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Dinheiro
18 outubro 2024 às 23h42
Leitura: 11 min

A denúncia, o assobio e o jantar de solidariedade. Os primeiros quatro dias de julgamento

Um dos maiores julgamentos da história da justiça portuguesa começou na última semana. Já decorreram quatro audiências. Para já, sobram apontamentos sobre a “não relação” de Salgado com Ricciardi e a tentativa da defesa de suspender os procedimentos devido ao estado de saúde do principal arguido.

Por ambição ou por displicência a família Espírito Santo tropeçou nos próprios pés e, perante uma supervisão titubeante, afundou financeiramente o Banco Espírito Santo (BES). O maremoto provocado em 2014 no Grupo Espírito Santo (GES), que controlava o banco e os negócios em áreas não-financeiras, fez temer o pior nas contas públicas, que quase não resistiram à nacionalização do banco, e consequente divisão em “banco bom” e “banco mau”. O colapso do BES originou um megaprocesso judicial - 18 arguidos a responder por mais de 300 crimes, 733 testemunhas e 135 assistentes - cujo julgamento começou no dia 15, dez anos depois da queda do império Espírito Santo.

O DN tem estado no Juízo Central Criminal de Lisboa. De um lado, o MP defende a tese que Ricardo Salgado, líder do BES e GES por mais de 20 anos, foi o principal responsável e estima que os ilícitos em causa geraram prejuízos para o país acima dos 18 mil milhões de euros.  Ao lado do MP estão os lesados do BES, que querem recuperar o que perderam. Do outro, a defesa de Salgado interroga como pode ser julgado o antigo banqueiro que hoje sofre de Alzheimer. Os outros 17 arguidos rejeitam responsabilidades.

Eis quatro histórias que contam, do último para o primeiro dia, a semana inicial do julgamento.

Dia 4: “Os lesados que se lixem”

18 de outubro. O quarto dia de julgamento começou com um caricato “saudações leoninas” de Rogério Alves, um dos advogados dos arguidos, ao antigo presidente do BESI e membro do conselho superior do GES, o único que testemunho na sexta-feira.

Para memória futura,  José Maria Ricciardi relatou um jantar, entre maio e junho de 2014, em que Ricardo Salgado de quem é primo direito, tentou comprar a sua conivência com a “falsificação das contas”.  “Fomos recebidos por ele e pela sua mulher [Maria João], com uma simpatia exagerada. As nossas mulheres nem se davam propriamente bem, mas a mulher do dr. Salgado até disse que deviam de ir ao cinema, ao Cascais Shopping, uma coisa um bocado pateta... No fim do jantar, fomos  para o escritório e pergunta-me -  ‘O que é que tu queres?” relatou, admitindo que “toda a gente pode especular” que resposta esperaria o ex-líder do BES. Ricciardi disse que   pediu mais atenção com o BESI e outro tipo de gestão e que, em troca, Salgado pedira “solidariedade com a família”, ou seja conivência. “Não contas com a minha solidariedade. Nunca fui tido nem achado sobre isto. Não vou ser solidário. Nessa altura, [Salgado] mostrou grande desagrado”, contou, sem conseguir explicar por que razão foi o único elemento da família a desafiar o ex-banqueiro. “Tinham medo de Salgado”, asseverou, mas sem especificar as razões de tal opinião.

Outra nota que fica do depoimento de Ricciardi, que prosseguiu o testemunho iniciado na quinta-feira, aprofundou críticas ao Banco de Portugal e ao ex-governador Carlos Costa, ao explicar o motivo para os lesados do BES não terem sido compensados. Segundo o gestor, tinha sido criada uma provisão para pagar a quem comprou papel comercial da ESI e Rioforte, vendido a clientes do BES, e que fora aprovado por um “conselho de administração fictício” sem passar pelos executivos do banco. Em 2014 havia dúvidas sobre se os clientes que o adquiriram seriam pagos pelo Novo Banco, mas o então líder do banco bom, Eduardo Stock da Cunha, garantira no Parlamento que sim. Mas não aconteceu.

Ricciardi contou que os “200 elementos da PwC” fizeram “tão bem” a separação dos bens do banco que, “a certa altura”, faltavam “500 milhões em provisões para créditos do Novo Banco”.

“O que o governador Carlos Costa e o Fundo de Resolução se lembraram? Vamos tomar a conta dos lesados, porque não era sobre a emissão de títulos, era sobre terceiros - a ESI e a Rioforte - não afetava nada o capital, que se lixem os lesados, e vamos deslocar esse dinheiro para os créditos que faltavam para as contas que a gente fez mal”, afirmou.

Perante aquele relato, a defesa de Salgado - liderada por Francisco Proença de Carvalho - optou por não contra-argumentar, avisando que o antigo banqueiro não tem condições de saúde para contestar  a testemunha. Mesmo assim, a defesa quis saber se Ricciardi está de relações cortadas com o primo. “O dr. Ricardo Salgado é que está de relações cortadas comigo”, respondeu.

