Óscares
12 março 2024 às 07h33
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O resgate de Robert Downey Jr.

Consagrado com o Óscar de melhor ator secundário pela sua composição em 'Oppenheimer', Robert Downey Jr. é um exemplo raro de versatilidade: quem apenas o viu nos filmes da Marvel não conhece o seu talento.

Não é novidade o facto de, ao longo das décadas, nas categorias mais diversas, alguns vencedores de Óscares agradecerem ao pai, à mãe ou outras figuras emblemáticas da sua infância. Dir-se-ia que, ainda antes das primeiras certezas da consciência, alguém se debruçou sobre os seus berços, profetizando que, um dia, todos os poderíamos ver no palco do Dolby Theatre com uma estatueta dourada nas mãos…

Enfim, a mitologia do cinema aceita este tipo de jogos florais com o destino, mas convenhamos que, ao vencer a categoria de melhor ator secundário pelo seu trabalho em Oppenheimer, Robert Downey Jr. introduziu uma nuance que vale a pena sublinhar. Disse ele: “Gostaria de agradecer à minha terrível infância e à Academia”. E sublinhou: “Por esta ordem”. Depois mencionou a sua mulher, Susan Downey, começando por identificá-la como a sua “veterinária”, para depois emendar: “Ela encontrou-me quando eu era um cãozinho que rosnava num asilo para animais… e devolveu-me à vida — é por isso que estou aqui, obrigado”.

Referia-se, assim, aos graves problemas de toxicodependência que conseguiu superar. Foram mesmo esses problemas que motivaram a ironia, talvez evitável, de Jimmy Kimmel quando, na abertura, se referiu à nomeação do ator: “Este é o ponto mais alto da longa e ilustre carreira de Robert Downey Jr. Enfim, um dos mais altos” - de facto, a observação só funciona em língua inglesa, já que joga com a ambivalência da palavra “alto” (high) que, para lá do sentido literal, pode também significar o estado mais ou menos sonâmbulo de alguém sob o efeito de alguma droga.

Através (ou apesar) de todos estes detalhes, o triunfo de Robert Downey Jr. envolveu qualquer coisa de um renascimento simbólico, resgatando-o de um período em que o ator andou “escondido” no seu guarda-roupa de super-herói, com chancela dos estúdios Marvel - numa dezena de filmes, a partir Homem de Ferro (2008) e até Avengers: Endgame (2019), fez sobretudo figura de corpo presente num registo que raramente apelou à excelência das suas qualidades.

Ver Robert Downey Jr. na personagem que lhe valeu o Óscar (Lewis Strauss, almirante retirado da Reserva Naval da Marinha dos EUA, membro da Comissão para a Energia Atómica) é uma belíssima ilustração da importância da dimensão humana na composição de qualquer personagem.

Tendo em conta as múltiplas discussões, das mais sérias às mais anedóticas, motivadas pelo incremento da Inteligência Artificial, apetece dizer que ver Robert Downey Jr. na personagem que lhe valeu o Óscar (Lewis Strauss, almirante retirado da Reserva Naval da Marinha dos EUA, membro da Comissão para a Energia Atómica) é uma belíssima ilustração da importância da dimensão humana na composição de qualquer personagem. Mais ainda: em Oppenheimer, a sua condição de secundário é tanto mais significativa quanto o filme de Christopher Nolan serve também de exemplo modelar de uma tradição com especial expressão na história de Hollywood - de Joseph L. Mankiewicz a David Fincher - em que as personagens ditas secundárias são vitais na dramaturgia dos filmes.

Elogio da versatilidade

Convém não esquecer que estamos perante alguém que, desde muito cedo, se revelou igualmente à vontade em registos tão diversos como o intimismo de Less Than Zero/A Última Viagem em Beverly Hills (1987), de Marek Kanievska, baseado no romance de Bret Easton Ellis, ou Chaplin (1992), retrato biográfico de Charlie Chaplin assinado por Richard Attenborough. Mais recentemente, a versatilidade das suas composições vai desde Boa Noite, e Boa Sorte (2005), de George Clooney, notável crónica sobre o jornalismo no tempo do “maccartismo”, até à ambiência assombrada do prodigioso Zodiac (2007), de David Fincher, passando pelo muito pouco divulgado e fascinante Fur - Um Retrato Imaginário de Diane Arbus (2006), de Steven Shainberg, contracenando com Nicole Kidman.

Não será preciso evocar as virtudes do mais básico bom senso para acrescentar que nada disto poderia resultar dos artifícios, mesmo os mais sofisticados, de qualquer proeza da Inteligência Artificial. Robert Downey Jr. é mesmo um nome que pertence a uma galeria de notáveis de Hollywood em que encontramos, não apenas outros nomes da produção contemporânea, mas também atores e atrizes que marcaram a idade de ouro dos estúdios da Califórnia: lembremos apenas exemplos como Claude Rains ou Gloria Grahame, e também esse mistério para sempre indecifrável que é John Garfield.

Daí o caloroso simbolismo da apresentação dos quatro Óscares de interpretação por um quinteto de vencedores nas mesmas categorias. No caso do melhor ator secundário, foram eles Mahershala Ali, Ke Huy Quan, Tim Robbins, Sam Rockwell e Christoph Waltz. É caso para dizer: assim se faz a história.