Sim, é um facto que, na melhor das hipóteses, o arquitecto Tomás Taveira será recordado no futuro como o distinto autor das Torres das Amoreiras, em Lisboa, mas também, ou sobretudo, como o não menos distinto actor (e produtor e realizador) daqueles filminhos caseiros que causaram um clamor danado nos idos anos 90 e que ainda hoje são lembrados, proeza a dele, como a maior escandaleira sexual na história do Portugal democrático. Como então disse Joaquim Vieira, “o episódio é um marco na história social portuguesa” e, graças a ele, Taveira entrou “definitivamente na mitologia nacional” (cf. Expresso-R, de 14/10/1989).
Portanto, destino oscilante entre o trágico e o cómico, e porventura injusto, já que o arquitecto Tomás, para a posteridade crismado “o Taveira”, rubricou, além daquelas fitas escaldantes, obras igualmente polémicas noutros domínios artísticos, v.g. no campo da arquitectura e do design de mobiliário (fez também os cenários da SIC, em comandita com Emílio Rangel, que lhe metera uma cunha para uma protegida sua entrar na Faculdade de Arquitectura – cf. jornal i, de 4/10/2018). Será pouco próprio, de facto, reduzir os 85 anos de vida do arquitecto Tomás, tão intensos, tão vulcânicos, àqueles 30:01 minutos fatídicos que dura a película escabrosa, hoje disponibilizada urbi et orbi sob o título “O Vídeo Comprometedor” ou, noutras versões, “TodoLaDentro” (em certos sítios mais selectos da Internet, a mesma encontra-se catalogada e arquivada como “Tomás Taveira, um grande Português” ou, quiçá na mira de um Óscar, “Taveira: Free Solo Man Porn Video 58”). É cruel? Será. Mas é lindo.
Pode afirmar-se, de resto, que existe uma óbvia continuidade, ou até contiguidade, entre a arquitectura de Tomás Taveira e as suas aventuras íntimas, gravadas em VHS. Não é por acaso que, na gíria popular, a mais sábia de todas, a expressão “taveirada” tanto designa os deleites da sodomia como o pavor arquitectónico, e, em verdade, verdadinha, no caso em apreço ambos relevam de um mesmo e só domínio, o pornográfico, aqui espraiado em modo boçal e alarve. É facto, também, que, quando contemplamos coisas como o edifício-sede do BNU, construído em 1989 e louvado em 1994 com uma Menção Honrosa do Prémio Valmor (!), ou a zona residencial da Encosta das Olaias, galardoada com um Valmor em 1982 (!), nos sentimos todos um bocadinho seviciados e estraçalhados, quando não sodomizados, no nosso senso e no gosto, tal qual as pobres moças dos vídeos, as quais, ainda assim, sempre consentiram naquilo, espera-se, ao contrário de nós, cidadãos desta cidade, que fomos confrontados, entre outras bizarrias, com o monstro fétido da 5 de Outubro sem para ele sermos achados, nem tidos. Culpa da câmara e das vereações, é certo, que ao longo dos anos têm mostrado uma total desprezo pela urbe que governam e pelos que nela habitam (além de revelarem uma alarve incultura, quando não uma venalidade corrupta), e culpa do autor do projecto, sem dúvida; mas culpa, também, do ambiente e da cultura em que o arquitecto Taveira pôde crescer e medrar, mormente da voga pós-modernista em que dizia enfileirar, corrente que tudo relativizou e dissolveu, assim pavimentando o caminho ao actual reino das fake newse da pós-verdade. Com efeito, e por muito que nos custe a crê-lo, o presente extremismo político e as suas pulsões totalitárias são herdeiros directos da atmosfera feérica dos anos 80 e da sua divisa, mais tarde levada ao limite, nothing is true and everything is possible. Primeiro, destruíram-se as noções de verdade, de objectividade, de racionalidade e, a seguir, as distinções éticas entre o bem e o mal, o certo e o errado. E depois surgiu Trump.
Tomás Cardoso Taveira nasceu em Lisboa, em 22 de Novembro de 1938, no seio de uma família que o próprio qualifica como “muito pobre”, sendo seu pai agulheiro da Carris e a mãe doméstica. Por esta, que lhe ensinou as primeiras letras, teria sempre uma enorme devoção, com contornos edipianos ou assim parece, a crer no que escreve o jornalista francês Mathieu Garrigou-Lagrange numa biografia ficcionada do arquitecto, mas baseada em depoimentos deste e em factos reais, Le brutaliste, de 2021 (cf., a propósito deste livro, Tiago Bartolomeu Costa, “Cadáver esquisito de um arquitecto maldito”, Público, de 20/5/2021). O avô materno foi um dos fundadores da Carbonária e, à conta disso e doutras tropelias, acabou morto por Salazar na célebre Matança de Badajoz, no ano de 1936, assevera o arquitecto e nós acreditamos nele, mesmo com as maiores reservas.
