Prova de vida
02 junho 2024 às 09h57
Leitura: 39 min

Tomás Taveira: as cólicas de um arquitecto

Sim, é um facto que, na melhor das hipóteses, o arquitecto Tomás Taveira será recordado no futuro como o distinto autor das Torres das Amoreiras, em Lisboa, mas também, ou sobretudo, como o não menos distinto actor (e produtor e realizador) daqueles filminhos caseiros que causaram um clamor danado nos idos anos 90 e que ainda hoje são lembrados, proeza a dele, como a maior escandaleira sexual na história do Portugal democrático. Como então disse Joaquim Vieira, “o episódio é um marco na história social portuguesa” e, graças a ele, Taveira entrou “definitivamente na mitologia nacional” (cf. Expresso-R, de 14/10/1989).

Portanto, destino oscilante entre o trágico e o cómico, e porventura injusto, já que o arquitecto Tomás, para a posteridade crismado “o Taveira”, rubricou, além daquelas fitas escaldantes, obras igualmente polémicas noutros domínios artísticos, v.g. no campo da arquitectura e do design de mobiliário (fez também os cenários da SIC, em comandita com Emílio Rangel, que lhe metera uma cunha para uma protegida sua entrar na Faculdade de Arquitectura – cf. jornal i, de 4/10/2018). Será pouco próprio, de facto, reduzir os 85 anos de vida do arquitecto Tomás, tão intensos, tão vulcânicos, àqueles 30:01 minutos fatídicos que dura a película escabrosa, hoje disponibilizada urbi et orbi sob o título “O Vídeo Comprometedor” ou, noutras versões, “TodoLaDentro” (em certos sítios mais selectos da Internet, a mesma encontra-se catalogada e arquivada como “Tomás Taveira, um grande Português” ou, quiçá na mira de um Óscar, “Taveira: Free Solo Man Porn Video 58”). É cruel? Será. Mas é lindo.

Pode afirmar-se, de resto, que existe uma óbvia continuidade, ou até contiguidade, entre a arquitectura de Tomás Taveira e as suas aventuras íntimas, gravadas em VHS. Não é por acaso que, na gíria popular, a mais sábia de todas, a expressão “taveirada” tanto designa os deleites da sodomia como o pavor arquitectónico, e, em verdade, verdadinha, no caso em apreço ambos relevam de um mesmo e só domínio, o pornográfico, aqui espraiado em modo boçal e alarve. É facto, também, que, quando contemplamos coisas como o edifício-sede do BNU, construído em 1989 e louvado em 1994 com uma Menção Honrosa do Prémio Valmor (!), ou a zona residencial da Encosta das Olaias, galardoada com um Valmor em 1982 (!), nos sentimos todos um bocadinho seviciados e estraçalhados, quando não sodomizados, no nosso senso e no gosto, tal qual as pobres moças dos vídeos, as quais, ainda assim, sempre consentiram naquilo, espera-se, ao contrário de nós, cidadãos desta cidade, que fomos confrontados, entre outras bizarrias, com o monstro fétido da 5 de Outubro sem para ele sermos achados, nem tidos. Culpa da câmara e das vereações, é certo, que ao longo dos anos têm mostrado uma total desprezo pela urbe que governam e pelos que nela habitam (além de revelarem uma alarve incultura, quando não uma venalidade corrupta), e culpa do autor do projecto, sem dúvida; mas culpa, também, do ambiente e da cultura em que o arquitecto Taveira pôde crescer e medrar, mormente da voga pós-modernista em que dizia enfileirar, corrente que tudo relativizou e dissolveu, assim pavimentando o caminho ao actual reino das fake newse da pós-verdade. Com efeito, e por muito que nos custe a crê-lo, o presente extremismo político e as suas pulsões totalitárias são herdeiros directos da atmosfera feérica dos anos 80 e da sua divisa, mais tarde levada ao limite, nothing is true and everything is possible. Primeiro, destruíram-se as noções de verdade, de objectividade, de racionalidade e, a seguir, as distinções éticas entre o bem e o mal, o certo e o errado. E depois surgiu Trump.

