, o tema Tu e Só Tu, uma versão em português de Something Stupid, originalmente cantado por Frank Sinatra e sua filha, Nancy.

Por esta época, já Mário Martins, produtor da Valentim de Carvalho (produtor de vários discos de Amália e determinante no lançamento das carreiras como de Paco Bandeira, António Variações, Lara Li ou Carlos Paião) se ocupara da carreira do novo cantor, que entretanto adotara Marco Paulo como nome artístico. 

O primeiro disco de ouro

O fenómeno de popularidade começaria a desenhar-se no final da década de 1970. Em 1978, alcança grande sucesso com o single Canção Proibida/Ninguém Ninguém que vende mais de 85 mil cópias, tornando-se esse o primeiro disco de ouro do cantor. No ano seguinte, repete o feito com o single Mulher Sentimental.

O princípio da nova década será marcado pelo seu maior sucesso de sempre. Em 1980, o single Eu Tenho dois Amores vende 195 mil discos (três discos de ouro, um de prata). Segue-se, em 1981, Mais e Mais Amor, que atinge um disco de prata e dois de ouro, com 130 mil cópias vendidas. Marco Paulo torna-se um fenómeno de popularidade, campeão incontestável da música ligeira, que repete em democracia os feitos do nacional-cançonetismo da década de 1960. Percorre o país de lés a lés, vai incontáveis vezes ao estrangeiro saciar a saudade das comunidades emigrantes, desdobra-se em participações em programas da RTP, único canal televisivo na época. Cria também uma imagem de marca, simbolizada pela farta cabeleira de caracóis, que Herman José há de mimetizar no impagável boneco de Serafim Saudade.

Herman José com Marco Paulo, num evento em 2000
Fotografia: Marcos Borga.

É por esta época, em que a carreira lhe corre de feição, que a escritora Alice Vieira o entrevista para este jornal, numa tentativa de perceber o fenómeno e do que fazia correr o homem tornado ídolo de multidões. Estávamos a 30 de Julho de 1983 e Alice, que era jornalista do DN, escreve: “De Marco Paulo (que não é o Elvis Presley) se venderam só neste país mais de 600 mil discos em cinco anos (…). De Marco Paulo se diz que não há um único emigrante que não tenha no carro uma cassete sua. Se diz ainda que, depois de Júlio Iglésias, é o artista que mais vende na Península. E que, se tudo o mais soçobrasse, a sua editora conseguiria resistir, só com ele, durante um bom par de anos.”

A extrema popularidade e a persona muito própria criada por cantor e editora prestam-se à sátira. Também nos anos 1980, em que Marco Paulo é o rei incontestado do vinil, Herman José cria o boneco de Serafim Saudade. Embora o humorista negue ter-se inspirado na figura e nos gestos deste cantor em particular, as alusões são óbvias para o espectador. Mas a caricatura, se o é, não lhe belisca a popularidade.

Em 1990, lança o álbum De Todo O Coração, em que os temas Um Amor Em Cada Porto, Ai Ai Meu Amor e O Amor é Tudo são os grandes sucessos. Recebe três discos de prata, dois de ouro e um de platina. Com o single Taras e Manias, de 1991, obtém cinco discos de platina (160 mil discos vendidos). É ainda lançada a coletânea Maravilhoso Coração com 25 sucessos, que obtém duas pratas, três ouros e duas platinas (cerca de 175 mil discos vendidos).

Em 1996, Marco Paulo tinha vendido mais de 3,5 milhões de álbuns e “colecionado” cerca de 60 discos de ouro e platina, mas o cancro no cólon interrompe esta velocidade de cruzeiro. Voltará, recuperado, com a determinação de sempre, mas as próprias transformações na indústria musical, na viragem do milénio, ditarão um abrandamento de ritmo nos anos seguintes. 

O verdadeiro come back aconteceria nos últimos anos. Em 2016, realiza a Tour 50 Anos, em algumas das salas mais emblemáticas do país (como os Coliseus de Lisboa e do Porto e o Campo Pequeno). A partir de junho de 2021, voltou a ser presença regular no pequeno ecrã, com a transmissão do programa semanal, Alô, Marco Paulo, apresentado por si e por Ana Marques. O mesmo canal, em 2023, dedicar-lhe-ia uma série biográfica, em que os atores Diogo Martins e Fernando Luís interpretam o papel do cantor: o primeiro na juventude, o segundo na idade madura. Em 2022, o Presidente da República condecorou Marco Paulo com a Grã-Cruz da Ordem do Infante.

Ao longo deste percurso tão absorvente, em que o cantor se dizia “casado apenas com o público”, parece ter havido apenas um lamento. Aquele que confessou a Alice Vieira, nessa entrevista ao DN, com mais de 40 anos: “Deus deu-me esta voz que tenho. É um dom da natureza. Por isso, eu canto, embora o ideal, para mim, fosse poder dividir-me nas três principais áreas em que um cantor se move: fazer a música, fazer e letra e interpretar. Como infelizmente não tenho inspiração nem vocação para essas coisas, limito-me a interpretar.”