Com a infância passada entre a Picheleira e Alcântara, Tomás cresceu, segundo o próprio, “no meio de ciganos, de operários, de gente do mais reles que havia” e concluiu a primária na Escola n.º 14, no Largo do Leão. Não tendo meios para prosseguir o liceu, matriculou-se na escola industrial, com o fito de fazer carreira na marinha mercante. Sonhava ir para a Afonso Domingues, mas a mãe achava o ambiente escolar “de cortar à faca” e, por isso, acabou na Marquês de Pombal, ao Largo do Calvário, onde tirou o curso industrial, com o qual começou a trabalhar na Carris, empresa onde já estava seu pai e que, por essa via, lhe franqueou as portas de par em par. Nessa altura, afirma Garrigou-Lagrange, aderiu ao PCP e teve a sua primeira experiência com uma prostituta.
Em 1955, abandonou a Carris, onde era serralheiro nas oficinas de Santo Amaro, para ingressar no ateliê de Nuno Teotónio Pereira como desenhador. O jeito para o traço veio de muito novo ou, nas suas inconfundíveis palavras, “desde miúdo que desenho muito bem. Qualquer tipo de coisa.” Em jovem, como morava no n.º 2 do Largo do Leão, e como no n.º 4 morava Joaquim Pereira, um negro que fazia os cenários do Monumental e que então vivia com Helga Liné (uma escultural bailarina de origem alemã que veio viver para Portugal durante a Segunda Guerra e daqui partiu para uma carreira internacional em fitas de horror e acção, fortemente eróticas, tendo entrado também em filmes de Almodóvar e na série Verão Azul), Tomás teve uma precoce iniciação artística – e, sobretudo, o conselho sábio de Joaquim para que largasse os devaneios de marinheiro e se fizesse antes arquitecto de profissão. Confessa hoje que, na época, nem sabia sequer o que era a arquitectura.
Começou por trabalhar como moço de recados nos ateliês de dois nomes famosos, Formosinho Sanchez e Maurício de Vasconcelos, a quem levava os lanches e o petróleo para o aquecimento, e que o deixavam fazer “uns desenhinhos” sem o levarem muito a sério. “Eu era um corpo estranho, era o gajo que estava ali para afiar os lápis, para ir comprar o lanche, para atender o telefone se não estivesse lá ninguém. Nunca me ligaram nenhuma”, coisa que decerto o marcou e que, acima de tudo, não o fez desistir de lutar, lutar sempre, labutando como um louco nos ateliês de Luiz Alçada Batista, Manuel Laginha, Teotónio Pereira, Nuno Portas, Conceição Silva, trabalhos que, aliados ao início da vida familiar – casara com Amarílis Cristina e esta estava grávida da primeira filha –, o fizeram retardar os estudos de arquitectura ou, como ele diz, “acabei o curso tarde, porque não precisava de ter curso.”
Nos intervalos do trabalho e das aulas, que frequentou com uma bolsa da Gulbenkian, ainda tinha tempo para participar, em posição menoríssima, nas tertúlias dos cafés Gelo e Montecarlo, onde conheceu os surrealistas e privou com António Marta Lisboa, Mário Cesariny e Carlos Leote, entre outros. Quando se encontrava no primeiro ano da ESBAL, foi convocado para a tropa, segundo ele por razões políticas. Aí conheceu Herberto Helder e Fernando Assis Pacheco, os quais, à semelhança dos arquitectos de renome, não lhe davam particular importância: “eles eram super-amigos e eu… Eu fui sempre um personagem menor. Nunca fui o centro das atenções.” Um acumular de complexos e ressentimentos sociais, e culturais, à boa maneira de Rastignac, o que talvez explique muito do sucedido depois, na sua vida e na nossa: o triunfalismo pujante do traço arquitectónico, que o próprio assume como “barroco”, e as suas fatuidades grotescas, de um egocentrismo que raia o patético: “Acho que sou um grande arquitecto e sei mais do que estes gajos todos juntos”, “Quem é que ganhou [o Prémio Pritzker]? O Siza? Porquê? Porque o Jay Pritzker é judeu e o Siza também”, “Tenho pena que não haja dez Taveiras”, “O Souto de Moura não é arquitecto. É um produto do Siza. O Souto de Moura existe porque o Siza o foi promovendo.”
Numa entrevista à Camões TV, em Março de 2020, e disponível no canal YouTube, contou um episódio revelador, a pega de morte que teve com Nuno Teotónio Pereira, em cujo ateliê trabalhava às manhãs como desenhador; quando lhe disse que às tardes era arquitecto no gabinete de Conceição Silva, Teotónio não acreditou e, irritado, Tomás chamou-o de tudo. “Para o Teotónio eu não era nada”, diz Taveira, passadas décadas, lembrando que “quem ia para arquitectura era o filho-família”, enquanto “eu era o operário, fazia gala em ser operário, malandrão.” Sobre o incidente, confessa que o marcou “muito, muito, muito” e, note-se, “isto ainda me enraiveceu mais em relação ao mundo, ainda me fez estudar mais, fazer sempre mais.”