Tomás Cardoso Taveira nasceu em Lisboa, em 22 de Novembro de 1938, no seio de uma família que o próprio qualifica como “muito pobre”, sendo seu pai agulheiro da Carris e a mãe doméstica. Por esta, que lhe ensinou as primeiras letras, teria sempre uma enorme devoção, com contornos edipianos ou assim parece, a crer no que escreve o jornalista francês Mathieu Garrigou-Lagrange numa biografia ficcionada do arquitecto, mas baseada em depoimentos deste e em factos reais, Le brutaliste, de 2021 (cf., a propósito deste livro, Tiago Bartolomeu Costa, “Cadáver esquisito de um arquitecto maldito”, Público, de 20/5/2021). O avô materno foi um dos fundadores da Carbonária e, à conta disso e doutras tropelias, acabou morto por Salazar na célebre Matança de Badajoz, no ano de 1936, assevera o arquitecto e nós acreditamos nele, mesmo com as maiores reservas.

Com a infância passada entre a Picheleira e Alcântara, Tomás cresceu, segundo o próprio, “no meio de ciganos, de operários, de gente do mais reles que havia” e concluiu a primária na Escola n.º 14, no Largo do Leão. Não tendo meios para prosseguir o liceu, matriculou-se na escola industrial, com o fito de fazer carreira na marinha mercante. Sonhava ir para a Afonso Domingues, mas a mãe achava o ambiente escolar “de cortar à faca” e, por isso, acabou na Marquês de Pombal, ao Largo do Calvário, onde tirou o curso industrial, com o qual começou a trabalhar na Carris, empresa onde já estava seu pai e que, por essa via, lhe franqueou as portas de par em par. Nessa altura, afirma Garrigou-Lagrange, aderiu ao PCP e teve a sua primeira experiência com uma prostituta.

Em 1955, abandonou a Carris, onde era serralheiro nas oficinas de Santo Amaro, para ingressar no ateliê de Nuno Teotónio Pereira como desenhador. O jeito para o traço veio de muito novo ou, nas suas inconfundíveis palavras, “desde miúdo que desenho muito bem. Qualquer tipo de coisa.” Em jovem, como morava no n.º 2 do Largo do Leão, e como no n.º 4 morava Joaquim Pereira, um negro que fazia os cenários do Monumental e que então vivia com Helga Liné (uma escultural bailarina de origem alemã que veio viver para Portugal durante a Segunda Guerra e daqui partiu para uma carreira internacional em fitas de horror e acção, fortemente eróticas, tendo entrado também em filmes de Almodóvar e na série Verão Azul), Tomás teve uma precoce iniciação artística – e, sobretudo, o conselho sábio de Joaquim para que largasse os devaneios de marinheiro e se fizesse antes arquitecto de profissão. Confessa hoje que, na época, nem sabia sequer o que era a arquitectura.

Começou por trabalhar como moço de recados nos ateliês de dois nomes famosos, Formosinho Sanchez e Maurício de Vasconcelos, a quem levava os lanches e o petróleo para o aquecimento, e que o deixavam fazer “uns desenhinhos” sem o levarem muito a sério. “Eu era um corpo estranho, era o gajo que estava ali para afiar os lápis, para ir comprar o lanche, para atender o telefone se não estivesse lá ninguém. Nunca me ligaram nenhuma”, coisa que decerto o marcou e que, acima de tudo, não o fez desistir de lutar, lutar sempre, labutando como um louco nos ateliês de Luiz Alçada Batista, Manuel Laginha, Teotónio Pereira, Nuno Portas, Conceição Silva, trabalhos que, aliados ao início da vida familiar – casara com Amarílis Cristina e esta estava grávida da primeira filha –, o fizeram retardar os estudos de arquitectura ou, como ele diz, “acabei o curso tarde, porque não precisava de ter curso.”

Nos intervalos do trabalho e das aulas, que frequentou com uma bolsa da Gulbenkian, ainda tinha tempo para participar, em posição menoríssima, nas tertúlias dos cafés Gelo e Montecarlo, onde conheceu os surrealistas e privou com António Marta Lisboa, Mário Cesariny e Carlos Leote, entre outros. Quando se encontrava no primeiro ano da ESBAL, foi convocado para a tropa, segundo ele por razões políticas. Aí conheceu Herberto Helder e Fernando Assis Pacheco, os quais, à semelhança dos arquitectos de renome, não lhe davam particular importância: “eles eram super-amigos e eu… Eu fui sempre um personagem menor. Nunca fui o centro das atenções.” Um acumular de complexos e ressentimentos sociais, e culturais, à boa maneira de Rastignac, o que talvez explique muito do sucedido depois, na sua vida e na nossa: o triunfalismo pujante do traço arquitectónico, que o próprio assume como “barroco”, e as suas fatuidades grotescas, de um egocentrismo que raia o patético: “Acho que sou um grande arquitecto e sei mais do que estes gajos todos juntos”, “Quem é que ganhou [o Prémio Pritzker]? O Siza? Porquê? Porque o Jay Pritzker é judeu e o Siza também”, “Tenho pena que não haja dez Taveiras”, “O Souto de Moura não é arquitecto. É um produto do Siza. O Souto de Moura existe porque o Siza o foi promovendo.”

