Dia da Visibilidade Trans
31 março 2024 às 10h24
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Pessoas LGBTQIA+ sentem problemas no trabalho, na habitação e na saúde

Várias identidades cruzam-se mas, no centro de todas as questões, ainda está a fobia em relação a estas pessoas. Para elas/eles/’elus’ arranjar ou manter um emprego é difícil, tal como arrendar uma casa, ou até ter acesso a cuidados médicos adequados às suas condições, devido ao preconceito da sociedade normativa.

Há quem viva na sombra e não assuma a sua verdadeira identidade. “Isso pode ser explicado por várias razões, até pela própria LGBTQIA+ fobia internalizada”, começa por explicar Sara Malcato, psicóloga, e que colabora com a ILGA, grupo de intervenção e apoio a pessoas LGBTQIA+.

“Vivemos numa sociedade que é homofóbica, transfóbica, interfóbica. Temos um discurso negativo no que toca a uma orientação sexual não heterossexual ou a uma identidade de género que não é ‘cis’ [a identidade de género correspondente ao género atribuído à nascença]. Todos integramos este discurso. As próprias pessoas LGBTQIA+ integram este discurso sobre elas. Ou seja, muitas acham que têm alguma coisa de errado dentro de si”, prossegue a psicóloga. “Pensam que gostar de homens, ou de mulheres, ou ser trans é errado. Que vão ser rejeitadas pela família, que nunca mais vão arranjar um emprego. Portanto, muitas vezes fingem uma heterossexualidade”. Tudo isto porque “não querem ser discriminadas, alvo de violência, perderem as amizades que têm e o estatuto que muitas vezes já conseguiram”.

Sara Malcato, psicóloga posa na sede da ILGA
Reinaldo Rodrigues/Global Imagens


Por isso, apesar de as diferenças “começarem a notar-se na infância, por exemplo quando a criança só quer brincar com brinquedos que não são os habituais do seu género ou se desenha de uma forma, que é aquela como se identifica, só muito tarde é que algumas pessoas fazem os seus coming out [sair do armário]”. E Sara Malcato acrescenta, mesmo, que há quem só o faça “em idade adulta e, em alguns casos, já tardia, quando já saíram de casa dos pais, têm um emprego muito estável ou, simplesmente, não aguentam mais fingir alguém que não são. É quando assumem a sua orientação sexual e identidade de género”.

“Quero viver como sou”

Daniela Bento, 37 anos, presidente da ILGA, viveu durante mais de 20 anos como rapaz, o género com que nasceu. “Fiz seis ou sete coming outs enquanto fui percebendo o que era. Aproximei-me da ILGA quando fiz o meu coming out enquanto rapariga trans, em 2014”, recorda.

Daniela cresceu numa pequena aldeia do Cartaxo, não teve um percurso simples. “Foi um processo em que primeiro identifiquei-me como bissexual. Depois, entendi-me como pansexual. Mais tarde afirmei-me como poliamorosa, mulher trans e, hoje em dia, pessoa não binária”, enumera.

A mudança de nome foi uma das suas afirmações trans. “O meu processo foi altamente complicado. Era-me exigido, nas consultas, que me comportasse de determinada maneira, que me vestisse de certa forma, foi questionado o facto de estar numa relação com uma rapariga, tudo porque não eram características que deviam estar numa rapariga. Demorou muito tempo”.

Hoje, ostenta barba e mamas. “Quero viver como sou. Há alturas em que quero expressar-me de forma super feminina; outras masculina; outras, ainda, andrógina”.

Pelo meio enfrentou desafios e preconceitos. “No trabalho foi complicado. Cheguei a ter pessoas a dizer que já podiam assediar-me porque eu já era uma rapariga, passei por situações muito violentas”. 

Daniela Bento, Presidente da ILGA Portugal
Reinaldo Rodrigues/Global Imagens


Este domingo estará na Marcha Dia da Visibilidade Trans por entender que “as pessoas LGBT têm uma dificuldade enorme no acesso à habitação. As pessoas não binárias continuam a não ver a sua identidade reconhecida. Temos de ter leis que permitam a proteção das pessoas trans, lésbicas, gays e intersexo, por exemplo no acesso à procriação medicamente assistida”. E continua:Quando nascem crianças intersexo, é-lhes observada a genitália e, de acordo com decisão médica ou das pessoas responsáveis, há uma cirurgia para aquele bebé continuar como rapaz ou rapariga. Isto é uma mutilação, um problema de direitos humanos, porque estamos a normalizar corpos sem aquela criança ter autonomia de decidir o que quer para a sua vida e, muitas vezes, ao crescer, não se identifica com o género que lhe foi imposto”.


“Sentia-me condicionada”


Sente-se não binária e prefere ser tratada por nomes neutros. “Basicamente, acrescenta-se um “e” no final da palavra. Por exemplo, bonito diz-se ‘bonite’”. Mas já passou por uma fase lésbica. E sentiu dificuldades. “Tive bastantes problemas em arranjar casa. Houve bastantes situações em que fui rejeitada quando o senhorio via que éramos um casal lésbico. E era flagrante: Corria tudo bem até nos verem como casal e, nesse caso, diziam que tinha aparecido outra pessoa para arrendar. Ou então, se íamos as duas ver a casa faziam de tudo para que a visita acabasse rápido e recusavam-nos, tudo isto mesmo tendo nós capacidade económica e fiadores”.

“É frustrante. Quando somos ‘discriminades’ além de ficarmos tristes e ‘abatides’ o mais pesado é a sensação de solidão. É como se nós não existíssemos. Somos ‘rejeitades’ pela diferença”, afiança Fil.


Fil Botelho posa na sede da ILGA Portugal
Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Fil Botelho tem 30 anos e nasceu rapariga. Cresceu no Alentejo “onde não havia informação e acabei por passar a maioria do tempo como rapariga heterossexual”, conta a música, que toca clarinete. “Sentia-me muito condicionada no que tocava à roupa e às expectativas que tinham de mim, enquanto mulher e nas quais não me enquadrava”, explica.


“Ando a fluir entre géneros”

Mari Azevedo, 30 anos
Global Imagens

Mari, 31 anos, é “professor”. Nasceu mulher mas explica: “A minha experiência é de andar a fluir entre os géneros masculino e feminino. Por isso, umas vezes uso pronomes e nomes masculinos; outras femininos”. Mari revela que “desde criança que havia a sensação de que tinha de seguir um papel que não era o meu, no caso o de mulher”. 


Na escola onde dá aulas, já tem sentido o peso da diferença. “No secundário tenho alguns alunos com 18 anos. Muitos fizeram questão de dizer que votaram no Chega e tentaram irritar-me”. Por parte dos colegas já ouviu, em surdina, “conversas homofóbicas e transfóbicas. Tenho a sensação de que se eu ficar apenas no papel feminino as coisas correm melhor. Se me quiser impor, ou pedir para me tratarem por género neutro, já não é bem assim”. 


Os amigos aceitaram Mari. Com a família “ainda está a ser um processo. Acabo por estar num papel em que tenho de educar as pessoas em relação à minha identidade. E os nossos familiares também têm os seus tempos para se conseguirem encaixar nestas realidades”.