Dia 3: O assobio para os primos

17 de outubro. Ao terceiro dia de julgamento ficou no ouvido de que assistiu à audiência um assobio inaudível para o comum mortal. Um assobio a  avisar para a situação do BES, em 2013.

O dia tinha começado com um depoimento gravado em 2015, no Departamento Central de Investigação Criminal e AçãoPenal (DCIAP), de António Ricciardi, tio de Ricardo Salgado e pai de José Maria Ricciardi que à data do colapso era presidente do conselho superior do GES. Nele, o falecido gestor insistiu que ou não sabia ou não se lembrava de muita coisa, apesar de haver documentos por ele assinados para pagamentos e transferências que, acredita o MP, pagariam “luvas” vinda de offshores. Ainda assim, soube dizer que Ricardo Salgado “é que controlava a gestão do grupo”, que o contabilista do GES, Machado da Cruz, lhe confidenciou que tinha recebido indicações de Salgado para manipular as contas. E “Amílcar Morais Pires [CFO do banco] era um dos homens de que o Ricardo se servia”.

Da parte da tarde, José Maria Ricciardi iniciou o que terminou na sexta-feira. Reiterou desconhecer a manipulação das contas antes de dezembro de 2013 - e que só teve provas em 2014 - e que então tinha avisado o BdP. “Carlos Costa assobiou para o lado e disse-me para ficar quieto. [...] Disse que eu já tinha feito pessimamente com as declarações nos jornais e que a guerra com o primo [Ricardo Salgado] estava a perturbar o sistema financeiro. E eu disse-lhe se não achava que eu, como administrador, não devia comunicar”, relatou o gestor, ao contar que se tinha queixado de Salgado e do BES antes do colapso.

Ricciardi foi questionado sobre e-mails, atas e transcrições de conversas com Salgado. Numa delas, o ex-líder do BES dizia: “Não sei se estão a perceber o filme que está a acontecer, nós estamos a transferir [dinheiro] dos clientes e a pedir uma transferência  do passivo da ESI para a Rioforte”, lia-se.

Dia 2: O grande ausente

16 de outubro.  Antes do “ataque” do clã Ricciardi, o tribunal ouviu Ricardo Salgado. Não o que sofre de Alzheimer, mas o banqueiro lúcido de 2015. Primeiro através de um depoimento dado ao juiz de instrução Carlos Alexandre, mas problemas no áudio da gravação levaram o tribunal a optar pelo depoimento gravado no DCIAP ao procurador José Ranito, cujo conteúdo era idêntico. A defesa de Salgado tentou impedir a reprodução do depoimento, alegando que o arguido não está em condições de contraditar, mas o tribunal rejeitou, porque não retirava condições de defesa a Salgado.

No depoimento, o antigo banqueiro aponta o dedo a Machado da Cruz pelos erros nas contas. “Nunca tínhamos tido problemas em relação às holdings. A gestão administrativa das holdings era feita à distancia, de tal maneira que assinávamos as atas, as contas eram depositadas no Luxemburgo e durante 40 anos nunca ninguém nos disse que devíamos consolidar as contas. Nunca houve das autoridades luxemburguesas um alerta para consolidar as contas, apesar de a Espírito Santo Financial Group estar dentro da ESI”, disse.

Dia 1: O olho negro

15 de outubro. O momento do primeiro dia  foi a chegada de Ricardo Salgado ao Campus de Justiça, rapidamente interpelado por alguns lesados do BES e rodeado de jornalistas que procuravam reações de quem já foi o “dono disto de tudo”. Impossível. O homem que entrou no tribunal, perante o juiz, só conseguiu dizer o nome e o dos pais, apesar de um lapso nos apelidos da mãe. Lembrava-se que fora banqueiro e que morava em Cascais, mas não sabia a morada. Saiu da sala, após a identificação. Não deverá voltar mais. À saída, o advogado de defesa referiu que se abriu “uma página negra” na justiça, por querer julgar um homem que já não está capaz. E o que ficou foi a imagem de alguém de olhar ausente, olho direito negro, sem grandes certezas do que estaria a acontecer ao redor. Mas há uma década, o mesmo homem, segundo o MP,  “logrou apropriar-se do património de terceiros”. 

O julgamento prossegue dia 22, depois de o MP ter pedido na sexta-feira o estatuto de maior acompanhado para o antigo banqueiro. “O tribunal constata que a pessoa não está no uso de todas as faculdades e designa uma pessoa que substitua a pessoa diminuída. Pergunta-se ao beneficiário, se conseguir, dizer quem quer ser o acompanhante e pode ser a mulher. Se não for possível, o tribunal pode não aceitar também a escolha e nomear outra”, disse a advogada Ana Pires, coordenadora do Departamento de Família e Menores da RSA, citada pela agência lusa, clarificando que no limite e em abstrato pode ser alguém exterior à família. A defesa congratulou-se que o MP tenha "reconhecido a situação" de incapacidade, mas considera que o estatuto de maior acompanhado não resolve o problema.

Tópicos: caso BES, Justiça