Numa entrevista à Camões TV, em Março de 2020, e disponível no canal YouTube, contou um episódio revelador, a pega de morte que teve com Nuno Teotónio Pereira, em cujo ateliê trabalhava às manhãs como desenhador; quando lhe disse que às tardes era arquitecto no gabinete de Conceição Silva, Teotónio não acreditou e, irritado, Tomás chamou-o de tudo. “Para o Teotónio eu não era nada”, diz Taveira, passadas décadas, lembrando que “quem ia para arquitectura era o filho-família”, enquanto “eu era o operário, fazia gala em ser operário, malandrão.” Sobre o incidente, confessa que o marcou “muito, muito, muito” e, note-se, “isto ainda me enraiveceu mais em relação ao mundo, ainda me fez estudar mais, fazer sempre mais.”

Se todos os arrivistas odeiam a memória, até porque ela lhes vem lembrar o lugar de onde vieram e as humilhações sofridas ao longo dos anos, com Taveira, esse tique é levado ao extremo, o que por certo explica a sua arquitectura de artificio e ruptura, em militante desprezo pelas zonas envolventes dos edifícios que projecta e pela sua história, e a preferência pelo estrondoso e pelo efémero, visível até na escolha de materiais de desgaste rápido ante a usura do tempo, como se comprova no triste estado de degradação em que se encontram muitas das suas criações mais emblemáticas, incluindo as Amoreiras, que ele, sensatamente, diz não ter por hábito contemplar. Lamentavelmente, uma das suas melhores obras, a Loja de Discos da Valentim de Carvalho em Cascais, com intervenções pop de Rolando Sá Nogueira e de Herberto Helder, encontra-se hoje em estado miserável, como miserável é o estado do centro daquela pitoresca vila, outrora tão pitoresca.

Num dos seus rebarbativos vídeos, vemo-lo a falar a conspirar ao telefone com um mandarim académico, pois, além de praticante de arquitectura, foi também professor da dita, na Universidade Técnica de Lisboa (também leccionou em Los Angeles), após ter feito uma pós-graduação em Planeamento Regional e Urbano pelo MIT. Não foi, porém, feliz como docente: “Odiei. O ambiente na universidade é um ambiente podre, de luta pelo poder, um ambiente não-crítico, onde é impossível falar de cultura. (…) Eu dei aulas gloriosas, em que misturava a pintura com a escultura e com as diferentes tendências de música. Isso fascinava-me, mas acho que nunca ninguém percebeu o que eu disse.”

Recentemente, têm perguntado por ele, outrora tão assíduo nos lugares mundanos ou nas festas do cavaquismo, a que acorria no seu sumptuoso Rolls. A revista Flash!, de 29/4/2018, atribui o seu desaparecimento ao escândalo gerado pela história das cassetes, fazendo questão de informar os interessados que as mesmas “ainda hoje estão acessíveis em sites de pornografia.” Já a VIP, de seu lado, garante que Tomás “continua a dar cartas no mundo da arquitectura” e que até “tem em mãos um projecto para um novo estádio de futebol no Uzbequistão”, país onde, pelos vistos, ainda não chegaram ecos do célebre episódio de 1989, quando, sob o título “As Loucuras Sexuais de Tomás Taveira”, a revista Semana Ilustrada deu a conhecer ao mundo as intimidades do autor das Amoreiras com um conjunto de mulheres que, importa dizê-lo, foram expostas e alvo de troça por parte de uma nação inteira. De facto, na sofreguidão do escândalo e da pilhéria esquecemo-nos de que, mesmo que as visadas tenham consentido naquela actividade de risco, por certo não autorizaram que a mesma fosse gravada e, menos ainda, exibida à descarada.

