Há 50 anos
22 março 2024 às 00h03
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Onde eu estava... por Manuel Soares de Oliveira

Nasceu em Washington, DC, em 1963. É publicitário.

Redação

Em março de 1974, tinha onze anos e frequentava orgulhosamente o primeiro ano do excelente Colégio Militar em Lisboa. Era um “Rata”, o 480. 

Antes da Revolução, o Colégio Militar era muito exigente e fortemente disciplinado. Depois da Revolução continuou igual, excetuando o facto de os soldados terem deixado crescer a barba e o cabelo, para parecerem revolucionários, decisão que lhes conferiu um demarcado mau aspeto.

Para um miúdo da minha idade, o assunto mais assustador era a Guerra do Ultramar. Havia a certeza de que iríamos todos servir nessa guerra. Sensação ainda mais presente quando se estuda num colégio militar, onde o assunto era recorrente. 

Fora do Colégio vivia-se na lenta normalidade da época. O tempo passava devagar e pouco acontecia. Brincava-se na rua, davam-se grandes passeios de bicicleta, no meu caso uma belíssima Chopper encarnada. 

Vivíamos em Cascais, que nessa altura era ainda uma vila simpática e tranquila, nada que se pareça com o horror urbanístico atual. Apesar da minha família poder ser considerada acima da média para os padrões de consumo da época, não havia desperdícios nem gastos supérfluos. Um carro apenas, raras idas a restaurantes e as roupas passavam de um irmão para o outro (somos cinco). Era comum andarmos com as calças com marcas das bainhas anteriores, que ficavam à vista quando tinham de ser “baixadas”. Fazia parte da rotina a vinda a casa de uma costureira que “arranjava” a roupa de toda a família. Havia igualmente outras criadas.

Em Cascais tinha-se mais noção da riqueza acumulada por algumas famílias, mas ao mesmo tempo havia a ilusão de um maior entrosamento entre as classes sociais. No hóquei do Dramático de Cascais jogavam filhos das mais diversas proveniências cascalenses. Todos jogávamos à bola nos campos pelados dos baldios, que nessa altura ainda existiam.

Este igualitarismo, porém, acabava por ser mais aparência do que realidade. As gerações mais velhas estavam sempre atentas às nossas companhias. Havia distinção entre famílias antigas e novos-ricos. Uma “snobeira” asfixiante definida logo à nascença. Construiu-se uma falsa ideia de que as pessoas, nessa altura, eram avaliadas apenas pelos seus méritos, quando na verdade o apartheid social era evidente, embora ainda não tivesse chegado ao nível atual de “guetização” - os ricos vivem escondidos atrás de muros em condomínios fechados. 

Salvo alguns “estrangeirados”, que iam para o St. Julians em Carcavelos, todos frequentávamos o Liceu de S. João, considerado, na altura, exemplar e rigoroso. O ensino em Inglês estava longe de ter a preponderância dos dias atuais, sendo que muitos pais ainda preferiam a cultura francesa.

Já então me interessava por política e lia jornais, entre os quais se destacava o Diário de Notícias, com tanto conteúdo que ocupava uma manhã inteira de leitura. Lembro-me de tentar lê-lo na praia do Guincho, exercício impossível dado o tamanho do jornal na época e os constantes ventos que caracterizam essa praia.

Com onze anos não tinha ainda a noção de que vivíamos numa ditadura. Os jornais falavam dos dois blocos, o soviético e o ocidental, e eu sabia que pertencíamos ao ocidental, mas sem me aperceber muito bem de quais eram as implicações de não sermos uma democracia. 

Eram tempos mais simples, de uma aparente normalidade, que escondiam o tremor de terra que vinha a caminho e mudaria para sempre a nossa sociedade. Uma das grandes surpresas que tive depois da Revolução, foi “descobrir” que afinal todos eram antifascistas.

Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles