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Sociedade
31 outubro 2024 às 00h34
Leitura: 13 min

Há quase 795 mil estrangeiros residentes em Portugal inscritos no SNS

O boom de inscrições de estrangeiros no SNS ocorreu durante a pandemia, devido ao tratamento da doença e à proteção com a vacina. Os números estão mais estáveis, mas a crescerem no Norte, Centro, Alentejo e ilhas. Para os profissionais, a preocupação “é garantir que a mensagem do tratamento passa”, dizem.

No final do mês de outubro estavam inscritos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) 794 563 estrangeiros residentes em Portugal, segundo revelam os dados da Administração Central dos Sistemas de Saúde (ACSS) disponibilizados ao DN. Mais 223 329 do que em 2019, sendo que o grande boom de inscrições ocorreu entre 2020 e 2023, devido à pandemia de covid-19. “Muitas pessoas já viviam há muito em Portugal, mas com a pandemia inscreveram-se nos centros de saúde para continuarem a ser acompanhados”, explicou ao DN o médico Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF). Mesmo assim, e em relação ao número de autorizações de residência aprovadas pela AIMA, em 2023, divulgado no relatório da instituição neste setembro, 1 044 606, ainda falta acrescentar ao número de estrangeiros no SNS cerca de 200 mil pessoas.   

Mas os dados da ACSS revelam ainda que no SNS há utentes oriundos de  mais de 200 regiões diferentes do mundo, sendo que as nacionalidades mais representadas são a brasileira, angolana, cabo verdiana, indiana, britânica, italiana, ucraniana, nepalesa e guineense (ver tabela). 


A região com maior número de utentes estrangeiros é Lisboa e Vale do Tejo; segue-se o Norte, depois o Centro, Algarve, Alentejo, Madeira e Açores (ver evolução na tabela). Mas enquanto os números de registos de estrangeiros continuam a aumentar em quase todas as regiões, Lisboa e Vale do Tejo e Algarve estão a seguir uma trajetória inversa, sendo que a primeira perdeu 46 743 utentes e a segunda 3056. 

Na resposta ao DN, a ACSS refere que a situação pode ser explicada com o facto de “ os serviços de saúde estarem a encetar uma “atualização dos registos dos utentes inscritos nos Cuidados Primários de Saúde (CPS)”, desde junho de 2023. Ou seja, “nos casos em que é confirmado que o utente já não reside em Portugal, as unidades podem proceder ao encerramento da inscrição, de acordo com o que está determinado no Despacho n.º 1668/2023”. Nos casos em que “esta informação não é possível confirmar, o registo não desaparece, mas fica inativo”.


Os dados oficiais indicam que o SNS tem 10,6 milhões de utentes. Destes, quase 795 mil são cidadãos estrangeiros a residir e a trabalhar em Portugal. Mas, no total, mais de 1,7 milhões (16%) não têm médico de família. E esta é uma das grandes questões quando se fala na eficiência do SNS, não só relativamente aos utentes estrangeiros, mas a todos os utentes do SNS, porque  “o serviço público não está a conseguir responder ao aumento da procura. Isto é um facto e um desafio muito grande, sobretudo para as zonas com maior carência em médicos de família”, destaca  o presidente da APMGF.


Da barreira da língua às particularidades culturais e religiosas


Mas a par desta preocupação há outra em relação a utentes estrangeiros, para quem gere unidades de saúde e para os profissionais: “Garantir que a mensagem do tratamento passou e que está a ser cumprida”, sublinha Nuno Jacinto. E para o conseguirem fazer tanto as unidades de saúde como os profissionais têm vindo a adaptar-se. Como? O médico dá exemplos: “As especificidades da língua fizeram logo com que as unidades com maior número de utentes estrangeiros apostassem em tradutores ou em tecnologias de tradução para que fosse possível a comunicação entre profissionais e utentes. Agora,  os próprios colegas nas suas tecnologias pessoais já têm instalado aplicações de tradução.”


Mas não só. “Do ponto de vista clínico, é preciso dar maior atenção a algumas situações, porque há populações que, pelas suas características e condicionalismos genéticos, têm maior risco de desenvolver certas doenças e temos de estar mais atentos a isso”, explica o médico, sustentando: “É muito variável, mas há populações que geneticamente têm tendência para desenvolver colesterol elevado, outras maior incidência de diabetes e outras, pelo contrário, até acabam por ter menos tendência para este tipo de doença. Mas tudo isto exige aos próprios profissionais mais informação e uma outra preparação para se poderem ajustar os conselhos e as terapêuticas às particularidades destes utentes.”


Nuno Jacinto ressalva que no caso dos utentes portugueses “a recomendação para uma dieta alimentar também difere de um utente do Norte para um do Alentejo, mas no caso dos utentes africanos, e sobretudo asiáticos, é mais complicado. Não é que haja uma dieta certa ou errada, não é isso, mas não podemos querer que um utente asiático faça uma dieta mediterrânica”.


As  particularidades vão ao ponto de se ter mais atenção no acompanhamento clínico de recém-nascidos, de crianças mais velhas ou até das mulheres. No caso dos recém-nascidos, “é logo tudo diferente no que toca à vacinação”, mas depois, mais tarde, há a questão da alimentação, sobretudo  no caso de utentes africanos e asiáticos”. Por isso mesmo, refere, que “tem de haver, logo no início da relação um compromisso dos dois lados, e até uma certa abertura, para se conseguir chegar a um ponto de entendimento quanto ao acompanhamento e tratamento”. 