Tomás Taveira, naturalmente, ainda hoje não gosta de falar do sucedido, mas a Garrigou-Lagrange adiantou um pouco sobre a sua versão dos factos. Segundo ele, uma das raparigas filmadas pediu-lhe as cassetes para mostrar às amigas, uma história pouco credível (noutras versões que correram na altura, teria sido um funcionário do ateliê a descobrir e desviar os vídeos maliciosos), e, depois, o marido dessa rapariga ofereceu a bomba ao Tal & Qual, a troco de 20 mil contos, o qual não só não quis o negócio como avisou o visado. Este, de resto, já deveria pressentir que aquele era um ano aziago, pois, em Janeiro do dito, um astrólogo previra que 1989 seria para ele terrível. Após ter sido divulgado um outro escândalo, o de facturas falsas e fuga aos impostos num contrato com o Ministério da Saúde (Garrigou-Lagrange fala também de malas com dinheiro de Macau, transportadas para o PS), Taveira terá confidenciado aos amigos que a profecia se estava a cumprir, tanto mais que já sabia que, dois anos antes, as cassetes porcas andavam por mãos alheias. Em Agosto, contudo, e com a habitual prosápia, proclamava ao Expresso ser “psicologicamente indestrutível.” Pouco depois, no início de Setembro, um jornalista da revista Sábado, que acabara de publicar uma peça sobre a sua obra, avisou-o dos rumores que corriam em Lisboa à conta de uns vídeos picantes em que ele surgia no papel principal e, na manhã de dia 11, José Rocha Vieira, do Tal & Qual telefonou-lhe informando-o que vira a arrepiante cassete, ou parte dela, e pedia um comentário seu (Taveira respondeu com a truculência da praxe). À tarde, foi contactado por Raul Ribeiro, chefe da redação do semanário O Caso, solicitando-lhe uma entrevista sobre a sua arquitectura. Aceitou (cf. Expresso-R, de 14/10/1989).

Ilustração: Vitor Higgs

Mal sabia ele que o proprietário de O Caso era, nem mais nem menos, do que André Gamboa Neves, um homem de 49 anos a quem já chamaram “o Larry Flint português”, dado o seu vasto currículo no mundo do material maroto, mas não só, já que a par de publicações como Nova Star, Jornal do Amor, Sexy Club, Sexus ou Revista Amor, também deu à estampa títulos como Euromoda, Grande Encontro, O Caso, Agenda da Semana, Euro Notícias, Euro Semana ou Mariana. Começara a vida a vender sebentas e depois, nos anos 60, deu à estampa coisas políticas, traduções da Maspero e assim, mas depois, segundo o próprio, cansou-se de ver o seu trabalho reproduzido em fotocópias e, com as liberdades de Abril, reorientou para o porno, onde, em finais dos anos 80, comerciava algo como 1,3 milhões de exemplares/mês e garantia estar em conversações para uma edição portuguesa da Penthouse. Ao Expresso confidenciaria que, tal qual o arquitecto sodomita, a sua ambição era “ser o maior”, pois “os projectos não valem a pena quando são pequenos.”

Na posse das cassetes comprometedoras, André Neves terá tentado chantagear Taveira. Primeiro, o arquitecto encontrou-se com Carlos Ribeiro, da redacção de O Caso, na esperança de conseguir a suspensão da publicação daSemana Ilustrada, o novo e bombástico projecto editorial de Neves (a revista, de facto, teria um começo enguiçado, mas não por via de qualquer acordo, antes por causa de uma avaria nas máquinas da gráfica Mirandela, que só conseguiram imprimir 47 mil exemplares do pasquim, muito longe dos números idealizados por André Neves.)