Se todos os arrivistas odeiam a memória, até porque ela lhes vem lembrar o lugar de onde vieram e as humilhações sofridas ao longo dos anos, com Taveira, esse tique é levado ao extremo, o que por certo explica a sua arquitectura de artificio e ruptura, em militante desprezo pelas zonas envolventes dos edifícios que projecta e pela sua história, e a preferência pelo estrondoso e pelo efémero, visível até na escolha de materiais de desgaste rápido ante a usura do tempo, como se comprova no triste estado de degradação em que se encontram muitas das suas criações mais emblemáticas, incluindo as Amoreiras, que ele, sensatamente, diz não ter por hábito contemplar. Lamentavelmente, uma das suas melhores obras, a Loja de Discos da Valentim de Carvalho em Cascais, com intervenções pop de Rolando Sá Nogueira e de Herberto Helder, encontra-se hoje em estado miserável, como miserável é o estado do centro daquela pitoresca vila, outrora tão pitoresca.
Num dos seus rebarbativos vídeos, vemo-lo a falar a conspirar ao telefone com um mandarim académico, pois, além de praticante de arquitectura, foi também professor da dita, na Universidade Técnica de Lisboa (também leccionou em Los Angeles), após ter feito uma pós-graduação em Planeamento Regional e Urbano pelo MIT. Não foi, porém, feliz como docente: “Odiei. O ambiente na universidade é um ambiente podre, de luta pelo poder, um ambiente não-crítico, onde é impossível falar de cultura. (…) Eu dei aulas gloriosas, em que misturava a pintura com a escultura e com as diferentes tendências de música. Isso fascinava-me, mas acho que nunca ninguém percebeu o que eu disse.”
Recentemente, têm perguntado por ele, outrora tão assíduo nos lugares mundanos ou nas festas do cavaquismo, a que acorria no seu sumptuoso Rolls. A revista Flash!, de 29/4/2018, atribui o seu desaparecimento ao escândalo gerado pela história das cassetes, fazendo questão de informar os interessados que as mesmas “ainda hoje estão acessíveis em sites de pornografia.” Já a VIP, de seu lado, garante que Tomás “continua a dar cartas no mundo da arquitectura” e que até “tem em mãos um projecto para um novo estádio de futebol no Uzbequistão”, país onde, pelos vistos, ainda não chegaram ecos do célebre episódio de 1989, quando, sob o título “As Loucuras Sexuais de Tomás Taveira”, a revista Semana Ilustrada deu a conhecer ao mundo as intimidades do autor das Amoreiras com um conjunto de mulheres que, importa dizê-lo, foram expostas e alvo de troça por parte de uma nação inteira. De facto, na sofreguidão do escândalo e da pilhéria esquecemo-nos de que, mesmo que as visadas tenham consentido naquela actividade de risco, por certo não autorizaram que a mesma fosse gravada e, menos ainda, exibida à descarada.
Tomás Taveira, naturalmente, ainda hoje não gosta de falar do sucedido, mas a Garrigou-Lagrange adiantou um pouco sobre a sua versão dos factos. Segundo ele, uma das raparigas filmadas pediu-lhe as cassetes para mostrar às amigas, uma história pouco credível (noutras versões que correram na altura, teria sido um funcionário do ateliê a descobrir e desviar os vídeos maliciosos), e, depois, o marido dessa rapariga ofereceu a bomba ao Tal & Qual, a troco de 20 mil contos, o qual não só não quis o negócio como avisou o visado. Este, de resto, já deveria pressentir que aquele era um ano aziago, pois, em Janeiro do dito, um astrólogo previra que 1989 seria para ele terrível. Após ter sido divulgado um outro escândalo, o de facturas falsas e fuga aos impostos num contrato com o Ministério da Saúde (Garrigou-Lagrange fala também de malas com dinheiro de Macau, transportadas para o PS), Taveira terá confidenciado aos amigos que a profecia se estava a cumprir, tanto mais que já sabia que, dois anos antes, as cassetes porcas andavam por mãos alheias. Em Agosto, contudo, e com a habitual prosápia, proclamava ao Expresso ser “psicologicamente indestrutível.” Pouco depois, no início de Setembro, um jornalista da revista Sábado, que acabara de publicar uma peça sobre a sua obra, avisou-o dos rumores que corriam em Lisboa à conta de uns vídeos picantes em que ele surgia no papel principal e, na manhã de dia 11, José Rocha Vieira, do Tal & Qual telefonou-lhe informando-o que vira a arrepiante cassete, ou parte dela, e pedia um comentário seu (Taveira respondeu com a truculência da praxe). À tarde, foi contactado por Raul Ribeiro, chefe da redação do semanário O Caso, solicitando-lhe uma entrevista sobre a sua arquitectura. Aceitou (cf. Expresso-R, de 14/10/1989).