Por vezes, “não é fácil”, porque tudo tem a ver também com “os hábitos culturais e religiosos”. Daí que Nuno Jacinto reforce que “uma das principais preocupações é a garantia de que os utentes percebem a terapêutica e que a vão cumprir”.


“É difícil uma consulta de planeamento familiar para algumas mulheres”

O médico reconhece que quando o acompanhamento ou tratamento envolve hábitos culturais e religiosos é  mais difícil de lidar com alguns utentes. Por exemplo, “uma consulta de planeamento familiar é muito difícil para algumas mulheres destas comunidades. É difícil convencê-las de que têm de fazer exames de diagnóstico, como rastreio ao cancro da mama ou do colo do útero”. Por vezes, “é também difícil o acompanhamento da gravidez, sobretudo se a utente tiver de lidar com profissionais do sexo masculino”. Ou, noutros casos, se o utente for do sexo masculino e tiver de ser observado por profissionais do sexo feminino. 


E volta a insistir: “Tem de haver um esforço de adaptação de ambas as partes, quer dos cidadãos estrangeiros em Portugal, que têm de se tentar enquadrar minimamente nos nossos hábitos culturais e na nossa organização, quer da nossa parte, enquanto profissionais de saúde, para darmos o melhor tratamento a estas pessoas. É claro que não conseguimos mudar tudo, não conseguimos dar a todos um médico de família, como não conseguimos dar a todos os utentes portugueses, mas também não é o que se pretende. O importante é que possamos conhecer cada vez melhor estas realidades para que a nossa mensagem chegue a estas pessoas”.


Depois  de ultrapassadas algumas barreiras, é preciso garantir que “há a correta adaptação à terapêutica”. E, no caso de ser necessário a realização de exames de diagnóstico, “há que ter a garantia de que o utente percebeu onde tem de se dirigir e o que deve fazer”.

“O problema são aqueles que vêm a Portugal e vão diretos às Urgências para serem tratados”

Mas o aumento do número de utentes estrangeiros residentes no país "não é um grande problema para o SNS” , diz o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), Xavier Barreto, porque tal não implicou “grandes alterações na forma como os serviços funcionam”.  “Apenas tivemos de fazer algum investimento, na compra de equipamento, por exemplo, para facilitar a comunicação entre profissionais e alguns utentes”, justifica, reconhecendo, no entanto, que o aumento da procura associada “à falta de profissionais aumenta a pressão nos serviços”. 
O administrador conta ao DN que a chegada de alguns utentes, sobretudo oriundos da Ásia,  levou a “recorrer-se ao trabalho de tradutores, mas isto rapidamente caiu em desuso, porque a tecnologia ajudou a ultrapassar essas barreiras, não tendo sido necessário um grande investimento”.

E se do ponto de vista clínico os profissionais têm de se adaptar às diferenças culturais e religiosas de alguns utentes, do ponto de vista dos administradores há outras preocupações. E estas não são sequer do ponto de vista dos custos, porque “a partir do momento que um utente reside no país, trabalha e paga os seus impostos, tem direito à saúde, como qualquer cidadão português”. Portanto, sublinha, “não temos sequer números sobre quanto é que estes doentes podem custar ao SNS. Os custos são por patologias e atos e não por nacionalidades”. 


Em termos de investimento, a única questão existente que “podemos apontar é que o SNS não investiu o que deveria para dar resposta a estas centenas de milhares de pessoas como a todos os outros utentes. Temos 1,7 milhões sem médico de família”.


Na verdade, alerta, “o grande problema para o SNS são os doentes que  vêm cá de propósito à procura de cuidados e que não estão registados no país”. Ou seja, “doentes que chegam aos nossos aeroportos e que vão diretos a um Serviço de Urgência a queixar-se de dores, mal-estar ou com algumas alterações, no caso de uma grávida, e que têm de ser tratados. Porque, do ponto de vista ético e humano, não é possível lidar com esta situação de outra maneira. É um cuidado urgente”, argumenta. Mas, depois, temos o outro lado, “a pessoa é tratada, por vezes com continuidade, e há custos para o erário público, mas quando se tenta a cobrança dos cuidados junto dos próprios, que, por vezes, já regressaram ao seu país, ou junto das suas embaixadas é muito difícil conseguir que tal aconteça”, explica.


À questão sobre se são muitos os casos deste tipo nos hospitais portugueses, Xavier Barreto diz não ter uma “noção global do fenómeno”, mas, reforça, “a maior parte entra pelas Urgências e, portanto, é quase impossível travar essa entrada, quando de facto há uma situação clínica para tratar”.


O administrador diz ao DN que “o tema tem vindo a ser discutido nalguns fóruns, porque o SNS tem de lidar com estas situações”. Por isso, defende, que tem de haver “um maior esforço entre o Estado português e algumas embaixadas de alguns países para se poder gerir melhor não só a vinda destas pessoas, como a sua estadia em Portugal e, depois, o pagamento dos cuidados que receberam”. Xavier Barreto não tem números sobre estes casos, mas destaca que, “nalgumas áreas específicas, como maternidades, oncologia e outras, isto acontece”.


Na opinião do presidente dos administradores, quando se fala na pressão dos serviços de saúde, na dificuldade no acesso a consultas, cirurgias e até aos Serviços de Urgência é claro que este “aumento da procura conta”, sobretudo associado à  “falta de profissionais”, e que “o investimento no SNS tem de ter em conta os dois aspetos”. 

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