Numa entrevista concedida ao Expresso-R, de 14/10/1989, André Neves contou que, por intermédio de Gonçalves Pereira, um engenheiro com responsabilidades na Interpress, teve um almoço de negócios com Taveira no Bananas, no dia 22 de Setembro de 1989, com ambos a gravarem o encontro às escondidas. Numa cena digna de um filme da Guerra Fria, o arquitecto terá insistido para que Neves despisse o casaco e, logo que este o fez, um empregado prontamente tirou-o das costas da cadeira, guardando-o no bengaleiro; simplesmente, Neves tinha o gravador guardado no bolso das calças e registou tudo. Porém, sentindo-se em território hostil (o arquitecto era dono do Bananas e doutras discotecas, o Ad Lib e o Twin’s, no Porto), vendo uns “gorilas” por perto, fez abortar o negócio. Remarcaram para o Hotel Ritz, às nove e meia da noite desse dia e aí, estando o advogado de Taveira sentado num sofá por perto, tentaram chegar a acordo, qualquer coisa como 36 mil contos, uma quantia avultada para a altura. Uma vez mais, ambos gravaram o encontro e o Expresso teve acesso ao edificante diálogo, com Neves a confessar a ambição de “vir a ser o maior editor português” e Taveira, nos preliminares, a elogiar à larga o grafismo da Semana Ilustrada; depois, entrados nos pormenores do acordo, o arquitecto falou de “um magnífico deal”, mas logo a seguir irritou-se e a coisa descambou: “Onde está a puta da cassete? O que faço para sacar a filha da puta da cassete?”, “Vinte mil contos por aquela merda? Nem que fosse uma cassete com o Bush!” Ainda aprazaram um almoço para finalizar a coisa, mas Taveira acabou por desistir, rejeitando a chantagem.

Entretanto, e sem que se saiba bem como e porquê, os vídeos começaram a circular por Lisboa, e a uma velocidade que se calcula ter sido vertiginosa. Segundo o Expresso, num jantar com jornalistas, Marcelo Rebelo de Sousa, então candidato à presidência da câmara de Lisboa, “passou mais tempo a descrever deliciadamente pormenores da cassete (falsos ou não, não se sabe), do que a abordar qualquer outro tema” (Expresso-R, de 14/10/1989). E, no início de Setembro de 1989, o Tal & Qual e o Semanário fizeram referência ao caso, sem mencionar o nome do arquitecto, mas, a 26 desse mês, O Diabo de Vera Lagoa publicava a sua fotografia, falando da “pornocassete” e, a 29, O Independente dizia que Taveira estava a ser chantageado “por causa de uma videocassete com imagens eventualmente chocantes”, com Vasco Pulido Valente a escrever que “o desagradável arquitecto Taveira não é uma pessoa pública. Uma pessoa célebre não é uma pessoa pública e o que o arquitecto Taveira faz ou não faz no seu escritório não afecta ninguém fora desse escritório” (mas, já agora, acrescentaríamos, afectava e afectou alguém que estivesse nesse escritório); em crónica intitulada “A aventura do Taveira”, Miguel Esteves Cardoso mostrava-se “indignadíssimo com o caso da videocassete do sr. arquitecto e da revista do sr. André” e, pondo o dedo na ferida, lamentava que as mulheres filmadas, a parte silenciada, fossem, no fim de contas, as mais penalizadas por esta abominável novela.

Ainda houve um intermezzo, um tempo breve em que Taveira julgou conseguir controlar os danos e até gracejar com o episódio. Sentado com a mulher num camarote de Alvalade, para assistir a um jogo Sporting-Nápoles, virou-se para Marcelo Rebelo de Sousa, na fila de trás, dizendo-lhe, em tom audível, “olhe, aquela cassete era de muito má qualidade, mas a próxima vou filmá-la na Edipim, e levo-a a si, que é a única maneira de você arranjar umas raparigas jeitosas!” Marcelo não reagiu. Taveira no seu melhor, ou pior.

Aos 2 de Outubro do ano de 1989, o país ficou a conhecê-lo em pêlo, na capa e em muitas páginas do n.º 2 da Semana Ilustrada, publicação que se debruçava também sobre temas como “A SIDA invade os urinóis de Lisboa e Porto” e “Crédito Imobiliário: sodomia fiscal.” A revista, claro, teve uma tiragem fenomenal, 150 mil exemplares, e esgotou num ápice, sendo tal a avidez dos leitores que, da comitiva que acompanhou Soares em viagem oficial à Checoslováquia, chegaram a pedir um exemplar para Lisboa, mandado por telefax. Nesse dia, no ateliê do arquitecto, todas as linhas telefónicas foram desligadas, menos uma, por estarem congestionadas com chamadas anónimas, portugueses na chalaça. Um ardina de Lisboa chegou a plastificar as páginas da Semana Ilustrada sobre Taveira, alugando-as por algumas centenas de escudos, e a revista é hoje uma peça de coleccionador, vendida por 50 euros, ou mais, e assim descrita no OLX: “revista em excelente estado, muito polémica, com artigo e fotos sobre o escândalo das loucuras sexuais do arquitecto Tomás Taveira, as famosas «taveiradas».”

Houve processos na justiça, a revista foi proibida, depois pouco mais durou. Taveira assevera que o casal que lhe surripiou as cassetes acabou condenado a ressarci-lo em 50 mil contos, equivalente a cerca de 100 mil euros, mas abandonou o país e nunca mais pagou. Quanto a André Neves, foi condenado no Tribunal da Boa Hora, em Junho de 1990, no pagamento de 20 mil contos, através de uma decisão de um colectivo presidido pela juíza Margarida Belo Redondo que reconheceu o “direito à felicidade” de Tomás Taveira. O editor maldito acabaria por fixar-se em Espanha, onde o grupo alemão Axel Springer, editor do tablóide Bild, entre outros, o convidou para dirigir a sua filial no país vizinho. Em 2008, ao que parece, o seu nome ainda surgiu associado ao jornal Ooh Lá Lá, cujo título diz tudo. E, no ano seguinte, há notícias de que tinha lançado um novo periódico, Mundo Económico, chegando a contratar jornalistas, mas ao fim de dois meses ainda não tinha pagado salários e tudo seguiu para tribunal (cf. Diário de Notícias, de 9/12/2009).

Além de um retumbante escândalo sexual, o “caso Taveira” teve grossas repercussões políticas, descritas ao pormenor por Fernando Lima, à época assessor de imprensa do primeiro-ministro Cavaco Silva (cf. O Meu Tempo com Cavaco Silva, 2004, pp. 126ss). Nos últimos meses de 1989, refere Lima, o governo encontrava-se debaixo de fogo, após os resultados pouco auspiciosos das europeias de Junho desse ano e com a tímida remodelação de Julho, onde Cavaco decidiu fazer entrar Dias Loureiro para os Assuntos Parlamentares, mas não substituir os ministros mais acossados, nomeadamente o das Finanças, Miguel Cadilhe, alvo de uma campanha de O Independente sobre uma alegada fuga ao fisco na compra de um apartamento não por acaso sito nas Amoreiras. Nas suas memórias (Factos e Enredos, 1990, pp. 88ss), Cadilhe conta que uma noite, após o jantar, recebeu a visita em casa de um colega de governo, que consigo partilhou um “assunto extremamente delicado”: “corriam rumores e calúnias contra três e quatro ministros e seus familiares, a propósito de um escândalo…” Cadilhe fala, e com razão, de “excremento”, aludindo ao facto de, pouco depois de a Semana Ilustradater divulgado os contorcionismos íntimos de Tomás Taveira no seu escritório da Avenida da República, a revista espanhola Interviú voltou a falar do caso, desta feita com contornos mais graves, afirmando que o mesmo envolvia “protagonistas da vida política e económica” lusitana e “a actual Administração Política (e Pública) de Portugal.” A acompanhar a peça, uma fotografia de um Taveira sorridente, ao lado do casal Miguel e Maria Antónia Cadilhe, então presença assídua nas revistas cor-de-rosa.

A este respeito, Fernando Lima descreve os esforços do governo para impedir a circulação da Interviú em Portugal, os quais envolveram a ida de uma equipa da Polícia Judiciária ao país vizinho, para recolher mais informações, e contactos do ministro da Administração Interna, Fernando Nogueira, com o seu homólogo espanhol, bem como o envio de um “alto funcionário governamental” a Madrid. Do lado de cá da fronteira, O Independente mantinha a fogueira acesa, anunciando que estavam “para rebentar escândalos em redor das figuras de Eurico de Melo, Mira Amaral, Silva Peneda e Miguel Cadilhe.”

Na noite de 9 de Novembro, à hora em que em Berlim caía o Muro, e numa conversa privada tida em São Bento, Miguel Cadilhe apresentou a sua demissão a Cavaco, o qual, na noite do dia 10, faria uma comunicação ao país, preparada com o auxílio de Fernando Nogueira. Nela, “com ar grave”, Cavaco abordou “o tema geral da calúnia e da mentira como armas de ataque às instituições democráticas e aos titulares dos cargos políticos”, diz o próprio em Autobiografia Política II, 2004, p. 91. Esta intervenção, contudo, seria violentamente criticada por Paulo Portas nas páginas de O Independentee pelo Sindicato dos Jornalistas, que viu nas palavras de Cavaco uma tentativa de desprestigiar a comunicação social perante a opinião pública portuguesa. Com a vida do governo transformado “num inferno” (Fernando Lima), o PSD sofreria um pesado revés nas autárquicas de Dezembro de 1989 e, em 1 de Janeiro do ano, Cavaco Silva anunciava uma aguardada remodelação ministerial, com a saída de Eurico de Melo, Leonor Beleza e Miguel Cadilhe.

Quanto a Tomás Taveira, divorciou-se e iniciou uma humilhante travessia no deserto, a pontos de ter sido impedido de pôr os pés no Bananas pela consultora de imagem contratada de reabilitar o nome da casa (cf. Isabel Borges, “Euzinha contratada pelo Taveira no final de 1989?”, blogue Por Amor, 31/7/1989). Falando com o Expresso, adoptou o registo-coitadinho, Marcelino, Pão e Vinho: “Fui rejeitado pela sociedade portuguesa, cultural e politicamente. Em Portugal, os jornalistas não me deixam viver. Estes episódios apagam-me como português. Sou um indivíduo arrumado. A única coisa que me resta é o silêncio.” Das trevas regressou episodicamente, seja para projectar obras no estrangeiro, seja para desenhar a estação de metro das Olaias, seja para projectara, a instâncias de José Sócrates, seis dos nove estádios do Euro 2004, de que foram construídos três, o Aveiro, o de Leiria e o Alvalade XXI, coberto de azulejos WC, só há pouco removidos. Ainda assim, não foi tão ostracizado quanto isso, já que, dois anos depois da borrasca das cassetes, ganhou, ex aequo com Carrilho de Graça, o concurso de ampliação do edifício da Assembleia da República, felizmente anulado, com a obra a ser entregue, por ajuste directo, a Fernando Távora.

Diz que muitas das suas obras são “icónicas”, seja lá isso o que for, mas a mais icónica de todas – e a mais perene – são, sem dúvida, as “pornocassetes” gravadas em 1987, mas só dois anos depois levadas à apreciação crítica de milhões de espectadores, em Portugal e no estrangeiro, e por sinal no preciso momento em que nos ecrãs estreava o filme Sexo, Mentiras e Vídeo, de Steven Soderbergh. Discute-se ainda hoje sobre se as mulheres envolvidas, ou pelo menos algumas delas, terão sido ou não violadas, no que à penetração anal diz respeito (é o que sustentava André Neves e, agora, Matthieu Garrigou-Lagrange), sendo indubitável que o foram na sua intimidade e na sua privacidade, na sua dignidade, em suma. Debate-se, também, a identidade das visadas, dominando hoje a tese de que não eram esposas de políticos ou de homens poderosos, antes raparigas que o arquitecto terá conhecido na vida, na delas e na dele, possivelmente suas alunas na Faculdade de Arquitectura, caixeiras de lojas ou quiçá até prostitutas, sabe-se lá.

Os vídeos têm sido tratados de modo complacente e jocoso, dando motivo a muita boçalidade, e, como sempre sucede, foram alvo de dezenas de pastiches, recriações e apropriações, desde logo na cinematografia porno, em Tavares, o Arquitecto Quebra-Bilhas, com Erica Fontes e Pedro Perestrelo (filho do locutor Pedro Perestrelo) nos principais papéis, o qual, na descrição dos produtores, conta a história de “um arquitecto que gosta de trabalhar em cima do joelho… ou em cima do sofá ou da mesa das reuniões. O que interessa é montar boas estruturas, sejam elas de edifícios ou de belas raparigas dispostas a tudo. Veja, está tudo cá dentro!” Na música, cite-se “Na Cabana do Pai do Tomás”, da banda Sitiados (refrão: “Ó Tomás, ó Tomás, isso não se faz”) ou “Fim-de-semana em Vizela”, dos Ena Pá 2000 (“A filha da Teresa Braganza/A neta do bispo de Beja/A roer as unhas de inveja/A secretária do Taveira/Tem um buraquinho na peida”), devendo mencionar-se também, pela sua alarvidade, os cânticos das tunas da Faculdade de Arquitectura, onde Taveira leccionava: “Quem é quem/Que enraba à maneira/É Taveira/É o Taveira!” (apud João Pedro George. Dicionário Sério de Calão, Javardices e Alarvidades, 2024, p. 97). No decurso dos seus filmes íntimos, o arquitecto proferiu afirmações que entraram desde há muito no património linguístico nacional, com destaque absoluto para “Está todo lá dentro!”, mas não só (v.g., “Ui, ca bom!”). Além das expressões “taveirada” ou “taveiresco”, o epíteto “quebra-bilhas”, nas suas diversas declinações (“O quebra-bilhas das Amoreiras”, “O aquitecto quebra-bilhas”, etc.), colou-se a Tomás Taveira como uma segunda pele, e acompanhá-lo-á ad eternum, muito para lá do seu perecimento terreno.

Em Aveiro, em Janeiro de 2021, um conjunto de moradias suas suscitou intensas críticas, com a autarquia a afirmar, imagine-se, que não lhe competia pronunciar-se sobre a estética dos projectos (cf. Público, de 21/1/2021). Pouco depois, Taveira colocou-se ao lado de Ronaldo na célebre “polémica da marquise”, no nº. 203 da Castilho (cf. Record, de 1/6/2021), a rua do não menos célebre Edifício Castil, cuja autoria disputou com Conceição Silva nos tribunais. Na mesma altura, Rui Unas anunciou que iria recebê-lo no seu programa, fazendo-o com palavras consideradas demasiado tolerantes relativamente às “asneiras” (sic) pretéritas do arquitecto, o que gerou indignação e obrigou Unas a engolir o que disse (cf. Público, de 22/4/2021). Quanto ao arquitecto maldito, diz que se mantém “hiperactivo” e “hiperinformado sobre tudo o que se faz na arte”, afirmando que, pese as mais de 80 primaveras, conserva uma “energia total” e garantindo que não dorme mais de quatro horas por noite (até porque tem de cuidar dos dois gatos que com ele dormem).

Hoje, os defensores da sua arquitectura dizem que é possível separá-la do homem que a criou, e sustentam que “não se pode fazer a crítica da arquitectura através da crítica à personalidade” (cf. Tiago Bartolomeu Costa, “A obra e o homem: o caso Tomás Taveira”, Público, de 20/5/2021). Como todas as máximas, esta só em parte é verdadeira, uma vez que, se há arquitectos que têm a contenção e o bom senso de não misturar a obra com a biografia, em Tomás Taveira, pelo contrário, tudo o que faz e diz acaba por ser, ao cabo e ao resto, uma irrupção fragorosa do seu carácter animalesco e em bruto (na sua conta do Twitter, identifica-se, não por acaso, como “animal sexual”), de uma força da natureza moldada, mas jamais amaciada, pelo convívio com políticos de baixo nível, dirigentes desportivos e empreiteiros gananciosos. Julgando-se chefe de banda ou orquestra, Taveira foi um peão do jogo e da teia de interesses vis e corruptos que, vinda do anterior regime mas aprofundada no pós-revolução, converteu a paisagem urbana portuguesa numa das mais feias, mais desinteressantes e mais medíocres da Europa. Os que louvam a natureza “revolucionária” do seu pós-modernismo Free-Style, deveriam atentar melhor, com olhos de ver, a aberração prantada ao Saldanha, os projectos que ele tinha para o Martim Moniz ou para a Fontes Pereira de Melo ou para a ampliação do parlamento, numa sanha destrutiva que não poupava sequer a Baixa pombalina, que Taveira dizia não ser intocável ou sacrossanta e, logo, também passível, ou passiva, das suas bizarras intervenções.

Paradoxalmente, sob a capa de democraticidade do gosto – e do apreço das classes populares pelos seus edifícios desconcertantes e nonsense –, no discurso de Taveira sobre “fazer cidade” esconde-se muito de arrogante e tirânico, desde logo a presunção de que só uns, os iluminados, os eleitos (por quem? pelos construtores?), têm o privilégio de intervir na urbe de forma tão estridente e exuberante, já que se todos o fizessem o mesmo do que ele e adoptassem um registo idêntico, com a cidade coberta de “taveiradas”, estas não teriam impacto algum, ficando então mais patente o que verdadeiramente são, uma ignóbil porcaria. A filosofia arquitectónica de Tomás Taveira emerge, em suma, da mesma adleriana “vontade de poder” com que torpedeava os colegas, gritava com os subordinados ou dominava as mulheres à sua mercê – e, pior ainda, que as filmava aparentemente sem o seu consentimento. O evidente prazer com que as subjugava e fazia sofrer – muito provavelmente, o maior gozo que tirava de tudo aquilo – define-o como ser humano, mas também define o país onde pôde medrar até se tornar aquilo que é, ou foi, um homem sem qualidades.